Nascer no meio de uma pandemia. As marcas que podem ficar nos bebés e nos pais
A Covid-19 mudou-lhes os planos. A TSF conta as histórias de quatro mulheres que estão a viver a gravidez num dos momentos mais desafiantes de que há memória.
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"Olá, Lorenzo! Como escrevi há uns dias, a situação no mundo não está fácil, mas felizmente aqui continuamos os três saudáveis em casa. Pelo que os estudos indicam, irás nascer no pico da pandemia, por isso a mãe está um pouco assustada, claro - não era assim que imaginava a altura do teu nascimento."
Carla Mottola começou um diário mal entrou em período de baixa, já grávida de 36 semanas. É médica interna de medicina geral e familiar no centro de saúde de Algés e as atualizações de meados de março precipitaram o último dia de trabalho. "Os médicos estavam todos preocupados, porque coincidiu com os dias dos primeiros sustos e das primeiras reuniões", recorda.
A proliferação de casos de Covid-19 alterou os planos da médica de 36 anos. "Eu queria trabalhar até ao fim da gravidez, mas falei com o meu obstetra sobre o assunto. Eu sou médica, a minha profissão é esta, é o risco, mas não queria prejudicar o bebé, até pela exposição ao stress."
As últimas semanas de gravidez são vividas no confinamento, perto do pai do bebé por chegar, mas longe da restante família e do mundo exterior. "Eu pensava que, como ele ia nascer na primavera, ia poder passear com ele. Isso não vai ser possível, e também vou ter de esperar para estar com a minha família, que está em Itália."
É para Itália que vão os pensamentos da futura mãe quando as imagens da televisão lhe chegam como um alerta demasiado perto sobre quem lhe parece demasiado longe. "Tenho toda a minha família em Itália e isso preocupa-me. Tivemos azar e o Governo italiano não conseguiu perceber a gravidade muito cedo. O pico foi atingido muito rapidamente."
Em Portugal, onde mora há dez anos, sente-se mais segura, mas os pais estão em território de insegurança: moram no Sul de Itália, a uma hora de Nápoles. As irmãs ainda a preocupam mais. Vivem em Bolonha, perto de Lombardia, a zona com o maior número de contágios confirmados.
No primeiro piscar de olhos, tudo mudou
Onze de março, o dia em que Vasco nasceu. "A alegria ultrapassou tudo o se passava cá fora", como se uma "bolha de amor" tornasse imaculado o quarto de um hospital onde a ameaça espreitava. Bastou um primeiro piscar de olhos e tudo mudou.
Rita Amaral, de 32 anos, deu entrada no hospital de Braga poucos dias antes de o país mergulhar numa quarentena voluntária. "Entrei no hospital quando a situação ainda estava dentro do controlo. Havia poucos casos e muita gente que ainda não estava em isolamento. O meu parto foi de cesariana, por isso estive internada durante quatro dias e, quando saí, o cenário estava completamente alterado."
No corredor, as conversas tinham apenas um protagonista: aquele de que se fala, mas ninguém vê. O novo coronavírus preocupava médicos, enfermeiros e eram as dúvidas que pairavam no ar. "Num momento estava a ter um filho. No momento seguinte, apercebo-me de que o mundo está uma confusão."
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Rita Amaral tem consciência da sorte que teve: por um triz ainda teve direito ao acompanhamento do pai do bebé durante o parto. Só mesmo as visitas ficaram para depois. "Os avós conheceram o bebé no dia em que ele veio para casa, mas deixou de haver contacto. Era muito importante para mim que a minha irmã também conhecesse o meu filho, mas não faço ideia de quando isso poderá acontecer."
Mãe, pai, filho; por enquanto será assim. O filho, Vasco, chegou a casa num sábado e, na quarta-feira, o país entrava em Estado de Emergência. Por isso, o recém-nascido não foi recebido como Rita Amaral gostaria: "Eu imaginei algo que não aconteceu, e isso abalou-me muito. Sempre imaginei, ao longo de toda a gravidez, que quando chegasse a casa teria a minha família mais próxima presente. Que o meu bebé iria ser rodeado pelas pessoas de que mais gostamos."
"Somos só nós os dois e uma criança." É um desabafo que a nova mãe deixa escapar, enquanto atravessa "um processo de aceitação e de retomada da esperança" de que chegue o dia do reencontro.
