Maria de Lurdes Rodrigues: "Não é aceitável que a justiça tenha 70% dos processos inconclusivos"
A reitora do ISCTE, Maria de Lurdes Rodrigues, afirma que não é aceitável que a justiça levante tantos casos que não têm seguimento.
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A reitora do ISCTE e antiga ministra da educação, Maria de Lurdes Rodrigues, chama a atenção para a quebra dos prazos processuais e para a interferência do Ministério Público (MP) na vida política e isso aconteceu mesmo antes deste caso que levou à demissão do primeiro-ministro.
"Há uma interferência da justiça na vida política, nem sempre justificada. Neste caso não foi de todo justificado", afirma.
Maria de Lurdes Rodrigues pensa que "houve um momento absolutamente critico, em que se ultrapassou uma linha vermelha, que foi o caso do Rui Rio e das buscas na sede do PSD. Nesse momento alguém com responsabilidade deveria ter exigido ao Ministério Público (MP) uma resposta pronta".
A antiga ministra da Educação adianta perceber "que o MP tenha que fazer o seu trabalho, mas com o cumprimento de regras; e, há regras de prazo. Começa a não se aceitável que mais de 70% dos processos que são levantados não sejam conclusivos, sejam de insucesso e não se prestam contas sobre esta situação", defende.
"Há quem fale em golpe de Estado e eu chego a pensar que podemos estar sob um golpe de Estado, porque daqui a uns meses vamos saber que isto não era nada e não tem nenhuma consistência", conclui.
Face à situação política, a reitora do ISCTE está preocupada com a execução do PRR num governo de gestão, em especial a construção de residências para estudantes universitários.
Nesta conversa Maria de Lurdes Rodrigues confessa que os Orçamentos do Estado só contemplam a ciência com 0,35% do PIB por isso o excedente orçamental era bem-vindo neste setor.
Maria de Lourdes Rodrigues foi ministra da Educação no primeiro governo de José Sócrates. É professora e reitora do ISCTE e autora de dezenas de artigos científicos no domínio da sociologia e da educação, bem como das políticas públicas.
Já foi ministra da Educação, embora sem a tutela do ensino superior, e agora queixa-se que a lei de financiamento das universidades não é aplicada há 14 anos. O que falta aplicar na lei ou então o que falta mudar na lei?
De facto, a lei de financiamento na componente da distribuição pública pelas instituições de ensino superior não era aplicada há 14 anos, mas este ano e no próximo ano, o atual governo, ainda em exercício de funções, e a atual tutela da ciência e do ensino superior promoveram uma alteração e fizeram diligências no sentido de aplicar uma fórmula que permitisse recompor o equilíbrio das distribuições públicas entre as instituições de ensino superior, definindo um período de quatro anos para que os desequilíbrios na distribuição das dotações públicas fossem corrigidos. E é isso que esperamos, é nisso que acreditamos, que foram dados os primeiros passos de reposição de uma certa justiça relativa na distribuição dos dinheiros públicos. Porque o que se passou com a suspensão da fórmula de financiamento para a distribuição das dotações públicas, mantendo o histórico, é que todas as instituições em que o número de alunos aumentou ficaram prejudicadas, deixaram de ter o financiamento adequado ao número de alunos que tinham e aquelas instituições em que o número de alunos diminuiu ficaram beneficiadas, porque recebiam um montante superior àquilo que eram o número de alunos que lecionavam.
Mas estando nós perante um Governo de gestão, essa reposição não pode ficar suspensa?
Penso que não, porque haverá uma aprovação do orçamento, pensamos, e as dotações para o ensino superior já foram aprovadas e divulgadas, os seus orçamentos já foram submetidos à direção-geral do orçamento. Neste momento, as universidades de fundação, como é o caso do ISCTE, já preparam os planos e orçamento para serem aprovados nos conselhos gerais e, portanto, penso que nesse capítulo específico não haverá recuo. Porque sendo aprovado o orçamento, o governo de gestão o que tem de fazer é aplicar o orçamento e aplicará aquilo que estiver consagrado no orçamento. E isso já estava consagrado nas últimas versões do orçamento que foram dados a conhecer e, além disso, já temos um passado em 2023, portanto, 23 já foi assim, 24 será assim e esperamos que nos anos a seguir as coisas se corrijam.
