Lisboa na fuga ao Holocausto: "Sem os portugueses, teria havido mais tragédias para as famílias judaicas"
Nos 80 anos do fim do maior conflito da História, a TSF recorda “O papel de Lisboa na II Guerra Mundial”. No segundo de três episódios, escutamos testemunhos de judeus que escaparam ao Holocausto, numa Lisboa que era um “oásis para os refugiados”. Reportagem vencedora do programa Lisboa, Cultura e Media
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Um rádio branco repousa na mesa-de-cabeceira do marido de Anita Rosenthal Ayash. Parece um aparelho novo e funciona, mas tem mais de 80 anos. Foi comprado pelo pai de Anita, entre 1939 e 1940, e era pela rádio que o jovem Siegfried seguia as notícias da guerra. “O importante era ouvir as notícias da BBC”, relata Anita, que não esconde uma “emoção especial” com uma “peça viva”, para a qual olha todos os dias. O rádio era “o grande tesouro, uma peça chave” do pai de Anita, que saiu da Alemanha com apenas 16 anos, quando as crianças judias foram proibidas de prosseguir os estudos. A II Guerra Mundial ainda não tinha começado, mas Siegfried e a mãe, Regina, partiram da Alemanha e chegaram a Portugal no final da década de 1930.
O avô Sigmund continuou na Alemanha e acabaria por ser internado em vários campos de concentração até morrer em Auschwitz, em 1942. Anita guarda o relógio de ouro e um postal que o avô conseguiu enviar de França, mas perdeu a maioria dos familiares na II Guerra Mundial. “A família foi toda dizimada nos campos de concentração.”
A bisavó conseguiu sobreviver, depois de vários anos no campo de concentração em Theresienstadt, na República Checa, e em Montreux, na Suíça, mas quando veio para Portugal, “ela não falava nada”. Ainda assim, Anita está grata. “Portugal tem sido desde essa altura, o nosso país”, afirma.
A escolha de Portugal como destino na fuga ao regime nazi é explicada pelo facto de alguns primos da família Rosenthal se encontrarem em Coimbra. Eram avós de Vasco Becker-Weinberg, que salienta: “Portugal nunca foi o destino final dos refugiados judeus na Europa.” O objectivo era “partir para os EUA, pelo simples facto de que ninguém sabia onde a ambição de Hitler iria parar”. Porém, fruto de um “amor proibido”, o pai de Vasco nasce em Portugal, em 1938, e a família estabelece-se em São João da Madeira e depois no Porto, onde explora uma patente de colchões de molas, que dará origem à marca Molaflex, em parceria com a família Moreira, do actual presidente da câmara do Porto, Rui Moreira.
Hoje, professor de Direito em Lisboa, Vasco Becker-Weinberg partilha a mágoa de Anita Rosenthal Ayash. A tia-bisavó esteve no campo de concentração em Theresienstadt e acabaria por vir para Portugal, mas quando chegou ao nosso país, a irmã (bisavó de Vasco) já tinha morrido. Portanto, “elas nunca voltaram a reunir-se fisicamente”. E só recentemente a família descobriu que afinal, “eles eram sete irmãos, mas desapareceram. Ninguém sabe em que circunstâncias, porque é impossível ter uma noção da indústria do Holocausto”, salienta Vasco, que não escolhe a palavra ao acaso, porque era “uma indústria de morte”.
Na história da salvação de milhares de judeus que passaram por Portugal, destaca-se o cônsul português em Bordéus, Aristides Sousa Mendes. ”Há uma vaga muito grande de refugiados em 1940” graças aos vistos atribuídos pelo cônsul português, afirma a historiadora Irene Flunser Pimentel. Pela fronteira de Vilar Formoso, chegaram de comboio, milhares de refugiados, entre Maio e Junho de 1940. Até essa altura, eram cerca de 30 a 40 pessoas por dia, mas com o “boom Sousa Mendes” passam a chegar cerca de duas mil pessoas por dia, refere Ângela Rainha, numa visita guiada ao Memorial dos Refugiados e do cônsul Aristides Sousa Mendes, em Vilar Formoso. Para estes refugiados, “pisar solo português significava o alívio, a esperança, a liberdade”.
