Presidente do Conselho das Finanças Públicas defende continuação de excedentes e redução da dívida. Nazaré Costa Cabral acusa os vários governos de não terem estratégia para a despesa.
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Nazaré Costa Cabral foi professora, investigadora e desempenhou funções de consultadoria junto de gabinetes governamentais nas áreas do trabalho e segurança social. É desde março presidente do Conselho Das Finanças Públicas, uma entidade independente que tem por missão analisar as contas do Estado.
O Conselho das Finanças Públicas considera que o novo cenário macroeconómico do governo no esboço orçamental entregue a Bruxelas não é prudente. Quais os grandes riscos?
O cenário subjacente ao programa orçamental não é prudente e esta insuficiência prende-se essencialmente com a trajetória esperada para o crescimento do produto e de algumas das componentes, nomeadamente as exportações e importações. A trajetória de aceleração das exportações não está em linha com a perspetiva de evolução da procura externa no próximo ano, em face do clima de incerteza que estamos a viver e que condiciona o comportamento dos nossos parceiros comerciais, na zona do euro e em países terceiros. Essa incerteza levou-nos a assinalar dúvidas. O nosso endosso foi com reservas.
Esta semana, a Comissão Europeia disse ter reservas em relação às projeções que o governo entregou no esboço orçamental. São motivos reais de preocupação ou é apenas um pró-forma?
A resposta da Comissão deve ser interpretada como um aviso e fundamentalmente como uma recomendação. Estamos a trabalhar sobre um documento que opera em políticas invariantes, ou seja, não há medidas políticas, nem no lado da receita nem no lado da despesa. Portanto, agora é expectável que o governo, com esse alerta, adote as medidas para que os resultados orçamentais se aproximem do que é expectável em termos de cumprimento das metas e regras orçamentais.
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Quão distante é que o quadro macroeconómico apresentado pelo executivo pode ficar da realidade?
Neste momento, notamos que existem várias medidas do lado da receita que não estão totalmente contempladas, verifica-se, provavelmente, uma subestimação da receita a cobrar. Do lado da despesa temos de ver que medidas de poupança é que o governo estará em condições de tomar. Não queria pronunciar-me sobre políticas.
Nas projeções, o governo está a ser mais pessimista ou prudente do que o Conselho das Finanças Públicas. Qual a razão destas discrepâncias?
Apontamos para um superávite de 0,1% do PIB e o resultado apontado pelo governo é de um défice de ainda 0,1% do PIB.
Um superávite, trocado por miúdos, é sobrar dinheiro.
Exatamente, é o excedente orçamental. Reparemos o seguinte: é uma diferença de duas décimas entre uma e outra previsão.
Psicologicamente é uma diferença enorme.
Sim. Mas corresponde a 400 milhões de euros de diferença. Se olharmos para o esboço orçamental, notamos subestimação da receita. O crescimento da receita pública foi assinalável neste ano, sobretudo nos impostos diretos e indiretos. Projetando o desempenho orçamental até ao final do ano estimamos a diferença que dá o referido excedente de 0,1%.
É normal que aconteça esse impulso da receita no fim do ano?
Existe uma capacidade muito forte de reação da receita fiscal ao comportamento da economia, por vezes até surpreendente.
Também há reduções fortes na despesa, nos juros. Isto tem sido pouco relevado pelo governo como um contributo do Banco Central Europeu. É de esperar que Portugal comece a pagar mais para vender dívida?
Portugal tem sido um beneficiário efetivo da política monetária expansionista do BCE nos últimos anos. Há duas ideias que têm sido muito propagadas. Uma está relacionada com saber se a política monetária tem condições para continuar neste ritmo, fortemente acomodatício, ou se estará a perder efetividade. Não obstante os progressos que têm sido feitos do ponto de vista orçamental, era bom que o espaço orçamental de Portugal fosse mais amplo do que é para fazer face a uma inversão de ciclo, para melhor reagir aos efeitos de uma eventual recessão.
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Relativamente aos juros e ao programa do BCE, que começou em 2015. Quanto tempo mais teremos de juros baixos?
