O Alentejo de Amália
Uma terra à beira-mar do Alentejo. A casa e muitas memórias, uma estranha história de vida que deixou a sua marca. No centenário de Amália Rodrigues, a TSF faz uma viagem às recordações de um povo.
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Corriam os anos sessenta do século passado quando Amália Rodrigues procurou um refúgio no Alentejo.
O Brejão foi o local escolhido para construir uma casa onde passou muitos momentos da sua vida. E no local permanecem as memórias da fadista maior de Portugal.
Quando fizerem a minha história e eu já não for viva para dizer como foi,
então é que se vão fartar de inventar.
Mesmo falado por mim, muita gente dirá que não é verdade,
que os boatos é que são a verdade.
O que me irrita é a mentira.
Mas sei que a minha história será aquela que escolherem,
aquela que é a mais interessante, aquela que não é minha.
Amália Rodrigues
O asfalto da estrada encontra-se em mau estado e a pequena localidade pouco tem para oferecer ao viajante a não ser a sua paisagem protegida e o mar imenso.
Ficámos eufóricos, nem acreditávamos que era a Amália que estava no Brejão
E, claro, as memórias de Amália que um dia escolheu esta terra para ser também sua. "Ficámos eufóricos, nem acreditávamos que era a Amália que estava no Brejão", lembra António Campos, hoje presidente da associação cultural da terra.
Queremos que esta seja a verdadeira história, a história de alguém que fugia da fama e tinha o seu porto de abrigo numa terra alentejana com o Atlântico aos pés.
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A menos de 2 quilómetros da aldeia, já no percurso para a Azenha do Mar, um grande malmequer à beira de um caminho de terra batida diz que estamos no rumo certo. É o sinal para chegar à casa. Por detrás de um enorme portão azul há uma alameda de árvores que dão acesso à Herdade Amália.
Nos anos 60 do século passado Amália Rodrigues e César Seabra, seu marido durante 36 anos, procuraram um refúgio no Alentejo. "Ela tinha duas condições, que não fosse no Algarve e ficasse perto do mar", conta Rui Maurício.
A casa é hoje propriedade da Fundação Amália e está a ser explorada como alojamento local por Rui Maurício e por Ana, a sua mulher.
É uma casa isolada, onde o barulho do mar é constante
Quando a artista comprou o terreno havia apenas uma pequena casa, com um moinho de água. A habitação original, onde Amália ainda viveu, permanece no local. Mas o novo edifício, que ela mandou construir, foi feito à sua medida. Todo envidraçado, com um enorme jardim a rodeá-lo, voltado para o mar que ela tanto cantou. "Esta casa não é para estar sozinho", afirma Rui Maurício. "É uma casa isolada, onde o barulho do mar é constante". Amália dizia que nesta casa se sentia como num barco.
Aqui ela descia à terra, dava milho às galinhas, regava as flores no jardim
Aqui era novamente ela própria, a fadista longe dos aplausos e das luzes do palco, a rapariga que nasceu pobre e gostava das coisas simples. "Aqui ela descia à terra, dava milho às galinhas, regava as flores no jardim", conta Rui.
A casa foi vendida a Amália pela família de Jacome Pacheco por 300 contos, o que na altura representava uma soma considerável. A Jacome Pacheco, com 96 anos, já lhe falha a audição mas ainda guarda recordações bem vivas. A sua mulher, Maria Francisca Luís, 81 anos, não quer ficar fora da conversa. "Ela era muito amiga dele", recorda. "Era muito amiga, amicíssima", corrobora o idoso.
Amália gostava de falar com o amigo alentejano que via de tempos a tempos. Jacome era dono um café, de uma mercearia e uma loja que vendia um pouco de tudo. Através dele, Amália mantinha uma ligação com aquele povo que a tinha acolhido.
Parava sempre aqui. Queria saber como as pessoas viviam, o que faziam, se tinham muitos filhos
"Parava sempre aqui. Queria saber como as pessoas viviam, o que faziam, se tinham muitos filhos", recorda Jacome. Jacome respondia-lhe que viviam apenas do que a terra dava e os casais tinham 3, 4 filhos. "Ah, coitados, esses é que devem passar miséria", respondia Amália.
Nos anos 60 quando comprou a casa, o Brejão era uma localidade pobre, onde não havia eletricidade e outras comodidades da civilização também ainda não tinham chegado. "O Brejão não tinha correio diário, nem telefone, não tínhamos meios de comunicação", lembra António Campos. A única forma da fadista ser contactada quando estava na sua casa era através de telegramas.
António Campos, presidente da Associação Cultural de Desenvolvimento Económico e Social do Brejão era na altura um miúdo com cerca de 12 ou 13 anos. "Andava sempre por ali com uma bicicleta e entregavam-me os telegramas para ir levar a casa da Amália. E lá ia eu todo contente porque ganhava umas moedinhas", afirma a rir.
