Marcha-atrás no trânsito. Está Lisboa preparada para ser uma cidade sem carros?
O plano de Fernando Medina, de restringir o trânsito na Baixa lisboeta, colocará este verão em marcha a redução das emissões de dióxido de carbono. Mas há outros aspetos a ter em conta.
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Lisboa, um habitat para carros e pessoas, conta 600 mil automóveis por dia. Como nas grandes metrópoles, as artérias da cidade pulsam de vida, mas esta nem sempre é uma ode triunfal.
O plano de Fernando Medina, de restringir o trânsito na Baixa lisboeta, colocará este verão em marcha a redução das emissões de dióxido de carbono em 60 mil toneladas, precisamente no ano em que a distinção como Capital Europeia Verde vem para Portugal. Lior Steinberg, um israelita a trabalhar na Humankind, uma empresa holandesa de urbanismo, esteve na capital portuguesa há um ano e reage à notícia que a TSF lhe dá com a satisfação de quem vê um "conto de fadas" a ser corrigido das "más decisões para receber cada vez mais veículos".
"Se estão muito atrasados no processo? Estamos todos, mas a discussão ainda agora começou. Isto ainda não aconteceu em muitas cidades." Oslo, Curitiba, Tel Aviv, Barcelona, Madrid e Pontevedra são alguns dos exemplos, onde, uma rua de cada vez, o espaço urbano "se vai fechando aos carros para os substituir por espaços verdes e estacionamento para bicicletas". Para onde quer que vá, Lior Steinberg faz questão de pedalar, mas em Lisboa foi diferente. "Não vi muitas bicicletas, vi demasiadas trotinetas, e pareceu-me mais fácil andar", lembra. Apesar de ainda estar longe de Oslo, uma das cidades mais verdes do mundo, diz-se um entusiasta de Lisboa, capital a que reconhece um "grande potencial verde".
Lisboa está a dar passos no sentido de se tornar mais sustentável, mas o caminho é longo, mais longo do que os mais de dez quilómetros que Rui Soares Costa, da Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta, percorre todos os dias entre a casa e o trabalho, de Alfama a Almada. "Em Lisboa, ao contrário do que acontece noutras cidades, a bicicleta ainda é um elemento estranho, o que desincentiva muita gente", sustenta. Apesar da "orografia complexa", a Capital Europeia Verde "tem planalto entre Benfica e os Olivais", e o declive "só é mais acentuado entre o castelo e a Baixa". Se os argumentos não convencem, Rui Soares Costa apresenta outros: "A meteorologia em Portugal tende a ser boa para pedalar, para não falar da eficiência. As bicicletas são especialmente eficientes numa distância até seis quilómetros."
Uma investigação realizada em 2015 na Universidade da Pensilvânia concluiu que as pessoas que fazem os trajetos diários de bicicleta são mais felizes. Rui Soares Costa faz parte da estatística e vive a cidade "a um ritmo completamente diferente". Só lamenta que não se instigue a cultura da bicicleta, até porque "os carros têm uma capacidade imensa de causar danos".
No relatório de sinistralidade rodoviária da ANSR fazem-se as contas aos mais de 135 mil acidentes em Portugal continental, às 472 mortes na estrada e aos 2288 feridos graves registados no último ano. Desde 2015, os acidentes rodoviários são a única causa de morte que não constitui doença entre as dez mais frequentes, de acordo com a OMS. Os carros estão na origem do agravamento das funções cardiovasculares, neurológicas e reprodutivas.
Um estudo da ISGlobal, datado de 2017, veio confirmar que o ruído do tráfego provoca tantas doenças quanto a poluição atmosférica. "O ruído urbano não é uma questão de conforto nem de surdez, mas de saúde pública. Cria e agrava o stress, aumenta a tensão arterial e gera problemas cardíacos." Rui Calejo Rodrigues, responsável do projeto Media da FEUP, focado no estudo do ruído urbano, deixa o alerta. À TSF, garante ainda que o "tráfego é uma das principais contribuições para a poluição sonora", além dos aviões e da ferrovia. O investigador defende a criação de "quiet areas" ["zonas tranquilas"], para que qualquer cidadão possa estar a 30 minutos, ou menos, do contacto com a natureza. Lisboa ultrapassa nalgumas zonas os valores máximos recomendados pela OMS: 40 dB (A) para horas noturnas e 55 dB (A) para o dia. Numa cidade em que os carros são eliminados, o silêncio é um dos primeiros sinais a desafiar os sentidos.
"Andar na rua Augusta é muito mais agradável, porque não há carros. Nos anos 1970 começou a abrir-se cada vez mais a cidade ao trânsito, mas a cidade nunca conviveu muito bem com o automóvel." É Diogo Mateus, investigador na área do urbanismo, que o fundamenta. O professor da Universidade Lusófona acredita que Lisboa pode existir sem carros, mas que a transição deve ser faseada, e nunca à custa das pessoas. "Rouba-se espaço ao passeio para fazer parqueamento e rouba-se espaço ao peão para fazer ciclovia. Não temos de roubar espaço aos peões, mas aos carros."
Para Fernando Nunes da Silva, "há que distinguir as duas coisas": uma é o objetivo de diminuir as emissões e a pressão do tráfego, outra é criar estas limitações a comerciantes e moradores. "O processo é criticável", aponta. O processo a que se refere o antigo vereador é a decisão de passar o trânsito automóvel na zona da Baixa-Chiado para a exclusividade de residentes, portadores de dístico e veículos autorizados, entre as 06h30 e as 00h00, a partir de agosto.
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As cargas e descargas, dentro desta ZER, a partir de 1 de junho de 2020, estão também autorizadas apenas no período entre as 00h00 e as 06h30, nas bolsas existentes para o efeito. Fernando Medina esclareceu que existirá a possibilidade de incluir dez convites mensais ao pacote de permissão de carros de que cada residente se poderá valer, mas esta não é uma diretiva definitiva.
Criar alternativas para que as pessoas cheguem à Baixa e a ocupem. Fernando Nunes da Silva faz nota desta prioridade à TSF, quando analisa a medida da Câmara Municipal. O antigo vereador da Mobilidade, que esteve envolvido nas alterações ao trânsito na Avenida da Liberdade e Marquês do Pombal, acredita que, apesar das boas intenções, o "processo é criticável", porque cria no centro "uma Disneyland para turistas e gente rica", se não se acautelar a logística das cargas e descargas do comércio local. Lamenta ainda que se retomem demasiado tarde "os planos iniciados em 2013". Para já, adivinha-se um processo lento. Em cada rua se continuará a encontrar o rugido dos motores, em cada rua se poderá perder mais uma oportunidade de vencer a corrida contra o tempo.
