Marcha contra islamização? Lisboa árabe foi tolerante e "liberdade de culto manteve-se" após reconquista
À TSF, o historiador Sérgio Luís de Carvalho recorda que a presença muçulmana na cidade é anterior à fundação de Portugal e que as três maiores religiões mundiais coexistiram pacificamente durante séculos em Lisboa.
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Na semana para a qual estava marcada uma manifestação contra a "islamização da Europa" nas ruas de Lisboa, que, apesar de ter sido proibida, os organizadores garantem que vai acontecer, a TSF falou com o historiador Sérgio Luís de Carvalho que recorda que a presença muçulmana na capital portuguesa é anterior à fundação de Portugal.
"Entre 711 e 1147, Lisboa é uma cidade árabe. A al-Lixbûnâ dos textos árabes", explica o historiador, garantindo que já nessa altura era "uma cidade de tolerância, ou seja, quer os cristãos que existiam na Lisboa árabe, quer os judeus viviam em liberdade religiosa, tinha o seu culto".
Os portugueses conquistaram Lisboa em 1147 e expulsaram os árabes, mas estes não foram para muito longe: "Parte mais ou menos de Arroios até à zona do Martim Moniz, até à zona do castelo, até à encosta do castelo. Essa é a zona da Mouraria que antes não era habitada."
Aí existiram, em tempos, duas mesquitas e uma escola religiosa, com a liberdade religiosa a manter-se, apesar de alguns preconceitos, especialmente em relação aos judeus.
"Nós temos notícias de alguns episódicos assaltos, sobretudo à judiaria, mas na realidade é curioso, por parte do poder central há alguma tolerância. Os reis de Portugal chegam a chamar-se reis das três religiões", conta Sérgio Luís de Carvalho à TSF.
A tolerância acabou com a chegada da inquisição. Da presença árabe quase não há vestígios. A norte fica a Calçada do Poço dos Mouros, a sul do a rua da Mouraria e pouco mais: "Os vestígios são mais ao nível da memória, são mais ao nível da imagética, dos aromas, ao nível da memória coletiva da cidade, ao nível também dos sabores."
Ainda assim, o historiador garante que a presença islâmica em Lisboa foi uma constante ao longo dos séculos, apesar de só em meados do século passado ter voltado a ganhar visibilidade, muito graças às comunidades moçambicana e goesa.
"E aquela zona vai retornar um bocadinho às suas origens, como se, curiosamente, o ciclo que começou em 1147 se vá, eu não digo fechar, mas direi reencontrar em 2024", descreve o autor do livro “Lisboa Árabe”. O que não esperava ver em 2024 era um protesto contra uma pretensa "islamização da Europa": "Quando nós pensamos que o bom senso se impõe, depois acordamos com estas coisas, porque, como dizia alguém, a besta que pariu o ogre ainda fecunda."
A Câmara Municipal de Lisboa proibiu o protesto neonazi contra a "islamização da Europa" que estava marcado para este sábado na zona do Martim Moniz e da avenida Almirante Reis, baseando-se no parecer da PSP que destaca "um elevado risco de perturbação grave e efetiva da ordem e da tranquilidade pública". Apesar disso, os organizadores da marcha garantem que a mesma vai acontecer, independentemente da proibição.