"Não sou nada dotada para a mentira." Graça Freitas foi à Cristina e saiu de lágrimas nos olhos
O dia começa antes das 6h00 para a Diretora-Geral da Saúde. Diariamente em direto, por causa da pandemia, Graça Freitas, não tem dúvidas: "O processo de comunicação é a coisa mais difícil de sempre na vida."
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Não é determinística nem insubstituível, gosta de orquídeas e lidera, por estes dias, a luta portuguesa contra o novo coronavírus. As câmaras tornaram-se numa rotina praticamente diária para a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas e, talvez também por isso, tenha decidido dar a conhecer ao país um lado que não estamos habituados a ver: o da vida, mas também - e principalmente - o dos bastidores da luta portuguesa contra a doença.
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"O Programa da Cristina" foi o espaço eleito. O sofá dos estúdios da SIC já não estranha a relevância de quem recebe - afinal de contas já por lá passaram o primeiro-ministro, António Costa e a ministra da Saúde, Marta Temido, mas também Rui Rio, Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa.
Nesta visita, Graça Freitas escolheu não esconder nem fugir a perguntas, palavras da própria. Muito menos às críticas que não são uma novidade para a diretora-geral da Saúde. Podia justificar-se com o cansaço ou com o facto de todos os dias acordar "antes das 6h00", mas preferiu ir "direta ao osso":
"Ninguém é insubstituível, queria dizer isso. Sou uma pessoa que se considera absolutamente normal, mas nesta altura acho que faço falta. Se conseguir estar do ponto de vista físico, vou estar."
As chamadas - que "não fazem parte da nossa vida nem da nossa rotina" - começam todos os dias antes das 7h00 da manhã. Folgas? "Não tive."
Criticada por uns, defendida por outros, Graça Freitas terá talvez noção de que o ditado "palavras leva-as o vento" já não é assim tão certo. Numa era em que tudo está gravado e registado, há declarações que alguns têm tentado fazer regressar para a assombrar.
A 15 de janeiro, em direto para as televisões, procurava sobretudo acalmar quem estivesse preocupado com a nova doença que vinha de Wuhan, na China: "Não há grande probabilidade de chegar um vírus destes a Portugal."
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Pouco mais de três meses depois, a doença está cá, já matou centenas e infetou dezenas de milhares. Mas Graça Freitas mantém-se fiel a si e ao que disse.
A própria explica: aos 62 anos já passou por várias pandemias. Nasceu num ano pandémico (1957), passou com a família pela pandemia de 1968, viveu a H1N1 - gripe A - e vê-se agora a braços com a Covid-19.
As declarações de janeiro não a assombram. "Tenho a noção de que terei falado em probabilidades", recorda.
"Eu não sou uma pessoa muito determinística, não acho que haja certezas em nada da vida" e por isso, justifica, gosta de falar em probabilidades, sejam elas "maiores ou menores". Essa vivência pode tê-la afastado da compreensão geral: "Daí até à forma como foi interpretado pode ter havido uma grande diferença."
Lidar com essas palavras é uma necessidade. "Não há outra forma, qualquer pessoa exposta está sujeita a isso." No fundo, é um "pacote que veio com o cargo".
A televisão, a exposição e a responsabilidade trouxeram muita coisa nova à vida de Graça Freitas - que diz "não estar dotada para mentir" - e que podem ser resumidas numa frase: "Tem havido coisas negativas, críticas que não são fáceis de ouvir, mas também muitos aspetos positivos."
Mulher da Ciência, o tal "pacote" trouxe a Graça Freitas a necessidade de comunicar Entre as duas dimensões, não tem dúvidas em afirmar que "o processo de comunicação é a coisa mais difícil de sempre na vida."
E de onde vem essa dificuldade? Se por um lado a Ciência dá espaço às descobertas, a testes, a artigos e a doses, as pessoas "esperam que a gente se decida de uma vez por todas se é laranja, amarelo ou encarnado. Não é fácil."
O que também não é fácil é tentar adivinhar o futuro da convivência com este coronavírus: "Não há possibilidade de equacionar, não sabemos", reforça.
Os meses quentes são, geralmente, grandes inimigos de outros coronavírus cujo comportamento já é conhecido. E este? Este é novo. E "quando um vírus aparece pela primeira vez, comporta-se de forma completamente diferente do habitual."
Certo é que sem nós, humanos, este vírus não vive. Ele tem à disposição a população mundial, nós não temos proteção e os meses quentes ainda nem sequer começaram. Por exemplo, quem vai casar no verão deve optar pelo registo civil.
"Depois fazia uma grande festa, depois de termos vacina, cura ou imunidade." Este é um conselho da diretora-geral da Saúde.
A conversa no programa da manhã da SIC voltava a tomar um tom mais ligeiro. Graça Freitas já respondera às perguntas "incómodas" que Cristina Ferreira tinha a fazer e as declarações de janeiro tinham agora um contexto - ainda que pessoal - que ajudavam a retirar-lhes peso.
"É por amor que não nos estamos a abraçar"
Na vida da diretora-geral da Saúde também há distanciamento social, mas não emocional. A mãe de Graça Freitas tem 90 anos e a relação entre as duas também teve de mudar.
Se antes havia mais beijos, abraços e tempo passado em conjunto, agora há mais saudades e e regras. E tudo "isto é uma forma de amor para com os outros. Eu digo à minha mãe que não a beijo agora porque gosto muito dela. É por amor que não nos estamos a abraçar."
A porta para o lado emotivo de Graça Freitas estava aberta, mas a cabeça já se preparava para o briefing diário da DGS (por esta altura já faltava menos de meia hora). Mas paixão é paixão e Graça Freitas tem uma que ficou hoje exposta para todo o país.
Atrás dos cortinados da "casa" que serve de cenário do programa estava uma orquídea para Graça Freitas. A reação foi um grito de surpresa que parecia ser o espelho da luta interior entre a pessoa e a diretora-geral da Saúde que ocupavam o mesmo corpo naquele sofá.
O vaso com a flor - de um violeta intenso - viajou nas mãos de Cristina Ferreira até perto de Graça Freitas.
"Ponha aí, ponha aí", dizia a diretora-geral da Saúde, enquanto apontava para a mesa que separava as duas protagonistas da conversa. A distância física manteve-se desde os primeiros segundos da conversa e isso não podia mudar ali.
Mas a distância emocional já tinha ficado para trás na conversa. Cristina Ferreira não perdeu a oportunidade de dar a achega: "Não podemos achar muita graça que as pessoas que estão lá digam que Portugal tem sido exemplar e depois acusar as pessoas que estão nos cargos." O elogio caía bem junto de Graça Freitas.
"Já que estamos numa de emoções, eu sou só um grãozinho" na luta de dez milhões, respondia. Saía em lágrimas - ainda que sem a voz embargada - para o briefing desta segunda-feira: estão confirmadas 735 mortes devido à Covid-19 em Portugal, mais 21 nas últimas 24 horas.
Há ainda 657 novos casos de contágio, elevando para 20.863 o número de pessoas infetadas pela doença, segundo o último boletim epidemiológico da Direção-Geral da Saúde.