Há dívidas da administração central do Estado ao ensino superior? Ou as universidades já receberam tudo o que têm a receber?
Acho que receberam tudo o que tinham a receber em 2023. Pode haver acertos de coisas pontuais de dinheiro público, de orçamento público da administração central, não creio, porque há umas rotinas de relação entre as instituições e a direção-geral do orçamento que funcionam. O que pode haver é atrasos no pagamento de projetos de investigação, de projetos de modernização tecnológica, mas isso já são aspetos específicos em que os financiamentos são dedicados a determinados investimentos que são feitos, seja em investigação, seja em outros domínios.
Sem financiamento garantido, as universidades não vão aceitar contratar investigadores para os seus quadros como propõe o Governo?
Essa era uma negociação que estava em curso e bastante bem encaminhada. Tanto a ministra como o senhor secretário de Estado revelaram uma grande sensibilidade a essa ideia de que não é possível vincular, não é possível ter carreiras de investigação sem orçamento público. Era um processo que estava em negociação, estávamos a negociar também a celebração do próximo contrato de legislatura e penso que essas eram matérias que iriam constar desse contrato. No fundo, a componente do salário dos investigadores de carreira que seria assegurado pelas unidades de investigação, pelas universidades e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia com fundos estruturais ou fundos europeus. E, portanto, foram feitas várias coisas, é um processo que se vai iniciar agora em 2024, depois 2025 e em 2026 é que caem a maior parte dos contratos chamados da norma transitória. E o que esperamos é que haja condições para resolver, porque, no fundo, vimos numa trajetória quando há 30 anos, nos anos 90, começou o desenvolvimento do sistema científico, era tudo bolsas e ainda há muitos investigadores que se mantêm com bolsas durante muitos anos, mas a partir de 2008, ainda com José Mariano Gago, instituíram-se os contratos a termo, primeiro com um termo curto, a seguir contratos com um termo mais alargado, com um tempo de exercício mais alargado e a promessa da contratação, e a promessa da vinculação, é nesse momento que estamos, era em 2024.
Mas os bolseiros ainda persistem na universidade como massa crítica da própria universidade e precariedade?
E os bolseiros vai ser sempre necessário existirem porque a investigação é uma carreira longa com períodos de formação, de iniciação e depois de senioridade e vinculação. Quem entra na carreira de investigação entra com o objetivo de prosseguir e de vir a vincular, fazer toda uma carreira ou de fazer o processo de iniciação e depois sair para outros setores, para as administrações públicas, as empresas e, portanto, no fundo, os programas doutorais, os programas de formação inicial, são uma espécie de incubadoras de formação altamente qualificada, de formação avançada. Os projetos de investigação nas universidades são feitos em regra com essa massa de recursos humanos digamos assim, vai ser sempre necessário ter essa abertura. Os investigadores nestas circunstâncias serão, penso, que cerca de 20 mil para 30 mil. Estou a falar do setor público e do setor de ensino superior, para cerca de 30 mil, 20 mil têm este estatuto e o objetivo é que os com maior senioridade que persistiram, que tiveram longos períodos com bolsa e depois longos períodos com contrato, que agora possam vincular e que isso se mantenha como esperança para os mais jovens que entram e sabem que no final da carreira vão ter a possibilidade de vinculação, que é uma coisa que atualmente não existe. Os investigadores não têm essa certeza.
Essa será uma matéria que ficará para o próximo executivo, uma vez que o governo está em gestão. Que outras questões poderão ser arrastadas e que a preocupam nesta área do ensino superior com a instabilidade política que vivemos nesta altura?
