Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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Um homem no banco dos réus, os cotovelos nos joelhos, dedos cruzados na mão, ruminando palavras na boca fechada, os olhos num brilho fervoroso, não se percebia se estava a rezar se a inventar vinganças. Gestos parecidos dão coisas opostas.
As testemunhas sucediam-se no tribunal, envergonhadas com o azar de ali terem de estar a contar o caso de Vítor e Sandra. Disse um dos motoristas da empresa de transportes:
— Ela é que falava mais, ela é que queria ser o patrão.
— Mas qual é o assunto aqui?, interrompeu a procuradora. O que é que o senhor viu e ouviu?
— É por causa da confusão que se deu lá na empresa. Eu estava a trabalhar no corredor, a pintar, e ele começou a discutir, fechou a porta, começou a atirar coisas para cima da patroa.
— Que coisas atiravam?
— Atiravam cadeiras, bonecos...
— Bonecos?...
— Sim, bonecos que lá estavam e atiravam um ao outro. E era só alfinetes, a ofenderem-se um ao outro.
— O que é que diziam?
— Aqueles nomes que as pessoas dizem...
— Nós aqui ouvimos os nomes. Tem de os dizer no tribunal.
O homem foi obrigado a repetir o que ouvira e também eu repito o que ouvi, pelo que agora também vocês me ouvirão, a não ser que desliguem o rádio...
— Era a dizerem filho da puta e filha da puta um ao outro...
Coisas que as pessoas dizem. Bate-bocas, acrescentou a testemunha. Vítor e Sandra, casal com muitos anos de casados, a alegria dos filhos, depois as amarguras, entrara em acidez sulfúrica conjugal. Por causa do trabalho — estavam na mesma empresa, mas a mulher é que mandava —, até que chegaram ao momento das conversas de onde não se regressa. Diz um amigo meu que todas as coisas têm uma explicação e é quase sempre a mesma, e mais uma vez dou-lhe razão, tenho provas.
Outra testemunha que entrou na sala tinha sido amigo do casal. Quer dizer, quando ele próprio ainda não se tinha divorciado, ele e a então mulher iam ter com o Vítor que agora está sentado no banco dos réus, de dedos cruzados, e com a sua então mulher, Sandra. Iam jantar os quatro, passavam fins-de-semana juntos. Agora não. Deus-se a separação e, antes da separação, aquilo:
— Fiquei surpreso, bastante surpreso, disse o antigo amigo. Não sabia que ela tivesse essa orientação.
— E como é que ele andava?
— Além de triste, ele estava bastante inconformado com a situação. O que mais me mencionava era a parte dos filhos. Se a Sandra não gostava dele, não ia ficar com ele, mas estava preocupado com as crianças.
Ainda na obscuridade, mas a procuradora perguntou se soubera de algum relacionamento extra-conjugal de Vítor. Não, disse a testemunha. Logo a seguir a matéria, por assim dizer, de facto:
— Alguma vez o senhor Vítor lhe disse que gostaria de ir a um bar de swing e levar a Sandra?
— A mim, não, suspirou, fúnebre, o antigo amigo.
Resumindo: Vítor convenceu a mulher a irem a um bar de swing, a fazerem uma proposta a outra mulher, os três foram para a cama, mas, inopidamente, as duas mulheres pediram-lhe para saltar do colchão, de maneira que o, por assim dizer, proponente, ficou só a ver. Tudo bem, muito antigo, clássico, moderno, contemporâneo, o que quisermos, só que depois disto as duas começaram mesmo a namorar uma com a outra, Sandra deixou Vítor, este fez-lhe uma espera à porta da casa da outra, começou aos gritos, a outra explicou ao bairro “não quero estas confusões à porta da minha casa, vocês entendam-se!” Isso não aconteceu e agora ali estava o, por assim dizer, proponente, a ser julgado pela enorme tareia que deu na mulher. E patroa.
Proposta arriscada, resultado interessante. Gestos parecidos dão coisas opostas.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
