"Não se capta investimento num evento" como a Web Summit
Fundadora da TalkDesk e atual gestora no primeiro fundo privado de investimento de risco em Portugal critica a "promoção excessiva" dos recursos portugueses.
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Cristina Fonseca fundou em 2011 a Talkdesk, uma das startups nacionais de maior sucesso e que já é considerada um unicórnio, com uma avaliação de mais de mil milhões de euros. Está hoje na Indico, o maior fundo privado de capital de risco em Portugal - que quer investir em startups nacionais e espanholas - e no conselho de administração da Galp.
A Indico anunciou, no início do ano, que tinha 46 milhões de euros para investir em startups. Quanto é que já investiram e em quantas empresas?
Já investimos um total de mais de oito milhões de euros em oito empresas, apesar de só termos anunciado cinco. Sobre três delas ainda não podemos falar.
O portfólio da Indico abrange áreas muito diferentes. Qual é o denominador comum, ou seja, o que é que uma startup precisa para entrar no vosso radar?
Nos últimos dois anos vimos 900 empresas e fizemos oito investimentos
Há muitas que entram no nosso radar, mas muito poucas chegam a ter investimento. Só nos últimos dois anos, vimos 900 empresas e fizemos oito investimentos. É menos de 1%.
O que procuramos são empresas que tenham uma base tecnológica muito forte, estando eu a falar de mental health, de comida para animais ou do setor da pesca, o denominador comum é que todas elas resolvem um problema considerável, um problema para o qual ainda não há um líder de mercado a nível global e portanto cada uma destas empresas tem potencial para se tornar o próximo grande caso de sucesso dentro dos setores em que operam. Depois, precisam de ter uma equipa altamente competente e muito ambiciosa, mas também humilde o suficiente para trabalhar connosco.
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Nos EUA, onde o ecossistema é muito mais maduro, têm surgido algumas críticas ao que se chama a criação de uma bolha que poderá estar prestes a rebentar. Concorda que há muitas startups a receber dinheiro sem produzir valor real e que só sobrevivem graças a este investimento dos fundos de capital de risco?
Claramente. Agora, se estamos ou não numa bolha... temos de esperar para ver. Há um incentivo, elevado, para investir em tecnologia que pode gerar muito bons retornos. A base tecnológica vem do potencial de escalabilidade. E também da dinâmica de mortalidade. Porque tenho um alto risco, mas depois vou ter um alto retorno, se o melhor caso vier a verificar-se tenho uma startup que se torna gigantesca. O caso da Farfetch é um bom exemplo. Este é o melhor cenário. Eu só consigo tomar este risco se tiver um retorno muito alto. Ou seja, uma empresa que tenha uma base menos tecnológica se calhar vai ter um risco mais baixo, mas o retorno também não vai ser tão elevado.
Está no conselho de administração da Galp, faz parte do leque de caras novas escolhidas por Paula Amorim para rejuvenescer a estratégia da petrolífera. Qual tem sido o seu papel?
Ainda é tudo muito recente. Costumo dizer que a minha missão é fazer que as startups se profissionalizem e na Galp, se calhar, é fazer um bocadinho ao contrário. Tentar que a Galp ganhe um bocadinho de agilidade. É uma empresa fascinante, num setor tradicional, mas que pode beneficiar de uma série de iniciativas ligadas à inovação e à tecnologia. E é aí que o meu valor acrescentado fará a diferença.
A sua entrada na Galp foi vista como uma aposta no caminho da digitalização. É também uma resposta à ameaça do crescimento dos veículos elétricos, que pode afetar uma fatia grande dos negócios da companhia?
Todos nós reconhecemos que nos próximos dez anos há muita coisa que vai mudar no mundo. Não consigo dizer se é na mobilidade elétrica que vai estar a maior revolução. Todas as grandes empresas hoje têm a preocupação de perceber onde é que vai estar o meu negócio nos próximos 10, 20 ou 30 anos. E todas estas empresas têm máquinas consideráveis, negócios mais ou menos estáveis. Uma startup tem um bocadinho mais de agilidade intrínseca e para uma startup mudar pode parecer mais natural. As grandes empresas têm de fazer um esforço mais vincado para conseguir criar estes processos de transformação internos, e esse é o caminho que a Galp está a fazer.
Tem saudades do frenesi da Talkdesk? Não se arrependeu de sair da empresa?