Preocupo-me com a execução do PRR. As universidades não tinham muitos programas, mas tinham, apesar de tudo, de alojamento estudantil a preços controlados e isso necessitava ainda de atualização do investimento por cama. Preocupa-me a execução dos outros projetos, Impulso Jovem, Impulso Adultos, agora os novos projetos que o governo ainda vai lançar, mas já estavam na calha, já tinham sido negociados. Preocupa-me se teremos ou não condições de continuidade para a execução desses projetos com um novo governo que venha agora. Isso, como são fundos estruturais, como são programas negociados com Bruxelas, acho que não correremos esse risco. Agora, o que me preocupa é se a alternância governativa faz recuar aquilo que é uma perspetiva de desenvolvimento científico, porque vimos crescendo há mais de 30 anos. Nos últimos anos, desde a Troika em que houve uma retração justificada pela crise que todos compreendemos, já era tempo de termos recuperado e a recuperação que se fez foi toda à custa de fundos estruturais, fundos europeus, e não com investimento público. E isso deixa o sistema científico e as universidades numa situação de fragilidade, isso é o que me preocupa.
E já agora, que avaliação política faz desta crise política espoletada por um caso de justiça?
Penso que este caso, uma vez mais, mostra que há uma interferência da justiça na vida política nem sempre justificada, neste caso não foi de todo justificada, mas acho que são ações de há muito anunciadas. Penso que houve um momento, e temos tido ao longo dos últimos anos vários sinais de casos inconsequentes sobre a atividade política ou mesmo a atividade económica em que o Ministério Público nem chega a acusar, divulga simplesmente as suspeitas e com isso cria manchas, nódoas, afeta a reputação de pessoas que depois se verifica que não deu em nada. Estou a lembrar-me de Miguel Macedo, estou a lembrar-me de inúmeras pessoas que foram vítimas de processos de inquérito precipitados, mal consolidados, mal conseguidos e que depois não dão em nada, mas, entretanto, a vida das pessoas ficou afetada. Portanto, isto há muito que vem sendo anunciado. Penso que houve um momento absolutamente crítico em que se ultrapassou uma linha vermelha, que foi o caso de Rui Rio e das buscas na sede do PSD e de nesse momento alguém com responsabilidade deveria ter exigido ao Ministério Público uma resposta pronta, porque se percebe, passados cinco ou seis meses, que não há nada contra Rui Rio, não há nada contra o PSD, mas entretanto foram levados os ficheiros com os militantes do PSD, foram levados documentos estratégicos da vida do PSD. Isto não é aceitável, isto é uma ingerência na vida, na liberdade, é pôr em causa a liberdade político-partidária, o que não é aceitável em democracia. Percebo que o Ministério Público tem de fazer o seu trabalho, percebo isso, mas com cumprimento de regras. E há regras de prazo, portanto, o mínimo que se pode exigir é que o Ministério Público tenha investigações maduras e consolidadas quando as anuncia e, depois, se elas estiverem maduras e consolidadas, que responda num prazo muito curto. O que é que mostra ao país, o que é que tem contra Rui Rio, o que é que tem contra o PSD, o que é que houve de anormal no comportamento destas instituições para um caso destes?
E agora com o primeiro-ministro?
Agora acho que isto foi só mais um passo numa coisa que, na minha opinião, primeiro, é absolutamente grave do ponto de vista da vida política e da separação da política. À política o que é da política e à justiça o que é da justiça. Há uma ingerência do lado da justiça na vida política, porque passaram seis meses. Se tivessem passado oito dias e tivesse havido resultados, todos compreendíamos. Passados seis meses não haver resultados é uma coisa que deixa alguma perplexidade, portanto, acho que a justiça tem de fazer o seu trabalho, o Ministério Público tem de fazer o seu trabalho, mas tem de o fazer bem feito, como é exigido a todos os portugueses, é exigido a todos os profissionais da saúde, do ensino, que façam o seu trabalho bem feito. Começa a não ser aceitável que mais de 70% dos processos que são levantados não sejam conclusivos, que sejam de insucesso e que não se prestem contas sobre esta situação. Portanto, acho que vivemos um momento muito crítico. Há quem fala em golpe de Estado e chego a pensar que podemos estar perante um golpe de Estado, porque daqui por uns meses vamos saber que isto afinal não era nada e não tem nenhuma consistência.
Acredita que será essa a conclusão?
