Está tudo pronto para lançar a primeira pedra. No terreno onde cabe quatro vezes a antiga feira já só há hortas, um campo de futebol e muito espaço para angústias de quem mora ali ao lado.
Corpo do artigo
Daqui por um ano, já haverá talvez uma roda gigante ou uma algazarra que nos guia a quilómetros, nos terrenos onde se vai levantar a nova Feira Popular de Lisboa. As obras começam esta quinta-feira.
É ali numa das zonas onde a cidade não sabe bem se é velha ou nova. Está lá o Metro da Pontinha, mas também há quintas, umas com sinais de abandono, núcleos de prédios com ares de condomínio e canaviais e hortas e bairros.
O Bairro do Padre Cruz fica mesmo colado ao descampado onde já só está de pé o campo do clube desportivo.
Esta horta tem uma porta
A poucos metros do bairro há um emaranhado de hortas muralhadas por canaviais. A de Ivo tem até uma porta de madeira. E bem segura mesmo sem teto a que se prenda. "Tenho aqui tudo, os animais, as culturas, não sei como vai ser. Só cães são quatro", conta com sotaque africano, depois de nos abrir a porta.
Ao fim da tarde, parece que é hora de vir dos trabalhos nestes pequenos campos agrícolas. É por um carreiro que surgem, primeiro ela, Tinita. É o diminutivo carinhoso com que Joaquim lhe fala. Albertina faz este caminho todos os dias. Desde que o marido a mandou vir de Cabo Verde, há coisa de 40 anos.
Joaquim aproveita a oportunidade de conversa para descansar as muletas, "...houve uma reunião. Disseram que iam arranjar outros terrenos, mas até hoje não sabemos nada. Acho que as obras vão começar lá por aquela ponta. Quando chegarem aqui logo se vê". Logo se vê o que fazer às cabras, aos coelhos e claro, ao cão. Tem é de ser ao alcance de um reformado de muletas.
Ai se a minha casa vai abaixo
Entrar mais no bairro revela outros receios. Eusébia prontifica-se a falar, mas de preferência longe do patrão do café onde trabalha. Assim também é mais fácil apontar o motivo da sua angústia. "Dizem que vão deitar abaixo aquela rua ali. Aqueles prédios todos. Eu não acredito, não pode ser. Não vou agora ter de ir para outro lado".
Parece que será rumor. A fila de prédios onde mora Eusébia é a última do Bairro Padre Cruz junto aos terrenos da nova feira. Os moradores queixam-se de que ninguém ainda lhes disse nada. E quem não sabe, imagina. O pior.
É hora de ir buscar as crianças à escola. Os miúdos, claro que gostam da ideia de viverem com um pé dentro de um parque de diversões. Franklim é dos raros adultos que vê ali uma oportunidade. "É bom! Ando a pensar em abrir lá um negócio. Roupas ou doces... vai dar, vai ter muita gente", diz animado no seu sotaque de leste. E sabe fazer bolos? "Não, a minha mulher é que sabe coser e cozinhar. A mulher cheia de sardas na cara, sorri e encolhe os ombros, "vivemos na outra ponta do bairro. É longe daqui".
Felisbela já tem a filha bem presa à mão. Abana a cabeça a criticar a leviandade de Franklim e desabafa num sussurro "vai ser uma desgraça, vai vir para aí...muita gente, dessa gente de todo o tipo. Vai haver confusão, zaragatas. Já era assim lá para Entrecampos".
O que merece tanta reflexão é já um terreno arrasado. Chão de ervas secas e cacos de construções. Lama e buracos. Daqui por um ano espera-se que ninguém o reconheça. Depois logo se vê, se havia razão para as desconfianças. Se calhar mais vale assim, esperar o pior a ver se vai ser um alívio.