Contudo, numa altura em que Lisboa recebia a “Exposição do Mundo Português”, Lisboa "está cheia e a polícia entra em pânico”, acrescenta Margarida Ramalho, historiadora e coordenadora científica do Memorial em Vilar Formoso.
“Ninguém estava à espera” destes refugiados e com a cidade de Lisboa “sobrelotada”, o governo de Salazar decide canalizá-los para “locais onde há hotéis ou casas para alugar”. Assim, os refugiados seguem para o Porto, Coimbra, Figueira da Foz, Caldas da Rainha, Ericeira e a praia das Maçãs, no concelho de Sintra. Aqui, é criada uma colónia para os refugiados judeus holandeses, dirigida pelo pai de Reinout Slot tot Everloo.
Ele “tomava conta daquela gentinha toda”, explicando os costumes portugueses aos refugiados que frequentavam a praia de bikini. “Um escândalo”, conta Reinout, também de nacionalidade holandesa. Mas a praia das Maçãs ficou no baú das memórias felizes para milhares de judeus holandeses. Era um porto de abrigo, seguro e até feliz, em contraste, por exemplo, com a passagem pelo sul de França, onde tinham tido fome. “Tiveram bons tempos na praia, a nadar e à espera de um barco que os levasse daqui”, recorda a realizadora Loes Gompes, filha de Simon Gompes, que escapou ao Holocausto através de Lisboa.
Estar em Portugal foi uma bela experiência. Era lindo e eles tinham tido fome, no sul de França… [Na praia das Maçãs], perto de Lisboa, havia boa comida, vinho. Podiam nadar, podiam passear. Por isso, sentiram-se felizes
A mãe de Cookie Fischer também era holandesa, mas a representante em Portugal da Aristides Sousa Mendes Foundation não sabe se Ada van den Bergh passou pela praia das Maçãs. Aliás, só muito recentemente Cookie descobriu o papel de Portugal e do cônsul português na história da salvação da família.
Nascida em Las Vegas, Cookie Fischer é filha de pai belga e mãe holandesa. Em 1940, os dois ainda não se conheciam, mas, por coincidência, escaparam ambos por Lisboa. Na fuga ao regime nazi, Ada viajou até Nice e estava em Bayonne, quando surgiu “um rumor de que o cônsul português dava vistos”. O grupo agarrou num “saco com passaportes” e, assim, conseguiu uma autorização para escapar à perseguição alemã. No passaporte de Ada, que hoje está em Cascais, lê-se a assinatura “Mendes”. Com esse visto para a liberdade, a mãe de Cookie chegaria a Lisboa, onde apanhou o barco Excalibur para Nova Iorque, a 28 de Agosto de 1940. No ano seguinte, 1941, foi também no Excalibur que o pai de Cookie seguiu de Lisboa para os EUA.
A maioria dos refugiados de guerra não ficou em Portugal, salienta a historiadora Irene Flunser Pimentel, mas enquanto aguardavam por um barco para continuar a fuga, “passeavam pelas ruas, iam à praia”, causando “escândalo” com os fatos de banho. “Influenciaram as jovens portuguesas com o penteado à refugiada” e as “saias curtas. Fumavam nas esplanadas, traçavam a perna”, o que levou os homens a fingirem que lutavam nas ruas - “para verem as pernas [das refugiadas]”. Foi, por isso, que a zona do Rossio passou a ser intitulada “Bon pernass, o sítio das boas pernas”, descreve Irene Pimentel com uma gargalhada.
“Os refugiados invadem o espaço público. Lisboa tornou-se cosmopolita do dia para a noite”, destaca a historiadora, que entre os muitos amigos refugiados, recorda a vizinha Ruth Arons, mãe de Alberto Arons de Carvalho, um dos fundadores do PS e antigo secretário de estado da comunicação social.