Por aquilo que tem vindo a ser anunciado, não consigo perceber como é possível construir outra conclusão. O Ministério Público diz que recolheu muito material de rasto e agora é que vai estar em condições de fazer. Bom, mas não é assim que está estabelecido que o Código de Processo Penal estabelece que se fazem os inquéritos, não é desta forma, por arrasto, e, portanto, vejo um momento muito crítico e que me preocupa muito.
Há aqui também uma questão de tempos. Diz-se que o tempo da justiça não pode ser absorvido pelo tempo mediático e político. Há aqui uma absorção do tempo da justiça, ou seja, os tempos da justiça deviam ser diferentes?
Os tempos da justiça que estão consagrados nos códigos são tempos bastante rigorosos que nunca são respeitados. Portanto, essa ideia de que a justiça tem um tempo que pode ser dilatado ad aeternum, que um processo pode demorar dez anos até haver acusação, é uma coisa que é conveniente a algumas pessoas que invocam. Agora, isso não existe em lado nenhum. É o mesmo que uma universidade dizer que os alunos entram, mas que não sabe quando é que lhes dá aulas, quando é que vai ter tempo, quando é que vai ter meios. Os hospitais também não fazem isso, têm listas de espera, mas procuram responder pelas listas de espera e, portanto, na existência de tempos para alguns setores de vida pública não é aceitável e não é verdade que nos códigos não estejam estabelecidos prazos, eles são de forma sistemática prorrogados e não respeitados. Há sempre a invocação de argumentos para não respeitar e isso é uma coisa crítica, aliás, acho que há duas ou três coisas críticas na atuação do Ministério Público e não é no geral, é circunscrito, também não podemos generalizar que é tudo o Ministério Público, não é em determinados setores, é a precipitação na apresentação das suspeitas, a declaração pública de que abriram um inquérito com indícios que não chegam a ser indícios, com investigações que não estão consolidadas e, portanto, uma espécie de precipitação para condenar-se em julgamento é o que às vezes dá ideia. E depois é um tempo interminável, é outro aspeto que é muito negativo, um tempo interminável e depois o não haver consequências que sejam ao menos um pedido de desculpa perante os inocentes. Porque há inocentes. Um sistema de justiça que não considera nunca a possibilidade da existência de inocência e de não culpabilidade é um sistema de justiça que falha e às vezes bastava um humilde pedido de desculpas. Há erros em todos os sistemas, erramos e há pessoas que são inocentes e que ficam com um label de culpadas para toda a vida.
Sente que também já foi vítima da justiça no passado?
Fui vítima, sim, fui vítima de uma investigação precipitada, não consolidada, anunciada demasiado cedo, que me custou até do ponto de vista económico recursos que não tinha. Porque quem está na vida política está muitas vezes de forma desinteressada, não tem bens de família, não tem recursos para enfrentar e a justiça é cara, portanto, custou-me muito esse processo, mas realmente arranjei uma forma de enfrentar o mundo e a vida. Nunca nenhum membro da minha família ou dos meus amigos, olhando-me nos olhos, considerou que podia ser suspeita de alguma daquelas considerações do sistema de justiça e isso deu-me uma força para, apesar de tudo, enfrentar com os meios que tinha a justiça e confiar nela, porque realmente a justiça funcionou e as coisas foram repostas, mas era escusado ter levantado um processo com uma investigação tão pouco madura, tão pouco consolidada, tão baseada em preconceitos contra os políticos. Porque, no meu caso, acho que foi uma coisa de preconceito contra a atividade política.
Ainda no campo da política, considera que o Presidente da República tomou a melhor decisão ao decidir convocar novas eleições?