Raramente me arrependo das minhas escolhas. Foi uma decisão muito consciente. Eu sabia exatamente quais eram os prós e os contras de sair naquela altura. Não me arrependo de todo.
Quando saiu, apontou motivos de cansaço e falta de tempo para a vida pessoal e familiar. Há muita pressão nos cargos de topo?
Há. Mas o meu caso em particular foi motivado por um conjunto de outros fatores. Nós fomos para os EUA e eu tinha 23 anos. Com 23 anos, tive a oportunidade de criar uma empresa tecnológica a partir de São Francisco, que é a terra prometida. Aquilo aconteceu-nos numa fase muito precoce da nossa vida, até estávamos preparados, apesar de eu achar que não. Mas os americanos são ótimos a mostrar que estão superocupados. E, de alguma forma, eles imprimiram-nos esta noção de que uma pessoa tinha de trabalhar 24 horas por dia para chegar a qualquer sítio. Passei a comportar-me como era suposto. E a certa altura percebi que a minha vida não podia ser aquilo durante os próximos dez anos. Esse foi o ponto de partida para eu questionar algumas coisas.
A Web Summit em Portugal tem ajudado o ecossistema de startups nacionais, ou serve apenas para chamar a atenção do país e mais para o turismo, digamos assim, do que para negócios reais?
Houve uma promoção excessiva dos recursos portugueses a dizer 'nós somos espetaculares e, ainda por cima, baratos'
Acho que a Web Summit, do ponto de vista do turismo, do impacto na economia, é espetacular. No ecossistema das startups não sei se o impacto é tão positivo como se diz. O que acontece é que houve muitos olhos postos em Portugal. Houve esta promoção excessiva dos recursos portugueses a dizer "nós somos espetaculares e, ainda por cima, baratos". É uma mensagem que me dói porque acho que em Portugal há muita margem para se fazer tecnologia de ponta. Mas temos de alocar esses recursos a fazer coisas interessantes, e não com uma série de multinacionais que, de repente, se instalaram em Portugal e abriram prédios inteiros e dizem "estamos a contratar 500 mil engenheiros". Isso não pode ser benéfico para um ecossistema saudável, que quer lançar negócios e que quer competir no panorama global.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2019/05/avd2_cristinafonseca_websummit_promocaoexcessiva_20190531124853/hls/video.m3u8
Desse ponto de vista, não acho que teve um impacto positivo. Acho que teve um impacto positivo no turismo, que teve um impacto muito positivo na imagem do país lá fora. Depois, volta e meia, também vejo startups fabricadas para ir à Web Summit, que é outra coisa que também me mete alguma confusão. Há esta ideia de que os investidores vêm cá e é preciso ter um produto escalável para se captar investimento. E portanto vamos lá fabricar produtos para captar investimento. Isto releva alguma desinformação até, relativamente ao processo de investimento e ao tipo de coisas que os investidores procuram, pelo menos.
Isso não é possível acontecer? Uma startup, de facto, pode ir à Web Summit e conseguir captar investimento?
Não se capta investimento num evento. Ou seja, eu posso conhecer o meu investidor, eu conheço dois ou três casos de empresas que fizeram um contacto na Web Summit que depois levou a um investimento. Mas os casos são muito poucos.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2019/05/avd3_cristinafonseca_startupsfabricadas_20190531124848/hls/video.m3u8
Esta ideia de que se vai lá para captar investimento é um slogan errado?
Os investidores quando passam viram o badge ao contrário para ninguém perceber que são investidores
É um slogan totalmente errado. Em cada dia da Web Summit há a feira das startups, se calhar com cem empresas que têm um stand. Os investidores, tipicamente, quando passam viram o badge ao contrário, que é para ninguém perceber que são investidores - porque senão não conseguem passar. E não é neste ambiente que eu vou conhecer a próxima startup para investir. Nós recomendamos às nossas startups para ir à parte boa do Web Summit. Porque o que muita gente não sabe é que há uma série de eventos paralelos, altamente exclusivos, que decorrem nessa altura. Aí, eu consigo ter uma conversa produtiva com alguém que é o suprassumo de alguma área e que, se calhar, me consegue adicionar valor real. Mas não é ali, numa conversa de corredor de cinco minutos, sobretudo num evento com 50 mil pessoas, que as coisas vão acontecer. Pelo menos com a previsibilidade que às vezes nos tentam imprimir de que a Web Summit nos traz.