Hormonas, ansiedade e o pico da pandemia
Anabela Araújo Pedrosa, psicóloga clínica na maternidade Daniel de Matos e do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, explica à TSF que "é expectável que venha a haver um crescimento da tendência para a depressão pós-parto, sobretudo em mulheres mais vulneráveis ou com menos apoio".
Envolvida no projeto Mind the Mom , que fornece dicas às futuras mães que enfrentam uma gravidez em tempo de pandemia, a psicóloga sublinha que esta fase é particularmente difícil para as grávidas. "A acrescer a tudo o que já é inerente à gravidez e ao pós-parto, é introduzido um novo fator de stress. As rotinas foram interrompidas, quer os cursos pré-parto, quer a preparação do enxoval e festas que estavam planeadas."
Irina Peralta espera por Vicente "com grande ansiedade". Depois da gestação de Ema, com quatro anos, e de Francisco, com três, este parto, previsto para 5 de maio, é como se fosse o primeiro, porque tudo mudou. "Vivi com muita naturalidade as outras duas gravidezes, mas agora é mais difícil por estar isolada. Sentia o acompanhamento da minha irmã e da minha mãe, que são da área da saúde. O apoio que recebemos agora é por telefone."
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Os outros dois partos foram realizados pelo setor público, mas a incerteza do momento modificou os planos. "Sempre tivemos um bom acompanhamento pelo setor público. Agora mudámos a estratégia e escolhemos o privado, e isto exige muito mais planeamento." Noutra altura, Irina Peralta deixaria os outros dois filhos "com os tios", mas já não pode ser assim, até porque os familiares são profissionais de saúde.
A gravidez de Vicente foi planeada e estava a correr "muito bem, naturalmente", mas agora tudo assusta, relata a futura mãe residente em Almada. Não terá o pai do bebé presente, e a solidão da hora do parto assusta. Sair à rua assusta. E quando se prevê a hecatombe, até a economia assusta.
"Eu tenho contrato, e já trabalho há 12 anos a gerir um lar de idosos, mas o pai tem um contrato muito recente, e isso preocupa-nos muito. Estamos muito preocupados porque já é o terceiro filho. Os custos não deixaram de existir e temos creches para pagar."
Irina Peralta não pode estar em contacto com aqueles que sempre ajudou: os idosos. Justamente no momento em que estes mais precisam de conforto. "Se não estivesse grávida, encarava isto doutra maneira", reconhece.
Um bom dia para viver, um mau dia para morrer
"Eu imaginava que ia poder ir para a praia, fazer umas fotos, tomar um sol, uma coisa mais tranquila." Inês Pereira vive em Gondomar, mas o sotaque sibilante continua preso às suas frases. Fala como a rir, sempre com o sorriso que tem a jovialidade dos 23 anos que até aqui viveu.
À TSF conta que vem aí mais uma menina, a segunda, depois de Laura, que já tem quatro anos. "A minha filha Laura não nasceu cá, mas no Brasil, onde morei durante quatro anos. Eu voltei para Portugal em fevereiro do ano passado, e estive a trabalhar num supermercado do Algarve." No final de setembro, descobriu que estava grávida e foi morar para Gondomar. Vive com o namorado e com a filha numa casa com espaço exterior. "Até nós ficamos cansados de estar em casa. Claro que é mais fácil estar em casa do que estar lá, a trabalhar num hospital."
Quase tudo é otimismo nas palavras de Inês Pereira, mesmo a viver este momento em confinamento e desempregada, porque "é difícil arrumar trabalho estando grávida". Mas a gestante de 25 semanas também tem momentos de revolta: "Estava tudo normal até aparecer este maldito bicho."
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Inês Pereira só quer que o parto lhe corra bem e que seja num mau dia para morrerem pessoas. "Espero que os números vão diminuindo e que não morra muito mais gente."
A economia não é preocupação para agora, só a saúde e o momento do parto contam, diz a grávida de 23 anos, cheia de argumentos. "Não podemos ter acompanhantes, por isso espero que até lá a situação melhore." Inês Pereira, com o parto previsto para 12 de julho, acredita ser "ridícula" a medida de não permitir o acompanhamento do pai: "Estivemos juntos todo este tempo de quarentena, e sem sintomas."
Exames cancelados
Com o SNS assoberbado com as exigências do novo coronavírus, a rotina de saúde das grávidas também se transformou."Cancelaram-me alguns exames, inclusivamente exames que não estão a ser feitos em lado nenhum. Quando fazem, pedem um valor absurdo."
