Na Casa Pia, cerca de 120 alunos têm mais 10 horas no currículo escolar para aprenderem música. Uma porta que se abre ao Futuro. Ouça a reportagem da TSF.
Corpo do artigo
No pátio já deu o toque para entrar. Às 10h30, os pés arrastam-se para voltar às salas de aula. Mas desta vez a turma do 8.º M foi surpreendida. Está cá a diretora e o coordenador. "Vamos ter uma surpresa. Vamos todos ao salão de festas. É para começar às 11h."
Já não é hoje que fazem o teste de diagnóstico de Inglês. Fica marcado para terça-feira. Uff! Mas... que surpresa é esta?
O burburinho está de volta aos corredores do Colégio D. Nuno Álvares Pereira; igual ao de tantas outras escolas. Esta tem uma particularidade - é uma escola de ensino integrado de música. Nesta instituição da Casa Pia, em que a grande maioria dos alunos vem de famílias carenciadas, aprende-se Português e Ciências como nos outros sítios; mas depois têm mais dez horas para aprender a tocar um instrumento.
A porta do salão de festas finalmente abriu. O anfitrião é Fernando Pêra, coordenador do festival de música clássica Cantabile e presidente da associação Cantabilefest. "Estava ali perto no estádio do Belenenses, numa associação que se chama Refood, vinha a sair e vi dois ou três de vós com um violino às costas. Perguntei-lhes: 'De onde é que vêm?' E com um sorriso muito grande responderam: 'Viemos da Casa Pia!' E na Casa Pia ensinam música?". Ensinam, sim.
Fernando Pêra soube deste projeto de ensino integrado e ficou fascinado. Todos os anos, o Cantabile escolhe uma associação para apoiar. Na edição anterior, foi a Orquestra Geração. Este ano, a Casa Pia. Por isso, hoje, o festival começa aqui.
No salão de festas, entra o violetista arménio David Abrahamyan, acompanhado ao piano por Joana David. Entre o público, o silêncio é absoluto. Pouco habitual num auditório com uma média de idades de 14 anos. Há bocas abertas, olhares fixados, sorrisos cúmplices.
Sentada na primeira fila, Lucélia mal pestaneja. Estuda cada movimento de David na viola de arco. Ao lado, Iara vai sorrindo. Os pés marcam o ritmo.
TSF\audio\2018\09\noticias\21\joana_carvalho_reis_casa_pia
"Foi muito fixe. Nós já tocámos uma música que ele tocou", atira Iara. Lucélia esclarece. "Fomos a um festival de música em Montalegre, com músicos profissionais e alunos de todo o país. Havia duas orquestras e nós tocámos com um violoncelista famoso, o Kyril Zlotnikov, do Quarteto de Jerusalém."
Lucélia fala com orgulho e um brilho dos olhos que ainda vem do concerto de há pouco. Ficou fascinada com a forma como David tocou. "Vi que ele estava mesmo a sentir a música... e a perceber com o coração. É por isto que eu quero seguir música. É uma das artes mais incríveis que há!"
"Quero ter um futuro melhor do que tu tiveste"
Lucélia toca violoncelo; Iara, viola de arco. Têm 13 e 14 anos e estão na Casa Pia desde pequenas. Em 2015 começaram o ensino integrado de música. E as duas garantem: é um privilégio.
"A música mudou a minha vida. Quando vim para aqui, foi uma mudança muito grande e fantástica. Não há em todas as escolas", assegura Iara. "É uma oportunidade única."
Esta paixão não chegou através dos pais. Foi um amor que nasceu aqui, na Casa Pia. Mas o apoio que têm em casa é incondicional.
"A minha mãe fica muito contente e orgulhosa", conta Lucélia. "Ela nasceu em Cabo Verde e é empregada doméstica. Não teve possibilidade de estudar mais. Quando toco, ela fica muito orgulhosa e diz-me: 'Não desistas, Lucélia!'. E eu digo: 'Não vou desistir! Quero ter um futuro melhor do que tu tiveste'. Não quero ter uma profissão que não ame fazer."
Na casa de Iara, até fazer escalas é um momento para apreciar. "A minha mãe até quer que deixe a porta aberta do quarto para me ouvirem tocar. Eles não têm possibilidade de ir a todos os concertos; então, gostam que ensaie e toque um bocadinho para eles."
A Casa Pia é a outra casa, que fez nascer este amor à música. Lucélia quer tocar numa orquestra profissional. Iara gostava de ensinar aos outros, ser uma inspiração como agora são os professores para ela. O que for que venha, começou aqui.
"No Festival de Música Júnior, em Montalegre, estavam adolescentes de todo o país. E todos eles tinham instrumentos próprios que custam mais de mil euros. E para ir ao Festival eram mais 400 euros. A escola deu-nos os instrumentos e pagou-nos tudo. É uma sorte! Nós somos muito, muito privilegiados." Lucélia mostra-se determinada: "Acredito que no futuro vou continuar com a minha força de vontade, a querer ser uma boa violoncelista e tenho a certeza que vou ser eternamente grata à Casa Pia."
Um público de músicos
No salão de festas do Colégio D. Nuno Álvares Pereira, Artur Mouradian, famoso violinista português de ascendência arménia, preparou uma apresentação. Aqui, veste a pele de mestre Artur.
"Muito obrigado por terem vindo ao espetáculo de hoje. Gostava de começar já a nossa aula, mas claro, mais uma vez, o Francisco chega atrasado...".
Francisco Palazón, também violinista, entra em cena. Calças de ganga, penteado da moda, piercing no nariz. O aluno com desculpas esfarrapadas perante um professor impaciente. "Faz-me um favor. Procura aí 'Salut d'Amour', de Elgar. E toca com muito amor!"
Um vibrato demasiado vibrado no violino de Francisco arranca gargalhadas na sala. São piadas para músico rir. E é de músicos que falamos aqui.
Artur não ficou indiferente à audiência. Um público atento, cheio de energia positiva. O violinista está habituado a fazer este tipo de concertos pedagógicos e está envolvida em várias ações de apoio social. No Brasil, trabalha com uma associação de crianças refugiadas da Síria. Na Holanda, onde passa mais tempo, tem uma fundação em nome próprio.
"A música, sem dúvida, é a forma mais bonita e mais nobre de ajudar alguém. Não é preciso saber falar a 'língua'; toda a gente entende, é uma linguagem universal que conecta as pessoas", defende, acrescentando: "Como músico, sinto que tenho de contribuir para a sociedade e ajudar os outros através da música."
Na Casa Pia, a memória deste concerto vai ficar. A alimentar os sonhos de quem quer um dia fazer brilhar os olhos dos outros.