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Na paisagem costeira de Carcavelos, no concelho de Cascais, encontra-se a Quinta dos Ingleses, um testemunho vivo da história e da herança cultural que remonta ao século XVIII, além de ser um refúgio de biodiversidade. O projeto de urbanização previsto para a área tem gerado um intenso debate entre promotores imobiliários, autoridades locais e defensores do património. Petições, manifestações e campanhas de sensibilização têm sido realizadas até à exaustão, mas, após decisão do tribunal, as obras retomaram no início do ano.
Cinquenta e dois hectares de zona verde junto ao mar, em Carcavelos, estão em risco. A luta pela preservação deste pinhal centenário e pela conservação do património histórico para as gerações futuras dura há pelo menos 60 anos. Com o projeto aprovado pela Câmara Municipal de Cascais, está prevista a construção de um megaempreendimento na zona da Quinta dos Ingleses, que contará com 850 apartamentos, um hotel e um centro comercial. Se estas obras se realizarem, prevê-se que apenas reste uma área de oito hectares de espaço verde.
A intenção de construir nestes terrenos remonta a 1960. Eduardo de Arantes e Oliveira, naquele tempo ministro das Obras Públicas de Salazar, opôs-se à concretização de qualquer projeto que visasse a destruição da Quinta dos Ingleses. Desde então, vários projetos foram apresentados e discutidos, mas ficaram por consumar, por não terem as aprovações necessárias. Foi apenas, em 2014, com a aprovação do PPERUCS (Plano de Pormenor do Espaço de Reestruturação Urbanística de Carcavelos-Sul) que se consolidou o projeto respetivo ao futuro da Quinta. Nesse ano, formou-se um movimento cívico com o fim de salvaguardar o local.
O SOS Quinta dos Ingleses começou por ser um movimento cívico e tornou-se oficialmente uma associação em 2021. Fazem parte da organização cerca de 20 pessoas, com empregos diversificados. O que têm em comum é a estima por Cascais, pela sua natureza e patrimónios únicos, que não querem ver desaparecer. Pretendem informar e envolver a população do concelho nesta causa. Através do diálogo entre todas as entidades competentes - Câmara Municipal de Cascais e promotores Alves Ribeiro e St. Julian’s Association - procuram conservar o pinhal e a sua biodiversidade, manter a qualidade de vida e a identidade de Carcavelos; proteger a praia; manter as condições favoráveis à prática de surf e valorizar um espaço verde que ajudará a mitigar o impacto do aquecimento global na zona. Todos estes objetivos se encontram publicados no site da associação. Existe intenção, segundo Manuel Valadas Preto, vogal da SOS Quinta dos Ingleses, de tornarem a associação numa ONGA (Organização Não-Governamental Ambiental).
Visão para o futuro
Os mentores da associação de defesa da Quinta dos Ingleses defendem a criação de um parque urbano, com um núcleo museológico/centro interpretativo de toda a história relacionada com os edifícios, ainda existentes, da companhia de cabos submarinos e as infraestruturas necessárias, sustentáveis. Nesse parque urbano, poderia existir uma escola da floresta, um skatepark, percursos de BTT e outros espaços dedicados à prática de atividade física, bem como uma vinha e enoturismo; áreas de passeio, merendas e concertos, entre outros.
Criaram uma plataforma que funciona como simulador de sonhos. “Com slides de carácter informativo consegue-se mostrar às pessoas que o património da Quinta dos Ingleses não é somente o ambiental. Há uma série de elementos do ponto de vista arquitetónico, histórico, ambiental, de biodiversidade e de proximidade à praia”, explica Sofia Duarte, membro do Conselho fiscal da associação e criadora desta plataforma. Como refere: “A partir desta ideia, conseguimos obter resultados estatísticos que indicam no que é que as pessoas votaram entre as opções possíveis, o porquê de terem votado nas mesmas e se também têm sugestões. Não fizemos um projeto porque seria difícil agradar a todos e, desta forma, conseguimos envolver toda a gente. Com base na maioria das respostas, faríamos um referendo que poderia resultar na elaboração de um projeto para a Quinta.” Sofia Duarte expressa a vontade que todos têm em colaborar com a Alves Ribeiro para “fazerem um projeto diferenciador, que é um grande desafio. Eles são os donos do terreno e nós somos os donos das ideias”.