É Inês Pereira que o assinala, e ainda exemplifica. Um ecocardiograma fetal "para ver o coraçãozinho do bebé" foi desmarcado pelo diretor da maternidade. "Eu fui procurá-lo noutras clínicas para saber qual seria o preço e se teriam disponibilidade. Eu liguei para sete clínicas e nenhuma o estava a fazer. Depois liguei para a CUF e lá conseguiram uma marcação, mas teria de pagar 180 euros."
Ainda assim, a grávida reitera a confiança nos profissionais de saúde. "Os exames foram cancelados, mas o diretor e os médicos analisaram o caso de cada paciente. Como viram que aparentemente estava tudo bem com a minha gravidez, decidiram que não haveria necessidade de eu fazer esse exame."
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Carla Mottola, que vivia em Itália, concorda: "Em Portugal, temos um sistema sanitário muito bom, e as pessoas não têm essa ideia." A médica não concorda com os receios que os pais têm tido de ir vacinar os filhos às unidades de saúde respetivas. "Muitas crianças não estão a ser vacinadas. Os pais não levam os filhos para receberem a vacinação e isso não faz sentido. Demora cinco minutos, basta uma marcação. Se as crianças não forem vacinadas, depois teremos outros problemas."
Também não faz sentido, para Carla Mottola, surgirem petições online, como as que já viu, para que o pai possa estar presente na hora do parto. "Nestas circunstâncias excecionais, penso que é uma ideia estúpida", frisa.
"Não estou sozinha"
O cálculo das probabilidades situa o parto de Lorenzo no pico da pandemia, mas Carla Mottola tenta desvalorizar: "Há muitas mulheres na minha situação, não estou sozinha." Sandra Silva, auxiliar de ação médica da área de obstetrícia do hospital de Vila Nova de Gaia, conta à TSF que o mês de março naquela unidade de saúde foi preenchido com muitos partos.
A obstetrícia fechou no hospital de Santa Maria da Feira durante algum tempo e, também por isso, o hospital de Gaia teve mais afluência. Sandra Silva, que presta os primeiros cuidados do pós-parto às mães, esclarece que "não há visitas, o pai não assiste ao nascimento do bebé, nada..." Quando o bebé nasce, "eles entram por dez minutos", acrescenta.
Tristes por não poderem ter um acompanhante por perto, as grávidas podem mesmo experienciar níveis de ansiedade indesejáveis, refere Marco Ramos, psicoterapeuta especializado nas áreas do stress. "Há pessoas que estão num país longínquo do dos seus familiares e não se podem encontrar, ou mesmo grávidas que não podem estar com os familiares na hora do parto. Isso é particularmente stressante, porque o principal amortecedor que podemos ter numa situação destas, que gera ansiedade, é poder estar com pessoas que nos tranquilizem."
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"A própria experiência da hospitalização é muito stressante; há uma erosão da identidade, como se as pessoas num hospital deixassem de ser quem são para passarem a ser mais um doente ou um corpo", diz ainda.
Crianças podem ficar marcadas
Marco Ramos aconselha, no entanto, que as famílias procurem um equilíbrio para usufruírem deste momento em que estão confinadas em casa."As pessoas podem estar a passar uns tempos mais calmos, a aprender a ganhar tempo para si mesmas, a valorizar os seus pensamentos e sentimentos, a dar mais valor à calma."
Mas, mesmo depois de a pandemia ser estancada, podem ficar marcas nestes bebés nascidos durante o surto de Covid-19. As mães podem ficar mais atentas à possibilidade de risco e com isso possibilitar a interiorização do medo nas crianças. "Eu já vivi pessoas que, em crianças, estiveram em risco de morrer ou sofreram acidentes graves, e os pais apanharam um susto de tal ordem que montaram um esquema tão protetor, impedindo a criança até de brincar na rua, que acabaram por fazer os filhos interiorizar um discurso de que o mundo é perigoso."
Carla Mottola prefere escrever palavras de luz. As páginas do diário da italiana residente em Portugal demonstram a vontade de contar a Lorenzo uma história com final feliz. "Irás conhecer os amigos e o resto da família em Itália e será ainda mais especial. Até lá, a mãe e o pai vão proteger-te e tentar dar o seu melhor nesta viagem única. Até lá, todos nós iremos apreciar cada instante e preservar o que realmente importa. Com amor, da tua mãe."
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