Crónicas de justiça de Rui Cardoso Martins. Relatos de vidas que se cruzam com o poder da lei, o braço da justiça e as circunstâncias de cada um. E quando se levanta o réu, é o juiz que decide
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A cara do homem era castanho cinza de tinto velho, já passado, terroso, sem frescura. Uma pele de borracha, por sua vez coberta num bom fato e gravata, sapatos de pelica reluzente, meias de seda, óculos de marca. Mas era tão magro o homem que parecia pendurado num cabide de arames.
O homem tinha, percebeu-se na leitura da sentença, duas profissões a tempo inteiro, incompatíveis: chefe de cabina numa grande companhia aérea e alcoólico profundo. São actividades profissionais que implicam longas viagens, dentro e fora da cabeça, dentro e fora do país. Estava escrito no processo que, depois daquela noite na Avenida dos Estados Unidos da América, em Lisboa, se internara voluntariamente num tratamento. Mas o fígado, os nervos, os tendões, os ossos, o coração, estavam ainda no interior do homem a perguntar-lhe ao cérebro: é desta que nos deixas descansar, não te chegam os disparates?
O homem cometeu a proeza de, na mesma noite, ser apanhado duas vezes a conduzir embriagado. Na primeira operação Stop, adivinhou-se um recordista notável, um campeão dos jogos etílicos. Segundo o auto da polícia, conduzia o carro com 3,39 gramas de álcool por litro de sangue. Mas a juíza, experiente, concluía agora, na frente do homem, que tinha havido um lapso no documento. Seriam, de facto, dois vírgula tal, como se averiguou na análise sanguínea que o condutor, levado à esquadra, exigiu ir fazer ao hospital. De facto, se tivesse a taxa de 3,39 o mais certo era nem sair do hospital, ficava em coma e já não teríamos o resto da história. De qualquer modo, conduzia em Lisboa bêbedo como um carro quando pela segunda vez foi parado.
— O senhor ficou proibido de conduzir por 12 horas seguidas, disse a juíza. Cerca de duas horas depois, estava a conduzir outra vez. Apesar da desculpa de que só estava a estacionar, como se isso fosse desculpa. Nem que fosse um metro.
Fizeram-se as contas de taxa mínima e máxima, a lei determina que se devem descontar as margens de erro da alcoolemia, e escolher aquela que mais beneficia o arguido. Mas mesmo assim o homem bebera tanto, estava tão bêbedo que tanto podia estar ali, na Avenida dos Estados Unidos da América, como a cruzar o Atlântico numa avioneta. A juíza tentava encontrar o tom certo para o homem, que ouvia em silêncio. Sabia que ele percebia as variantes matemáticas do álcool ao volante, as contas a fazer:
— Até pela profissão que tem. Pela escolaridade.
Eram dois os crimes, mas diferentes: o primeiro por conduzir com uma taxa de álcool criminosa e o segundo, não pela mesma coisa, mas por quebrar a interdição: crime de desobediência qualificada.
A juíza condenou-o, em cúmulo jurídico, a 1600 euros de multa, e a inibição de seis meses de conduzir veículos com motor. Bom, imaginamos que um chefe de cabina não pilote um Airbus de longo curso, mas a sentença abrange aviões, são motorizados.
— Senhor arguido, eu não tenho assim muito a dizer. Este pode ser um momento da sua vida, mas é uma taxa que não é comum. Optámos pela multa porque já passou algum tempo e, se já tivesse algum tipo de condenação, não seria esta a pena. A ideia é saber que não vai voltar. Na próxima vez, diremos “a multa não chegou” e teremos de passar à prisão.
Pobres e ricos, estudados e ignorantes, juntos na doença. Larga a garrafa, homem, não te partas tu.
A vida é como a democracia: parece forte, mas é um vidrinho.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia
