“A liberdade como bandeira, investigação sobre o direito de manifestação”, resultados principais de um estudo da Amnistia Internacional – Portuguesa e da Universidade Católica Portuguesa, no ano em que se comemoram 50 anos sobre o fim da ditadura em Portugal.
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Só um em cada dez inquiridos participou em alguma reunião ou manifestação públicas nos últimos cinco anos, indica um estudo da Amnistia Internacional esta segunda-feira divulgado. Ainda assim, os resultados obtidos por este estudo em Portugal estão em linha com os estudos do European Social Survey (ESS) que mostram que, a partir de 2012, “há um aumento das formas de participação não convencionais, como é o caso de manifestações, da assinatura de petições ou até usar um crachá com uma mensagem política”.
Mais estudos, mais exercício do direito à manifestação
A participação neste tipo de eventos é muito mais elevada entre as pessoas mais escolarizadas (17% entre os que têm ensino superior) do que entre as pessoas menos escolarizadas (apenas 3%). Também é maior entre os votantes de partidos à esquerda do que entre votantes de partidos ao centro e à direita no espectro político português. Para 56% dos entrevistados no estudo da AIPT/UCP as reuniões e as manifestações não são uma ameaça à ordem e à segurança públicas, enquanto 26% defende o contrário. Esta última opção é maioritária entre pessoas com até o 3º ciclo, ao passo que a concordância vai aumentando com o nível de escolaridade de quem responde.
No contexto europeu, Portugal surge a meio da tabela nos estudos do ESS, sem grande distinção em termos de escalões etários. A propensão inferior dos portugueses para se manifestarem contrasta em especial com a dos cidadãos de países como Espanha, França e Alemanha.
As ‘manifs’ acontecem, sobretudo, nas grandes cidades. Entre os 17 municípios que deram resposta, salta à vista que, desde 2018, quase 80% das notificações para a realização de reuniões e manifestações públicas foi feita às autarquias de Lisboa e do Porto. Na lista dos restantes 20% surgem Coimbra, Aveiro e Sintra por esta ordem, por contabilizar ficaram ainda assim importantes núcleos como é o caso de Braga e Setúbal que não responderam às perguntas da Amnistia Internacional - Portugal.
Pouca informação das autarquias e desconhecimento da lei
Protestar é ou não um direito? Está no ponto 2 do artigo 45º na Constituição da República Portuguesa, a questão não deveria trazer dúvidas, mas na prática elas não faltam. “Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização”, estipula a lei fundamental. Quase metade dos inquiridos (47%) pela AIPT/UCP acha que estes eventos precisam ser autorizados. As dúvidas estão em todo o lado. Entre as dezenas de entrevistas feitas pelos autores do estudo, são muitos aqueles que, mesmo depois de terem organizado várias ações de protesto, não sabem responder se é necessária ou não autorização para as manifestações. Nas próprias autarquias, responsáveis pela receção destas notificações, falta informação. Numa pesquisa da Amnistia Internacional – Portugal às páginas na internet dos 23 municípios consultados no âmbito desta investigação, apenas em quatro está disponível informação para os cidadãos que queiram notificar as autoridades sobre a realização de uma reunião ou manifestação públicas.
Temas, direitos e tratamento desigual
Que temas o levaram a manifestar-se nos últimos 5 anos? 3 dos 10% que se manifestaram fizeram-nos por questões de direitos dos trabalhadores, emprego/desemprego; dois por cento por políticas de saúde, outros tantos por questões de habitação, 1,3% pela paz ou contra a guerra, tal como a percentagem relativa ao custo de vida. Temas como política em geral, direitos das mulheres, clima e justiça climática, racismo e xenofobia, refugiados e migrantes, LGBTQIA+, direitos dos animais, são temas que não mobilizaram sequer 1% dos inquiridos a manifestarem-se publicamente.
Os resultados dividem-se quando a questão é a imparcialidade da polícia e de outras autoridades. 42% dos inquiridos considera que as forças de segurança não fazem qualquer distinção a quem organiza e aos locais onde acontecem as reuniões e manifestações públicas. Em oposição, 37% acha que há parcialidade no tratamento. Os dados mostram diferenças significativas nas respostas em função da escolaridade, havendo maior discordância com a afirmação, entre os mais escolarizados e os mais jovens. Os mais jovens e academicamente mais qualificados estão mais propensos a considerar que as autoridades, “com uns age de uma maneira e com outros de outra”.
Discursos de ódio, violência policial e discriminação
Outra das perguntas feitas no inquérito da AIPT/UCP revela que mais de dois em cada três inquiridos (68%) estão preocupados com a existência de discursos de ódio, violência e discriminação na polícia, resposta igualmente mais elevada entre os que têm maiores níveis de escolaridade e entre os jovens. A Amnistia reconhece que esta questão “foi feita com o intuito de avaliar a perceção dos inquiridos sobre um tema que ganhou destaque em novembro de 2022, depois de uma investigação conduzida por um consórcio de jornalistas. Nessa investigação era apontada a existência de 591 perfis de polícias, responsáveis pela difusão de mensagens de ódio, discriminação racial e incitamento à violência no seio das forças policiais”. Em janeiro de 2024, o inquérito aberto pelo Ministério Público para investigar estas suspeitas “ainda não tinha reunido provas para fundamentar uma acusação. Já a Inspeção-Geral da Administração Interna instaurou processos disciplinares a 13 agentes da polícia”. Ouvida pelos responsáveis do estudo, a constitucionalista Teresa Violante reforça a “preocupação na forma como a legislação sobre o direito à reunião e manifestação tem sido aplicada”.