Manuel Valadas apresenta o modelo de um projeto de sustentabilidade e preservação ecológica que pode vir a inspirar a viabilidade e a visão do parque urbano pelo qual tanto lutam: “Estive na outra ponta dos cabos, em Cornwall, e lá, eles tiveram um problema semelhante ao da Quinta dos Ingleses. É uma zona menos central e urbana, mas que tinha grande pressão. Apesar disso, eles foram capazes de transformar o sítio numa reserva natural e também conseguiram tornar as instalações dos cabos submarinos num museu - o PK Porthcurno Museum of Global Communications.”
Protestos sem efeito
Há cerca de um ano, deu-se a vedação da totalidade da área por parte da Alves Ribeiro, construtora e proprietária do terreno, a pedido imediato da Câmara Municipal de Cascais. Na sequência deste evento, o início das obras para a construção da mega urbanização anunciava-se para breve, mas não existia anúncio de uma data exata. Na vedação metálica, podem-se ler mensagens de contestação, escritas com graffiti.
Sem verem os objetivos cumpridos, os protestos não pararam ao longo de 2024. Desde os mais jovens até aos mais idosos, milhares de pessoas empreenderam esforços para travar o avanço das obras. No dia 15 de maio de 2024, entregaram, na Assembleia da República, a segunda petição “Pela proteção da mata da Quinta dos Ingleses". Contava com mais de oito mil assinaturas e ficou a aguardar discussão em plenário.
A juntar à questão ambiental, os terrenos albergavam um problema social. Cerca de 50 pessoas que se encontravam instaladas na Quinta dos Ingleses, devido a dificuldades financeiras, receberam uma ordem de despejo, a ser cumprida até abril de 2024.
Apesar dos protestos e das inúmeras tentativas para travar o avanço dos trabalhos, as obras de urbanização na Quinta dos Ingleses retomaram no início de 2025, depois de o tribunal de 1.ª instância de Sintra ter recusado a providência cautelar interposta pela SOS Quinta dos Ingleses. A 3 de março de 2025, centenas de pessoas realizaram, novamente, um protesto silencioso no mercado de Carcavelos, erguendo cartazes contra o que consideram ser um crime ambiental. Foram realizadas várias tentativas para contactar o presidente da Câmara de Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, para obter a posição da autarquia, mas até ao momento, não foram recebidas quaisquer declarações.
O passado histórico
A Quinta Nova de Santo António, mais conhecida por Quinta dos Ingleses, foi fundada no século XVIII. Começou por ser propriedade dos morgados da Alagoa, nobilitados por D. José e protegidos pelo Marquês de Pombal, com fins de lazer, assim como também para a produção do célebre Vinho de Carcavelos.
Este espaço também apresenta um passado histórico. Desempenhou um importante papel durante a Guerra Peninsular (1808-1812) e durante das invasões francesas. Constituiu um dos redutos defensivos da retaguarda ocidental do forte de São Julião da Barra, fazendo parte do conjunto das Linhas de Torres (Vedras). Esta estratégia foi pensada e desenhada por militares portugueses em simultâneo com os ingleses para conter os exércitos de Napoleão. Pouco tempo depois, por volta de 1832, durante as guerras civis entre absolutistas e liberais, a quinta recebeu igualmente um aquartelamento militar, sendo novamente requisitada conforme instruções do Ministério da Guerra.
A propriedade foi vendida, em 1870, à firma inglesa Falmouth, Malta & Gibraltar Telegraph Company, uma companhia de cabos submarinos. A empresa implantou uma linha telegráfica submarina que, a partir de Carcavelos, ligava a Inglaterra a Gibraltar e a Malta com o objetivo de chegar à Índia. Por esta altura, recebeu o cognome de “Quinta dos Ingleses”, devido à influência que os funcionários britânicos tiveram na região.
Os ingleses trouxeram novos hábitos e costumes, bem como inovações tecnológicas. Com eles, deu-se a introdução e a divulgação de desportos como o críquete, o ténis, o râguebi, o golfe e, especialmente, o futebol - a sua equipa dominou o quadro futebolístico nacional durante décadas.
Parte do terreno foi cedida, em 1889, para ser utilizada na construção da linha de caminho de ferro entre Lisboa e Cascais. Ao longo dos anos, aconteceram novas cedências, nomeadamente para a construção de caminhos e aproveitamento de espaço e para a edificação do Colégio St. Julians.
Mafalda Ribeiro é estudante do 2.º ano da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL). Desde cedo que se interessa por ciências sociais, o que a levou a frequentar o curso de Línguas e Humanidades no ensino secundário, no qual consolidou o gosto pela comunicação. Considera História e Português as suas disciplinas favoritas. Além das palavras, encontra na dança - a sua maior paixão - outra forma de comunicar.