Acho que temos sempre de ter em atenção o contexto em que as decisões são tomadas e quando a decisão é tomada, provavelmente ele não tinha condições para tomar outra. Repare, o debate público que ocorreu naquele dia e nos dias a seguir ia todo no sentido da dissolução da Assembleia da República e da convocação de eleições. Pessoalmente, não concordo. Acho que havia uma maioria sólida no Parlamento, acho que as regras de funcionamento democrático das instituições deviam ter sido respeitadas e que podia ter havido um governo que emergisse de uma proposta dos deputados do Partido Socialista e que o próprio Partido Socialista desse continuidade. Mas também compreendo que o contexto político, quer dizer, a morte deste governo era pedida há muito tempo, por isso é que muita gente fala em golpe de Estado. Há quanto tempo é que se pedia que esta maioria absoluta fosse dissolvida? Há muito tempo. Portanto, percebo que o Presidente da República possa ter tido condicionantes na sua decisão que o conduziram a isso e depois o rebuliço de notícias e de acontecimentos não conferiu nenhuma serenidade. Acho que a pessoa que se manteve com mais serenidade foi o primeiro-ministro que desde o primeiro momento não hesitou em dizer que não cabia ali, que aquele não era "o seu fato" e que era o momento de sair. Acho que falou com muita serenidade e que procurou depois compor as coisas, mas não estava nas mãos dele.
O que é certo é que haverá um novo governo. Seja ele de que quadrante for, na sua opinião, deve manter-se a separação da ciência e universidades das outras tutelas?
Acho que se deve manter. A ciência e o ensino superior devem ser mantidos juntos. Repare que no início a ciência foi criada como um setor de política independente. Era independente de quê? Era independente da política de planeamento, da política de inovação, da política de território, da política de economia e da política de ensino superior também. Acho que naquele momento era necessário fazê-lo. A ciência tinha estado na dependência do Conselho de Ministros, da presidência do Conselho de Ministros, tinha estado na dependência da educação, tinha estado na última fase na dependência do planeamento, quando o ministro Valente Oliveira sai da educação para o planeamento, leva a ciência consigo. E quando se dá o grande corte, em 95, com Mariano Gago no governo de Guterres, é a perceção de que é preciso que a ciência ganhe um espaço próprio de afirmação. E ganhou esse espaço próprio, porque tem instrumentos próprios e mecanismos próprios de financiamento. E, portanto, separar a ciência do ensino superior, do planeamento, da economia e da inovação fez todo o sentido naquela altura. Com a evolução a que assistimos, o setor mais forte dentro do sistema científico nacional são as universidades. É nas universidades que estão os 200 maiores centros, é nas universidades que está a maioria dos investigadores, é nas universidades que se executa 40% da despesa de investigação. E, portanto, é o momento, na minha opinião, de cruzar, de fazer a articulação entre estas duas áreas de política. E isto em nada desrespeita aquilo que foi o pensamento do José Mariano Gago quando reivindicou a ciência à parte.
O que acho é que é necessário ter presente que o ensino superior é uma atividade diferente da ciência, com instrumentos de financiamento diferentes. É diferente da economia, é diferente da inovação. E se mantivermos essa perceção de que são setores de intervenção diferentes, que têm instrumentos diferentes da ciência, não deve e não pode ser financiada sem avaliação. Por exemplo, isto é um princípio fulcral na política científica, sem avaliação. Há muitas outras atividades públicas que são financiadas sem avaliação, como sabem, não é? Mas na ciência isso não pode acontecer porque será a morte da qualidade da ciência. Portanto, são estas especificidades que precisamos de ter presentes. Isso não retira que tenhamos de desenvolver instrumentos que liguem os dois setores. E neste livro a proposta que faço é que, de facto, através da instituição de carreira de investigação dentro das universidades, através do reconhecimento do papel que as universidades têm na investigação e da responsabilização das universidades pela investigação que têm, é uma forma de começar a fazer esse caminho. Foram muitos anos de caminhos paralelos, de desconfianças mútuas, de uma autonomia que, apesar de tudo, permitiu o desenvolvimento. Agora, em muitas universidades, como por exemplo no ISCTE, em Aveiro e na Universidade do Minho, em que as unidades de investigação estão dentro da orgânica da universidade, mas mantém a sua independência. Em outras universidades estão fora e devemos ter esta diversidade de formatos e de funcionamento. Não se deve obrigar a um modelo único, na minha opinião. Mas as universidades têm de ter uma responsabilidade, sobretudo de financiamento e de tutela, da investigação que se faz no seu interior ou no seu perímetro. E digo uma responsabilidade de tutela e de integração orgânica, não é de determinação do que é que a ciência deve fazer. Não é mandar na ciência. É tutelar, é criar condições para que a ciência se possa desenvolver dentro das universidades.
