Mercado disse à Carris que "aquele preço base não permite cuidar daqueles elevadores e assegurar a manutenção"
O problema de suborçamentação massiva de concursos esconde ajustes e procedimentos pouco claros. João Gaspar Simões, especialista em direito administrativo, questiona como terá sido feito o concurso da Carris para a manutenção dos elevadores. Uma entrevista na TSF onde alerta para lições a tirar com a tragédia.
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O que é que pode ter sido mal feito no processo do concurso que a empresa Carris fez relativamente à manutenção dos elevadores?
Bem, aparentemente o que foi mal feito, que vamos ter de ter a certeza, é a orçamentação do preço base. O preço base é um elemento essencial de qualquer concurso público e de um caderno de encargos que sinaliza o mercado. O máximo que uma entidade adjudicante, uma entidade pública, está disposta a pagar por todas as prestações que são essenciais para cumprir a missão de serviços públicos que está em causa. Este preço base é uma obrigação legal de acordo com critérios objetivos e através de elementos que a lei tipifica como consultas preliminares ao mercado. A consulta do portal público BASE serve para ver quais são os preços dos concursos semelhantes e aferir quanto é que a entidade pública adjudicante pagou por prestações similares.
E houve essa consulta preliminar ao mercado?
Não temos qualquer tipo de informação, não nos é dito; aquilo que está acessível, não nos permite saber se esse concurso que foi abaixo, como se diz, teve essa consulta preliminar ou não.
O concurso vai abaixo porque todos os concorrentes apresentaram preços acima do que era o preço base colocado no concurso pela imprensa...
É exatamente isso, ou seja, os interessados ou não apresentaram proposta ou os que apresentaram proposta apresentaram-na com um preço superior ao preço base, quase sabendo que o efeito automático disso é inapelavelmente a exclusão. Ou seja, o mercado está a dizer que aquele preço base não é sustentável, não permite fazer as prestações. Aquele preço base não permite cuidar daqueles elevadores e assegurar aquela manutenção. É isso que é dito de forma clara por quem percebe, por empresas. E não é só uma, serão várias. No concurso que deu origem ao contrato que estaria em vigor até agosto, foram quatro empresas que concorreram e apresentaram um propósito para o anterior contrato e, portanto, essas empresas suponho que poderão ter apresentado também e disseram à entidade pública adjudicante que isto não é sustentável. A questão é que a entidade pública adjudicante soube disto no dia 26 de maio deste ano e aparentemente isto terá sido a causa para extinguir o concurso e para justificar o ajuste direto que se fala que existe, mas que não há qualquer publicação no Portal BASE que o comprove.
Mas a lei permite que uma empresa, uma entidade, faça um ajuste direto quando anteriormente tenha havido um concurso que não teve concorrentes, digamos assim...
Ficou deserto. A lei permite isso, mas a lei também tem esta válvula de escape para assegurar que há continuidade na prestação de serviço público. Mas há que cumprir e ter noção de que é uma válvula de escape e, como todas as válvulas de escape, tem que ter cautelas no seu uso. Em primeiro lugar, temos que aferir se há alguma culpa, em sentido amplo, na entidade adjudicante para que este concurso público tenha ficado deserto, nomeadamente que razão tem a entidade adjudicante para que este preço base tivesse esta composição. Que estudos é que foram feitos? Que consultas é que foram feitas? Como é que justificam que este preço chegava para todas as prestações contratuais que estavam em causa? Em segundo lugar, por que é que a entidade adjudicante demora dois meses a extinguir um concurso por um motivo que soube dois meses antes? Aquele concurso estava fadado a ser extinto. Não havia outra alternativa. Por que é que demora dois meses a ser extinto e a lançar-se depois um procedimento de ajuste direto?
E demorou dois meses a fazer esse anúncio do procedimento de ajuste direto?
Nós não temos informação sobre quando é houve esse procedimento de ajuste direto. O que se diz é que foi celebrado um novo contrato e esse novo contrato só pode ter sido celebrado ao abrigo de um ajuste direto, porque não foi lançado nenhum outro procedimento. Isso sabemos, porque senão ele teria sido publicitado em Diário da República, como foi o anterior, portanto, terá que ter sido um ajuste direto, que só é possível precisamente por causa do momento e do tempo e da forma como o outro acabou. Ainda assim, estamos a falar de algo que terá demorado duas a três semanas a tramitar e que aparentemente só teria entrado em vigor agora, esta segunda-feira. São questões que têm de ser esclarecidas, mas sobretudo a tragédia é o que é e isso não passa com regras de direito administrativo- Mas alturas trágicas são oportunidades para tirarmos lições. Isto não é uma coisa que aconteceu neste concurso. Este concurso teve efeitos trágicos. Agora, há suborçamentação massiva de concursos na administração pública em Portugal. É um problema diário e é um problema diário que esconde depois ajustes diretos e procedimentos que não são claros, não são transparentes e é um problema que esconde uma deficiência na prestação depois do serviço público- Não se pode exigir que alguém que está a fazer um contrato suborçamentado - provavelmente não está apenas a esmagar a margem, está a esmagar o próprio custo de execução do contrato - que possa fazer bem e possa servir o interesse público. Bem, então aquelas obrigações não estão bem dimensionadas; ou o preço para o serviço também não está bem dimensionado.
Este tipo de práticas que esta entidade, no caso a Carris, teve é algo que é, portanto, recorrente?
Sim, eu acho que há uma experiência... qualquer pessoa que lide com contratação pública poderá dizer que estes casos são típicos: os casos de suborçamentação do preço base que levam a concursos que são inviáveis e a contratos que depois têm problemas graves na sua execução, mas...
Quando a empresa antecipadamente já sabe que dali a algum tempo vai ter que fazer um novo contrato. Para renovar a manutenção, por exemplo.
Sim, eles são particularmente graves nestes casos. Quer dizer, isto não foi uma contratação pública urgente. Isto não foi um prédio que estava a ameaçar ruir e que se teve que contratar uma empreitada para escorar o prédio de um dia para o outro. Esses concursos, essas urgências têm regras próprias. Isto é um contrato recorrente. Estes elevadores existem, alguns, há centenas de anos, a manutenção que a empresa Carris faz destes elevadores é recorrente, de três em três anos. Tem que se lançar este concurso e, portanto, não há razão, num concurso recorrente em que eles (Carris) são detentores de todo o conhecimento do mercado, para haver uma deficiência de Informação, não há! Porque eles sabem: todos os anos eles veem todas as subidas de preço, têm todos os dados sobre o que é que estes materiais e o que é que a mão de obra encareceram e fizeram esse acompanhamento nos últimos 20, 30, 40 anos, porque há 20, 30 ou 40 anos que estes contratos de manutenção existem com estas empresas e com outras antes de a Carris ser uma empresa municipal. Tudo isso existia de três em três anos.
Se é sempre a mesma coisa, se há conhecimento do mercado, se há experiência, então houve negligência?
Não tenho dados que me permitam, neste momento, afastar essa hipótese. Tudo aponta para coisas que não podem ser explicadas e que a diligência normal ditaria que correriam de outra forma. Não há nada que leve a que empresas do mercado não respondam melhor. As empresas, potencialmente, querem prestar serviços e ganhar com isso o seu dinheiro. Se não apresentam todas, ainda por cima numa coisa e que aparentemente antes não teve perturbação, é porque alguém fez mal ao seu trabalho.