Mais tarde ingressou na Força Aérea e era costume apanhar boleia para Lisboa com o marido da fadista. A amizade entre os dois foi consolidando. Regressou à sua terra de origem e hoje faz parte dos corpos sociais da Fundação Amália Rodrigues e defende que o Brejão deve muito à mulher-fadista. "Quando ela veio para aqui viver não havia estrada, era um caminho onde passavam as carroças dos animais, não se conseguia chegar à estrada de alcatrão porque havia poças de água que era impossível cruzar", conta.
Enquanto ela cá esteve veio a luz, o correio diário, o telefone... sempre que se falava no Brejão havia a carga de ser o local onde estava Amália
"Foi graças a ela que a Câmara de Odemira abreviou a realização da estrada", garante. "Enquanto ela cá esteve veio a luz, o correio diário, o telefone...", enumera. António Campos ressalva que embora a fadista não tenha feito pressão para que isso acontecesse, "sempre que se falava no Brejão havia a carga de ser o local onde estava Amália".
Ainda hoje, 21 anos após a sua morte muitos visitantes vêm ao Brejão à procura das suas memórias. Assim que se chega à localidade não podem escapar ao olhar os quatro murais de arte pública. Pinturas com o rosto de Amália Rodrigues realizadas pelo artista Ivo Santos em agosto deste ano. Estão colocadas nas paredes de um bairro de habitação social situado à entrada da aldeia. Uma iniciativa do Município de Odemira, com o apoio da Fundação e da Associação Cultural para assinalar o centenário do seu nascimento. Porque o Brejão continua a ser Amália. "Não tem nada, tem uma caixa multibanco, uma mercearia e 3 ou 4 cafés. E depois é Amália, Amália Amália", afirma Rui Maurício.
A Casa das Flores
Voltemos à casa. É aqui, sobre uma falésia à beira mar que tudo começa. É aqui que se desenrolam as vivências e as histórias que se confundem com a própria terra.
Aqui renasço
"Aqui renasço", dizia Amália.
A casa esteve fechada desde a sua morte até há alguns anos, quando começou a ser explorada turisticamente. Tudo foi praticamente mantido, como se a fadista tivesse acabado de sair. Desde há 4 anos, junto ao dia 23 de julho, data em que comemorava o seu aniversário, a Fundação Amália abre a casa ao público por um dia.
Por vezes aparecem alguns Amalianos, aqueles que conhecem e seguem devotamente tudo o que diz respeito à artista. Mas são sobretudo as gentes da terra que ali se deslocam. "Eles vêm aqui reviver memórias", salienta Rui Maurício. "Vêm falar uns com os outros e dizer - lembras-te quando vínhamos aqui a umas sardinhadas? - E isso é interessante".
As sardinhadas nos Santos Populares, para as quais Amália convidava algumas pessoas da terra, estão guardadas na caixinha de memórias dos 87 anos de Maria Reis. "Ela queria era cantar à volta da fogueira e fazer um baile de roda", recorda.
António Campos, um jovem na altura, lembra-se de uma dessas festas.
"Quando a casa ficou pronta, nem havia ainda luz elétrica e ela quis fazer uma festa de inauguração". Convidou pessoas da terra, havia sardinhada e uma pipa de vinho. "Gostava de interagir com as pessoas da terra. Os alentejanos são muito poetas, gostam de fazer quadras e ela adorava, embevecia-se a ouvir aquelas lengalengas", afirma José Oliveira
Na altura, também muito jovem, José Oliveira costumava levar o almoço ao pai, jardineiro na casa de Amália.
Conta, com gratidão, que a cantora e o marido, César Seabra, levaram o seu pai para ser operado em Lisboa quando o encontraram caído à beira da estrada, depois de se ter sentido mal. No hospital em Lisboa gerou-se um rebuliço quando Amália Rodrigues apareceu para visitar um simples camponês do Brejão.
As Flores do seu encanto
O grande prazer dela era sair por aqui fora, vestida à vontade, com os seus balandraus e ver as flores. Isto estava sempre cheio de flores
O que mais impressionou o pai de José Oliveira, e veio de Lisboa a contar à família, foi a quantidade de flores que Amália tinha na sua casa. Sempre o seu amor por flores. "O grande prazer dela era sair por aqui fora, vestida à vontade, com os seus balandraus e ver as flores. Isto estava sempre cheio de flores", conta Eugénia Afonso.
Esta alentejana do Brejão tem hoje 62 anos mas foi trabalhar para a casa de Amália, em Lisboa, muito menina, apenas com 15 anos. Ficou lá 25. Nessa altura, tal como agora, os jovens no Brejão não tinham muitas alternativas de vida, senão trabalhar no campo.
Trabalhar para Amália Rodrigues, em Lisboa, era menos duro e uma aventura para uma jovem que nunca tinha deixado o Brejão. Eugénia entrou na casa da Rua de S. Bento no dia 19 de maio de 1974.