Quando fala deste livro, estamos a falar de "O futuro da ciência e da universidade", onde assina um texto que diz que o investimento público em ciência está estagnado desde 2011 e que os números do investimento em investigação pelas empresas não são fiáveis. Afinal, qual é a realidade de investigação e desenvolvimento neste momento em Portugal?
O investimento público está, de facto, estagnado. Temos duas coisas: temos a despesa executada nas atividades de ID e que se apura mediante um inquérito que é feito às universidades, às unidades de investigação e às empresas. E temos o investimento que é apurado através de outros instrumentos, como o Orçamento do Estado, etc. E o que se passou nos últimos anos, desde 2011, foi que o investimento público, podemos dizer assim, baixou em 2011 muito e depois a partir de 2015 estagnou. Mas o investimento público do Orçamento do Estado no orçamento público tem duas componentes: tem o Orçamento do Estado e tem os fundos europeus. Quando se juntam os dois fundos, a despesa pública estagnou. Quando se desagrega, percebe-se que o Orçamento do Estado atingiu níveis de 1991, portanto, há uma regressão, não é estagnação, é uma regressão, e que a ciência tem sobrevivido em patamares de estagnação à custa dos fundos europeus. E isto é uma coisa muito preocupante, porque aquilo que está consagrado e que as pessoas conhecem, o que é divulgado, são os 3% do PIB. Ou seja, a ciência tem de atingir 3% do PIB, isto é um indicador com que as pessoas estão relativamente familiarizadas, mas nesses 3% do PIB, aquilo que se consagra é que 1% é investimento público do Orçamento do Estado. E o que se passa neste momento é que estamos com 0,34 ou 0,35.
Então em linguagem económica podemos dizer que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, que é quem financia a ciência pública, está descapitalizada?
Está descapitalizada, acho que resumiu muito bem. Tem sobrevivido com fundos europeus e não com o Orçamento do Estado, porque o Orçamento do Estado caiu para níveis iguais aos de 1991, quando José Mariano Gago fez o manifesto para a ciência e tecnologia, para a ciência em Portugal, justamente defendendo a necessidade de aumento de investimento público.
E em relação às empresas, porque diz que os números não são fiáveis, instrumentos como o SIFID, o Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e Desenvolvimento Empresarial, têm apesar de tudo os seus méritos e têm tido algum impacto?
Têm tido algum impacto e são um instrumento muito importante que existe há muitos anos, desde os anos 90. Ainda trabalhava no Observatório quando foi criado esse incentivo fiscal. E se olhar para a série longa, ele mantém-se com um nível aceitável de investimento, foi um instrumento muito importante em muitas empresas que fazem investimentos sérios em investigação. O que se passou a partir de 2019, e é quando há o pico, entre 17 e 19, há um pico do chamado investimento empresarial, não é de facto um investimento empresarial, é um investimento em fundos de SIFID que foram, entretanto, criados. Portanto, há uma espécie de futuro. Houve um debate imenso no final de 22 sobre esta matéria, porque o governo mandou fazer um estudo sobre os benefícios fiscais e o SIFID foi um dos benefícios fiscais analisado e aquilo que se percebeu foi que o benefício fiscal deixou de beneficiar diretamente as empresas que faziam investimentos em ID e passou a beneficiar também empresas que investiam em fundos que haviam de ser aplicados qualquer dia, e o prazo de aplicação era um prazo muito dilatado, em investigação e desenvolvimento. O que é que isto deu? Uma corrida a investimento nestes fundos. E, portanto, não é verdadeiramente um investimento em ciência, é um investimento em fundos, em capitais de risco, que qualquer dia, mediante algumas condições, poderão ser aplicados. Isto quando se faz, quando se apura o montante deste benefício fiscal que é superior a 300 milhões de euros, é dinheiro do Estado, é dinheiro público, é dinheiro que o Orçamento do Estado não recebe para que fique nas empresas para ser investido em investigação. Ele não é investido em investigação, ele é investido em fundos e o Estado deixa de ter os recursos de que necessitava para investir ele próprio em investigação, em ciência e desenvolvimento.
