Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Ontem de manhã, no Campus de Justiça de Lisboa, o mundo organizava-se na sua própria antevisão nervosa. Cá fora, muitas baias de segurança, muitos polícias com armas grandes e também jornalistas armados de grandes câmaras para directos explicando e reexplicando aos nossos telespectadores que se deverão começar a passar ali dentro certas coisas, interrogatórios, prevenções judiciais, intervenções de advogados para o crime que chocou o país e aqui fora o aparato policial, etc.
Disse-me o guarda no detector de metais, enquanto eu despejava os bolsos e abria os ouvidos, que estava para chegar ao edifício o triplo homicida da Penha de França, o homem que assassinou o barbeiro com cinco filhos, o taxista e a sua mulher grávida. Já estava cercado e o pai que o ajudou a fugir é que o convenceu a entregar-se, na véspera. Vai ser uma confusão, profetizou.
Mas lá em cima, no quinto piso, Ana contava a história irrelevante, ridícula, quotidiana, do seu mundo de menor gravidade. Só que uma bolota de haxixe nas cuecas nunca é só isso.
— Quatro. Tenho três filhos, de 14, 12, 8 anos, e tenho ainda a cargo o filho do Nuno, de 15.
— Todos filhos do seu companheiro?, disse a juíza.
— Sim, respondeu a caixa de supermercado.
— O Nuno é seu companheiro.
— Não, o Nuno é o meu irmão.
— Como a senhora disse que tem quatro filhos, pensámos que era um filho anterior do seu companheiro.
Ana nem conseguiu reconhecer a fotografia tipo passe, foi o que disse ao levantar o dossier do processo até ao nariz.
— É o seu irmão?
— Eu não consigo perceber. Eu vejo mal.
— Mas essa fotografia que aí está é do seu irmão, ou não?
— Eu penso que sim. É difícil ver fotografias, nem as letras consigo ler.
No ano passado, o irmão telefonou-lhe a dizer que uma pessoa lhe ia levar uma coisa para ele.
— Eu confirmo os factos, mas não sabia o que ia a levar.
— Quem é que lhe entregou?
— Uma senhora que não conheço.
— Como é que se chamava essa senhora?
— Não faço ideia. Ela telefonou-me e disse que tinha uma coisa para me entregar. Disse-me onde é que eu tinha de pôr aquilo... Na vagina, o que eu não fiz.
— Então pôs aonde?
— Nas cuecas.
Uma coisa de formato redondo, escuro. Não era pó, não se desfazia. Estava dentro de um preservativo. Foi com aquilo que tentou visitar o irmão no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Tráfico de menor gravidade.
— O que é que achou que era?
— Eu desconheço essas coisas.
— Mas faz alguma ideia... ou não? Vai encontrar-se com uma senhora que não conhece, ela entrega-lhe uma coisa enrolada num preservativo, que no dia da visita teria que a levar no interior da sua vagina, e não pensou no que era?
— Eu pensei que podia ser alguma coisa relacionada com droga. Não sabia ao certo o que era. O que era, quantidades, desconheço.
— A questão é vir aqui dizer que nem sabia que era droga.
— Eu penso que era.
Tantas voltas até à confissão, Ana. Quatro filhos, uma bolota.
— Estava um bocado assim porque tinha falecido o nosso pai há uns meses. Eu não andava bem, tomava uns certos
medicamentos que me meteram completamente fora de mim. Eram para a depressão.
— Mas a morte do seu pai foi vários meses antes, disse a juíza.
— Houve ali um período entre a minha medicação ser incorrecta e ficar correcta em que eu não estava bem. Ia trabalhar, mas não estava dentro do mundo.
O mundo cá está, e nós nele, às vezes.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