Neste momento, a decisão que está tomada é para o ano de 2020. Mas temos de pensar que ainda há muita coisa que depende de nós, ou seja, de fatores endógenos e da nossa própria capacidade de aproveitar este momento para estarmos cada vez menos expostos a uma diferente apreciação e perceção dos mercados. Que variam rapidamente porque os juros não são só a política monetária, é também prémio de risco.
Está a falar do rating, de uma avaliação mais desfavorável?
Obviamente. Para as agências de rating, o critério basilar é a dívida pública e a sua dimensão no produto. Podemos usar algum espaço orçamental que tenhamos disponível, mas chamo a atenção que isso tem de ser feito na dose certa e não podemos esquecer que este é um bom momento para continuar a diminuir a nossa dívida, aproximando-nos da média europeia para compararmos melhor com os nossos parceiros europeus.
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Disse que o espaço orçamental deveria ser maior. Isto significa que o país não deve ficar satisfeito com o excedente de 0,1%?
Temos de canalizar os nossos esforços em termos de saldos primários positivos para continuar nesta trajetória. O que é que significa relaxar um bocadinho do esforço orçamental? Obviamente que pode ser relaxado, mas isso significa não descer tão rapidamente o rácio da dívida.
E a sua escolha é continuar no caminho dos excedentes?
Enquanto não nos aproximarmos da média da dívida europeia, à volta dos 90% do PIB, estamos sempre mais expostos e vulneráveis. Qualquer sinal que possa ser mal interpretado do ponto de vista dos mercados pode ter um efeito negativo e reverter-se contra nós.
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O ajustamento não é de alguma forma baralhado ou pervertido pela dívida que é regularmente incorporada, grandes apoios a bancos, ao setor empresarial do Estado, que acabam por atrasar o ajustamento? Será que só depende do governo?
Temos aí uma boa componente da despesa, nomeadamente despesa de capital, que tem correspondido a essas transferências para a banca e até em última análise alguns ativos que se têm adquirido junto do setor empresarial. Todo esse tipo de suporte obviamente que se reflete no défice e por consequência também no desempenho da dívida. Isso são contingências que resultam de um processo de resolução do setor bancário, que se decidiu assumir por razões que têm que ver com o próprio processo difícil - estou a pensar no caso do Novo Banco - que envolveu a Comissão Europeia e em que se entendeu não haver ainda condições para que fossem os próprios bancos a assumir essa responsabilidade, porque o fundo de resolução não estava completamente alimentado a partir daquilo que eram as contribuições dos bancos. Neste cenário entendeu-se que deveria ser o Estado a assumir essa responsabilidade. É uma situação temporária, desejavelmente, e esperamos que a banca consiga também reerguer-se, estabilizar-se, capitalizar-se e que dependa cada vez menos dos contribuintes.
Sucessivos governos dizem que fazem grandes poupanças nas chamadas gorduras do Estado. O CFP tem informação do governo que lhe permita avaliar se é mesmo assim, se há poupanças efetivas e valores?
Há um problema de alguma insuficiência de informação mas creio que o problema mesmo se coloca mais a montante, porque temos neste momento um conjunto de insuficiências naquilo que costumo qualificar como quadro da decisão da despesa pública. Não temos um processo que nos permita identificar que despesa pública é necessária fazer. Não temos ferramentas de análise e programação que nos permitam, primeiro, identificar que necessidades e despesa nas várias áreas de política pública é que temos; segundo, que objetivos, metas, indicadores a utilizar para verificar se os objetivos foram cumpridos; e, por fim, como custear cada atividade subjacente a um determinado programa de despesa e como financiar essa atividade. São tomadas decisões sobre despesa pública mas aparecem de forma errática e inconsistente, às vezes ao sabor até de pressões mediáticas. Por exemplo: veja-se como se gere a regularização de compromissos na Saúde. É sempre um processo de urgência porque não está sustentado numa verdadeira identificação de necessidades. Veja-se a situação extrema de como se executam contratos-programa entre o ministério e os hospitais quando ainda não estão formalmente assinados. São exemplos dos problemas graves de gestão e conceção de implementação das políticas públicas que temos no nosso país. Não queria ser demasiadamente pessimista, mas não vejo sinais de mudança.