Ainda antes do início da guerra, os pais das jovens Ruth e Helen tiveram a “intuição daquilo que se iria passar” e “tiveram os meios para sair de Berlim”, conta Arons de Carvalho. Ao contrário do que se poderia esperar, as duas jovens “ficaram radiantes com a ideia de saírem de Berlim”, porque já se sentiam “perseguidas, discriminadas”. Com 14 anos, Ruth adaptou-se rapidamente a Portugal. “Aprendeu a língua” e tendo vivido até aos “100 anos e cinco dias”, ninguém diria que era estrangeira, garante Arons de Carvalho. “Tinha apenas um problema com os R’s”, recorda o filho, mas Ruth integrou-se de tal forma, que seria eleita presidente da junta de freguesia de São Mamede nas primeiras eleições autárquicas do país.
Não se pense, no entanto, que a vida dos refugiados era um paraíso. Lisboa era “terreno de dramas terríveis”, realça Irene Flunser Pimentel. A vaga de refugiados em 1940 estava proibida de trabalhar e não podia criar associações. “Quem subsidia os refugiados são as grandes organizações judaicas americanas, a Cruz Vermelha portuguesa e Internacional, a comunidade israelita, em grande parte suportada pelo Joint (uma organização judaica americana)”, refere a historiadora Margarida Ramalho.
“As famílias judaicas convidavam os refugiados para comer em casa delas” e também alojavam algumas crianças. Samuel Levy, presidente emérito da comunidade israelita em Lisboa, era adolescente e recorda-se de “dois miúdos” que passaram meses na sua casa. No hospital israelita, o cirurgião Fortunato Levy tratava gratuitamente os doentes fugidos da guerra e uma tia de Samuel ajudava a Cruz Vermelha a receber crianças que chegavam de comboio. “Criou-se a secção de assistência aos refugiados e quem dava o dinheiro eram os americanos”, explica Samuel Levy, que recorda como “a cozinha económica passou a receber 200 refugiados por dia”, quando, até aí, eram cerca de 10 a 15. “O próprio Aristides ia lá comer”, quando foi afastado pelo Governo, porque o cônsul tinha 15 filhos.
Impedidos de trabalhar, os refugiados dedicam-se a pequenas actividades às quais Salazar fechava os olhos. “Davam aulas de piano”, refere Margarida Ramalho. “Faziam bolas de Berlim”, acrescenta Irene Flunser Pimentel. “Eram donuts com compota e frutos vermelhos” que uma refugiada “começou a vender à colónia alemã” e que, depois, seriam transformados num bolo maior e com creme de ovos, dando origem às actuais bolas de Berlim.
Anita Rosenthal Ayash lembra que a avó era “fraulein, ensinava alemão. Os refugiados sobreviviam como podiam”. Uns vendiam camisolas nas praias, “uma amiga da minha avó fazia pepinos em molho especial” e conseguiu fazer o “pé-de-meia a vender picles”, relata Anita, para concluir que “é preciso não esquecer. Vamos perdoar, mas não vamos esquecer”.
Além de recordar, Cookie Fischer elege como função, “na penúltima parte da vida”, “comemorar e honrar a vida de Aristides Sousa Mendes”, porque sem o visto de Aristides, “não estaria cá".
Tenho uma dívida de gratidão, porque havia tantas maneiras que a minha mãe podia morrer – e os primos – e eles puderam escapar. A minha mãe escapou com o visto [de Aristides]. Sem visto, ela terminava num campo de concentração
Para Cookie, é importante que se perceba que esta é uma “história de compaixão, consciência e os portugueses deveriam ter muito orgulho de que ele [Aristides] foi português”.
O nosso país está no coração de muitas vidas salvas na II Guerra Mundial, porque como frisa Loes Gompes, “sem os portugueses, teria havido muitas mais tragédias para as famílias judaicas”.
* A autora não segue as normas do acordo ortográfico