Então defende alterações ao regime?
Foi promovida uma alteração em 2023, justamente por causa de um debate em que participaram Susana Peralta, Carlos Fiolhais, houve uma série de investigadores que participaram nesse debate, sobretudo do lado da economia. E o governo promoveu alterações em 23. Não sei ainda qual é o impacto que tiveram essas alterações. O que me dizem, mas não há ainda resultados do inquérito ao potencial científico-tecnológico, temos de esperar, é que já há um abrandamento dessa despesa de ID com base no SIFID. Mas não sei, acho que vamos ter de esperar alguns meses para perceber se houve ou não alguma regulação mais eficaz nesses benefícios fiscais.
E essas alterações são suficientes para relançar o sistema científico português ou é preciso mais? O que é preciso?
Mais investimento público, porque sem dinheiro público não há ciência. Isso é em todos os países desenvolvidos, mesmo aqueles que tenham 2% ou 3% de investimento empresarial, contam sempre com uma percentagem significativa de investimento público.
Então o excedente orçamental que temos poderia ou deveria ser aplicado em ciência?
Gostaria muito que uma parte fosse, não é preciso ser todo o excedente, mas que uma parte do excedente orçamental pudesse ser aplicada em ciência para a promoção do emprego científico, para as infraestruturas e a melhoria dos laboratórios.
Para a saúde e para a educação, que têm sido duas áreas com muita contestação e com uma degradação dos serviços prestados aos portugueses?
Sim. O dilema do ministro das Finanças é justamente esse: não há setor público que não faça um requerimento para aumentar o investimento público. Mas vamos lá ver, é bastante diferente o setor da ciência e do ensino superior dos outros setores da educação e da saúde. Não estou a dizer que é melhor nem pior, mas é um sistema que não apresenta falhas de eficiência ou de funcionamento. Reparem que mesmo nesta situação em que o investimento público decaiu, a produção científica continua a aumentar. Portanto, os investigadores continuam a trabalhar. Vejo na minha instituição que dois anos consecutivos apresentámos, em cada ano, cem projetos de investigação nas chamadas para o financiamento de projetos e vimos aprovados cinco. Portanto, em dois anos vimos aprovados dez. Mas a produção científica continua a aumentar, porque o trabalho dos docentes, o trabalho dos investigadores continua a mobilizar-se para. Mas isto tem limites, não é? Tem limites na idade das pessoas, tem vários limites, mas a ciência e o ensino superior não se apresentam como problemáticos, com questões críticas a resolver. Na educação e na saúde há questões críticas ainda a resolver.
Não basta reforçar o financiamento, é preciso uma profunda reestruturação dessas áreas?
Não sei se será profunda, mas aquilo que se consegue perceber pela imprensa, pelas notícias, pelo debate público, é que há questões de organização absolutamente críticas que não estão resolvidas. Dou um exemplo: tenho netas pequenas, as duas adoeceram, uma a um sábado, e fomos a uma urgência num hospital das crianças, o Dona Estefânia. Esperámos duas horas, mas saiu da Estefânia medicada, tomou uma injeção de penicilina porque tinha não sei o quê na garganta. Na segunda-feira adoeceu a outra, a mais velha. Já não foi, evidentemente, às urgências, porque as urgências precisam de facto de ter um fluxo moderado e, portanto, foi ao centro de saúde. Mas chegou ao centro de saúde e não havia condições para fazer uma análise, não havia condições para, no fundo, diagnosticar e promover logo a terapêutica necessária, portanto, não pôde tomar a injeção de penicilina porque não havia condições para fazer a análise se era alérgica à penicilina ou não, o que significa que perdeu as mesmas duas horas, veio de lá e foi para a fila da farmácia para comprar um antibiótico, que é muito mais grave e mais caro do que a injeção de penicilina. Portanto, há aqui de facto um problema de organização no setor da saúde que não sei por onde se começa a resolver nem como se faz, mas que são problemas que não se sentem no setor da ciência e do ensino superior, são de natureza diferente, diria.
