Não denunciam, só pedem à polícia que "pregue um susto" ao agressor. Espaço Júlia alerta para vulnerabilidade dos idosos
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É um espaço pequeno e acolhedor. Tem uma porta voltada para a rua, outra mais discreta virada para o interior do complexo do Hospital dos Capuchos, por onde pode entrar quem não quer ser visto. O Espaço Júlia nasceu há quase dez anos e já recebeu milhares de denúncias de violência doméstica, mas também de outros casos que, para os responsáveis, deviam ser considerados crimes públicos.
O Espaço Júlia é uma resposta integrada de apoio à vítima, junta técnicos especializados e polícias com formação na área da violência doméstica. Em quase dez anos, já recebeu milhares de denúncias. Este ano foram mais de 600.
Há certos dias e certas horas que a equipa do Espaço Júlia já sabe: é mais provável chegar alguém para fazer uma denúncia.
As quintas-feiras à tarde “são algo complicado”, assim como as sextas a partir das 17h00. No verão, “há mais denúncias à noite”, mas a situação é sobretudo “lamentável” nas épocas festivas, conta à TSF a diretora técnica, Inês Carrolo.
Qualquer caso já é demais. (...) O maior número de vítimas é do género feminino. Temos uma particularidade relativamente ao género masculino, porque temos um número mais alto do que a média, mas isso deve-se às nossas condições de espaço.
Inês Carrolo fala ainda de um novo paradigma relativamente à violência doméstica: as vítimas são cada vez mais letradas, já não é tão significativa a questão da dependência económica e os agressores são cada vez mais ex-namorados ou ex-companheiros. Seja como for, o chefe principal da PSP de Lisboa e supervisor do Espaço Júlia, João Dias, não tem dúvidas: “É transversal.”
Ao Espaço Júlia chegam também casos de violência sobre idosos praticados por familiares que não vivem debaixo do mesmo teto e que preocupam particularmente Inês Carrolo e João Dias.
"Os filhos ou netos que vão visitar e agridem os seus familiares, muitas vezes, logo após estes terem recebido a reforma são situações que não se enquadram no artigo 152.º do Código Penal", assinala João Dias. Segundo a alínea d), só é considerada violência doméstica se o agressor e "a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade" viverem juntas.
Nestas situações, as vítimas raramente denunciam e quando falam com a polícia é para fazer um pedido: "Preguem-lhe um susto, ponham-no na linha." Geralmente, são vizinhos ou profissionais de saúde que dão o alerta.
Para Inês Carrolo, estes são "os casos mais difíceis" até porque "a pessoa acha que falhou como mãe". Tanto a diretora técnica como o supervisor do Espaço Júlia apelam à alteração da lei para que estes crimes possam ser denunciados por terceiros. João Dias defende que a sociedade está a falhar quando considera um crime público casos de violência entre ex-companheiros, ainda que não coabitem, e não faça o mesmo nos casos em que os idosos são agredidos por familiares.
Era importante até mudarmos o nome do crime, porque é violência inter-relacional. Na violência doméstica acha-se que [ocorre] só [entre] pessoas que vivem juntas.
Para todos os casos que chegam ao Espaço Júlia, a diretora técnica promete respostas personalizadas, costuma mesmo dizer que fazem fatos à medida.
O nosso papel aqui é ampliar o papel da vítima, porque muitas delas não têm ou acham que perderam. (...) Ela escolhe, a vida é dela.
Ainda que a pessoa opte por desistir, aquilo que se conta no Espaço Júlia não fica no Espaço Júlia. “O processo vai continuar a correr”, segue para Tribunal e a vítima até pode pedir a suspensão do processo, mas a decisão fica nas mãos dos juízes, já que no caso da violência doméstica está em causa um crime público.
O Espaço Júlia surge em homenagem à Dona Júlia que morava nesta rua. Foi casada durante mais de 40 anos e uma discussão ao pequeno-almoço acabou com ela morta pelo marido. Quando falamos com os vizinhos (...) era um cidadão exemplar, mas – e era a frase que mais ouvia – mas ele batia-lhe
O Espaço Júlia trabalha em parceria coma Unidade Local de Saúde de São José que engloba várias unidades hospitalares.