A constitucionalista refere o último relatório do Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa e fala de um “caldinho em que as pessoas não têm como se proteger de violações”. “Temos um catálogo extremamente generoso de direitos fundamentais, liberdades e garantias, mas depois não temos os remédios, os instrumentos para os fazer efetivar”, defende. À Amnistia Internacional - Portugal “têm chegado relatos de violência verbal e revistas abusivas a manifestantes por parte de agentes da polícia, em especial, dentro das esquadras”.
Proteção aos defensores do ambiente
Em fevereiro de 2024, na sequência de uma visita a Portugal e a outros países, o Relator Especial das Nações Unidas (ONU) para os Defensores do Ambiente ao abrigo da Convenção de Aarhus divulgou um conjunto de recomendações. Entre elas, "que quaisquer restrições impostas aos manifestantes sejam reduzidas ao mínimo, sejam estritamente controladas e estejam em conformidade com as normas internacionais em matéria de direitos humanos. Isto inclui a prevenção e a revogação de medidas e práticas que possam ter um efeito inibidor sobre o ativismo e os protestos ambientais, tais como controlos de identidade indiscriminados ou abusivos e a prisão, detenção e acusação de manifestantes pacíficos e jornalistas". Na mesma publicação, o relator especial da ONU insta os Estados a garantirem que "a abordagem dos tribunais aos protestos disruptivos, incluindo quaisquer sentenças impostas, não contribua para a restrição do espaço cívico".
Ficha técnica: O inquérito foi realizado pelo CESOP-Universidade Católica Portuguesa para a Amnistia Internacional Portugal entre os dias 9 e 29 de novembro de 2023. O universo alvo é composto por residentes em Portugal com idade igual ou superior a 16 anos. Os inquiridos foram selecionados aleatoriamente a partir duma lista de números de telemóvel, também ela gerada de forma aleatória. Todas as entrevistas foram efetuadas por telefone. Os inquiridos foram informados do objetivo do estudo e demonstraram vontade de participar. Foram obtidos 1001 inquéritos válidos, sendo 48% dos inquiridos mulheres. Distribuição geográfica: 32% da região Norte, 19% do Centro, 33% da A.M. de Lisboa, 7% do Alentejo, 5% do Algarve, 2% da Madeira e 2% dos Açores. Todos os resultados obtidos foram depois ponderados de acordo com a distribuição da população por sexo, escalões etários e região com base nos dados do INE. A taxa de resposta foi de 31%. A margem de erro máximo associado a uma amostra aleatória de 1001 inquiridos é de 3,1%, com um nível de confiança de 95%.
RECOMENDAÇÕES DA AMNISTIA INTERNACIONAL
A Amnistia Internacional está a desenvolver uma campanha global para reforçar a proteção do direito de manifestação e considera que os resultados do inquérito da Amnistia e da Universidade Católica Portuguesa são evidência das medidas que o país e as autoridades nacionais devem implementar com urgência:
- Rever o decreto-lei 406/74, que regula o direito de reunião/manifestação, com vista a garantir a conformidade com a Constituição e com as leis e normas internacionais vinculativas para Portugal.
- Garantir que os requisitos para a notificação de reuniões/manifestações são tratados apenas como um aviso sobre a intenção de realizar um protesto e não como um pedido de autorização para que as pessoas possam exercer o seu direito à liberdade de reunião pacífica.
- As autoridades devem garantir, nos termos do direito e das obrigações internacionais, que o processo de notificação seja transparente, gratuito, coerente, não burocrático e não discriminatório.
- Assegurar que todos os municípios e outras autoridades competentes forneçam informações claras e completas sobre o direito à liberdade de reunião pacífica e sobre os procedimentos de notificação de protestos, divulgando essas informações em plataformas online e em locais visíveis e acessíveis.
- Todos os municípios, juntamente com outras autoridades competentes, devem publicar dados sobre o número (e os tipos) de manifestações notificadas a cada autoridade competente.
- Rever a formação e os protocolos das forças policiais para garantir que estão em conformidade com a legislação e as normas internacionais relativas ao policiamento de manifestações, incluindo os princípios fundamentais sobre prevenção e dissuasão, e não-discriminação.
- O policiamento de reuniões/manifestações públicas deve garantir a proteção de jornalistas e de observadores de manifestações a trabalhar nestes contextos, nomeadamente no que se refere ao direito de denunciar e monitorizar qualquer eventual abuso ou violação dos direitos humanos.
- Assegurar que qualquer restrição a ações de desobediência civil seja considerada e avaliada no âmbito da legislação nacional, em conformidade com o direito internacional e as normas relativas aos direitos de liberdade de consciência, de expressão e de reunião pacífica.
- Qualquer uso da força por parte das forças policiais deve respeitar os princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade e, sempre que recorra à força, a polícia deve respeitar a legislação internacional em matéria de direitos humanos, incluindo o direito à vida e a proibição da tortura e de outros maus-tratos, e tomar sempre as medidas adequadas no sentido de minimizar o risco de ferimentos e de morte.
- O Estado deve aplicar todas as recomendações pertinentes dos mecanismos internacionais de direitos humanos, incluindo o Comité do Conselho da Europa para a Prevenção da Tortura, e assegurar que todas as alegações de maus tratos e de uso desnecessário ou excessivo da força por parte da polícia no contexto do policiamento de manifestações públicas sejam investigadas de forma independente, rápida, imparcial e eficaz e que os responsáveis sejam levados a tribunal, e que o direito à liberdade de reunião pacífica seja plenamente protegido.