Do cozido à portuguesa fazia uma sanduíche com o chouriço e a farinheira e um chá a acompanhar
A vida da cantora, com constantes idas ao estrangeiro faziam parte da agitação da casa de Lisboa. E, quando se encontrava no Brejão, toda a gente na casa andava ao sabor dos desejos de Amália. Até dos gostos gastronómicos. "Ela gostava dos guisados, das caldeiradas, das sopas", enuncia Eugénia. "Do cozido à portuguesa fazia uma sanduíche com o chouriço e a farinheira e um chá a acompanhar", lembra com um sorriso.
Hoje, Eugénia ajuda a conservar a casa do Brejão, localidade onde voltou a morar. Embora tente manter o jardim o melhor possível, lamenta que ele já não seja o mesmo de outrora, com as flores que Amália tanto preservava.
Pintei a minha casa pequenina no Alentejo toda de flores por fora,
muito antes de aparecerem os hippies.
Eram malmequeres de todas as cores
e, depois, ia para longe
para ver aquelas flores todas a olharem para o mar
e o mar a olhar para elas.
Amália Rodrigues
A casa de Amália era a melhor das redondezas, tinha uma linda vista sobre o mar e mesmo quando a artista não estava no Brejão permitia à população entrar e tirar fotos em datas especiais. "A maior parte das pessoas que casava na freguesia de S. Teotónio ia tirar fotos na casa de Amália", lembra António Campos. E ela permitia-o sem restrições.
Uma mulher determinada e acutilante
José Oliveira, que em miúdo fazia recados à fadista, lembra uma história particular que revela o caráter de uma mulher determinada. Foi quando a fadista decidiu fazer umas escadas desde a falésia, onde está a sua casa, até à praia. Um local que pertence à orla marítima.
Na altura, a GNR dirigiu-se à casa e pediu-lhe para parar a obra. "Ela disse ao meu tio que era o chefe dos pedreiros: senhor Marcolino vá buscar todos os pedreiros que encontrar para acabar as escadas até ao fim do dia", conta José Oliveira. Hoje a sua irreverência provavelmente custar-lhe-ia uma multa por parte do Ministério do Ambiente mas as escadas deram serventia a quem as quis usar.
Ao falar com Amália tive a noção do que era um doutoramento de experiência
Também António Campos recorda uma mulher simples mas que, apesar de ter apenas três anos de escolaridade, demonstrava uma inteligência aguçada. "Ao falar com Amália tive a noção do que era um doutoramento de experiência", afirma. "O conhecimento que ela tinha do mundo, das pessoas, a forma como ela respondia e se escapava das rasteiras dialéticas que lhe armavam era de uma subtileza e inteligências raras".
A marca deixada numa terra à beira-mar
Falar de Amália no Brejão não é possível sem nomear César Seabra, o seu marido. Era ele que mais procurava a calma do Alentejo, que mais falava e interagia com a população, que dava boleias a toda a gente. Uma pessoa simples, como o retratam.
E foi ali que a morte o encontrou. "Levaram-no para Odemira e morreu ali", diz com tristeza Maria Francisca. Sem cuidados médicos.
Por esse motivo, Amália deixou em testamento que 15% dos lucros da Fundação seriam para a criação e equipamento de um posto médico e a sua manutenção na pequena localidade.
Se não fosse ela não teríamos posto médico
Fernando Santos, outro habitante do Brejão considera que a aldeia lhe deve muito. "Se não fosse ela não teríamos posto médico". Nos dias de hoje a população tem médico uma vez de 15 em 15 dias.
De novo o refúgio no Alentejo
Regressemos à casa, o Refúgio de Amália. Ao mar, ao jardim, às flores. À praia que se chamava praia da Seiceira e hoje é conhecida apenas por Praia Amália.
O anfitrião Rui Maurício faz questão de dizer a quem ali chega que lugar é aquele e que memórias guarda. "É uma grande prenda quando as pessoas chegam e não sabem, como o público estrangeiro". "Começa também a florescer na localidade a street arte, as comemorações, há uma rua com o seu nome. Hoje o Brejão e Odemira começam a ser também Amália".
Perguntamos a Eugénia, a empregada que a fadista teve ao seu lado durante 25 anos, de que fado Amália mais gostava. "Ouvi-lhe dizer que era o Cansaço. Mas para mim aquele 'Povo que lavas no rio' diz-me muito..."
A gente até se alegra de a ouvir. Ouvimos muita voz, mas como aquela não há nenhuma
É este povo que numa aldeia no Alentejo à beira-mar nunca vai esquecer Amália. Um povo que nunca se cansa de a ouvir. "A gente até se alegra de a ouvir. Ouvimos muita voz, mas como aquela não há nenhuma", conclui Maria Francisca.
"O Alentejo de Amália" é uma grande reportagem de Maria Augusta Casaca com sonoplastia de Luís Borges, para ouvir esta quarta-feira, depois das 19h00, na antena da TSF e em permanência em TSF.pt