Já foi Ministra da Educação. Como é que olha para este problema dos professores? Se fosse Ministra da Educação, haveria uma reposição dos anos de serviço que os professores pedem ou não? O governo argumenta que seria despesa permanente e insustentável para as contas públicas.
Em regra, não faço cenários porque acho que não há um voltar para trás, nunca se volta para trás e não ponho sequer o cenário de voltar a ser ministra nem membro de nenhum governo e, portanto, procuro acompanhar e procuro analisar. Aquilo que me parece é que no caso dos professores, que tive a responsabilidade de congelamento de carreira, tive a responsabilidade, não foi no governo em que estive que se iniciou, mas foi um governo em que se prosseguiu, mas o que acho é que passaram muitos anos sem que nada se fizesse. Chegarmos a um ponto, e já escrevi um artigo sobre isto, em que não há um único professor no décimo escalão, no topo da carreira, significa que se passaram demasiados anos sem olhar para os efeitos que a estruturação da carreira provocava na vida das pessoas. Se a isso associarmos todas as alterações que foram feitas às condições de aposentação, acho que há uma geração de professores que está a chegar ao limite da idade, que não progrediu durante muito tempo e o problema são os salários que têm atualmente, é a expectativa de uma reforma com condições que estão muito longe daquilo que eram as expectativas quando entraram na carreira. Portanto, acho que há aqui um problema que é mesmo um problema da forma como se enfrenta o futuro na aposentação e são condições muito diferentes das que tiveram uns professores uns anos antes, cinco ou seis anos, e que vão estar nas mesmas condições de aposentação, mas com muito piores condições de valor da pensão. Acho que isto era um problema que precisava de ser olhado, foi isso que escrevi, que foram muitos anos de degradação da carreira sem que nada se tivesse feito e consigo compreender o que é essa frustração de expectativas.
As universidades têm-se queixado bastante da falta de capacidade de introduzirem novos cursos, novas licenciaturas no mercado, digamos assim. Temos uma agência de acreditação que é um organismo conservador, porque não reconhece esta multidisciplinaridade das novas formações?
Acho que há um problema. Como reitora do ISCTE e a nossa instituição não tem de facto uma razão de queixa porque resolvemos inovar em 2009 com um curso que não existia, mas há de facto uma regra que é um pouco restritiva e que bloqueia a capacidade de inovação, que é uma regra que diz que uma universidade para abrir um curso de licenciatura tem de encerrar outro. Isso pode ser possível em algumas universidades em que não há procura para alguns cursos. Mesmo assim é difícil, porque imagine um quadro em que quero fazer um curso de ciência de dados e tenho um curso - que não é o caso, mas vou dizer mesmo assim -, de sociologia que não tem procura. Os nossos cursos todos têm procura, mas imagine que tem esse cenário: não consegue encerrar psicologia, antropologia ou sociologia para abrir ciência de dados, porque os requisitos são outros. Considero que essa é uma regra que precisava de ser revisitada, porque não permite de facto inovar. Agora, a minha experiência concreta foi resultado de muita batalhação, mas enfim, consegui em 2019 criar a primeira licenciatura em ciência de dados e depois o governo resolveu abrir e atualmente muitas universidades criaram essa licenciatura. E depois consegui abrir uma nova escola em Sintra com 10 novos cursos, inteiramente novos, não repetem curso nenhum existente no país na área das tecnologias digitais. A OCDE recomenda há muito tempo que se evolua no paradigma da formação em engenharia para as tecnologias de informação e comunicação e fizemos essa tentativa.
Foi uma boa aposta?
Foi uma boa aposta. No próximo ano acho que teremos 700 alunos e no ano a seguir, em 25, acho que teremos 900 alunos.
Foi uma aproximação às necessidades das empresas?
Das empresas, dos jovens, às expectativas dos jovens, às necessidades do mercado de trabalho, às necessidades de que o país dispõe. E a nossa interação com a agência foi, apesar de tudo, acho que muito acompanhada, porque era um projeto também de uma grande dimensão e muito, muito disruptivo, mas a reação da agência foi positiva.
