Ao fim de quase 50 anos, a história do Bairro Horizonte está prestes a ter um final feliz, com a venda das casas pela autarquia de Lisboa aos moradores, prevista para começar até ao verão
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Manuela Augusto, 68 anos, nascida e criada nas barracas da antiga Curraleira, acredita que já não falta muito para poder finalmente comprar a casa onde vive há 47 anos, no Bairro Horizonte, em Lisboa.
É a casa para onde Manuela foi morar com os pais e um irmão, com obras feitas ao longo dos anos, não muito longe da Escola António Arroio e do metro das Olaias: “Eu vim para aqui grávida. Vim a 3 de setembro, e o meu filho nasceu em março. Fez agora 46 anos.”
A história do Bairro Horizonte começou a ser escrita após a Revolução dos Cravos. A construção teve início depois de um grande incêndio nas barracas, em 1975. Morreram duas pessoas da mesma família. Já não há construções precárias na zona, mas há um memorial a assinalar o fogo. “Morreu uma criancinha, a cruz ficou sempre no sítio onde era a barraca”, aponta.
Tal como outros bairros na zona e noutros pontos do país, o Bairro Horizonte nasceu no âmbito do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), um programa estatal de habitação social, com empréstimos do Fundo de Fomento da Habitação a cooperativas, que durou apenas dois anos, até 1976.
Durante esse curto período revolucionário, marcado por grandes manifestações, brigadas de arquitetos, técnicos e assistentes sociais meteram mãos à obra para realojar quem vivia nas barracas, juntamente com as comissões de moradores.
O Bairro Horizonte conta com 44 habitações. De um lado moradias, de rés do chão e primeiro andar, com pequenos quintais, do outro blocos de apartamentos. A construção avançou sem estar garantido o licenciamento. “Tínhamos uma cooperativa à qual pagávamos uma quota mensal, e a renda da casa. O acordo era que ao fim de 25 anos as casas eram nossas”, recorda a moradora. Só que a Cooperativa de Habitação Económica do Bairro Horizonte faliu: “Alguns ficaram com o dinheiro e nunca pagaram ao Fomento da Habitação, e isto ficou um bairro ilegal.”
Bairro esquecido
O vazio sobre a propriedade manteve-se até aos dias de hoje. Agora estamos perante o fim anunciado de um processo demorado, que passou por várias lutas dos moradores para não serem realojados noutros sítios.
O processo de regularização teve novo impulso em 2021. Na altura, o Governo de António Costa deu poder à Câmara de Lisboa, e também à de Setúbal, para acabar com o que o então primeiro-ministro classificou de “grave situação de degradação social e urbanística” de vários bairros nestes dois municípios.
Em Lisboa, o processo foi assumido pelo executivo camarário de Carlos Moedas. A autarquia fez o recenseamento em 2022 e o loteamento em 2023, o que regularizou o bairro em termos urbanísticos. E no final de março foi aprovada em reunião de câmara “uma proposta que define como é que se vai poder alienar, finalmente, as propriedades aos moradores, o que significa que vão deixar de estar nesta informalidade e ficam com a hipótese de serem finalmente proprietários da sua casa”, resume a vereadora da habitação e Obras Municipais, Filipa Roseta. A arquiteta reconhece que “tem sido um processo bastante longo e bastante participado pelos moradores”, mas conta “até ao verão” começar a vender as primeiras casas aos interessados, com base em empréstimos à autarquia a dez anos sem juros.
Ao longo dos anos, muitos moradores perderam o rasto aos recibos do que pagaram à cooperativa. É o caso de Manuela Augusto, que durante os 11 anos e meio em que esteve presa, por problemas de droga: “Há quem tenha guardado o papel que eles deram, mas eu sou franca, não guardei os recibos. O meu pai e a minha mãe viviam na casa. Eles faleceram e eu fiquei a viver com os meus filhos e um irmão. O meu irmão faleceu, eu estive detida, os papéis já eram antigos, e os meus filhos deitaram tudo fora. Mas lá consta que realmente o meu pai e a minha mãe viviam aqui, e que eu estou aqui há 47 anos.”
Seja qual for a situação dos moradores, a vereadora Filipa Roseta sossega os futuros proprietários: “O que nós dissemos na sessão pública foi para trazerem o que tiverem, mas que não se angustiem porque a câmara está cá para resolver, e não para prejudicar. Nós sabemos a complicação que foi este processo.”
No caso do Bairro Horizonte, Filipa Roseta sublinha que “é um bairro bastante estável”, onde ainda há sócios originais da cooperativa e, nos casos em que não há, não haverá muita dificuldade em identificar os descendentes.
Já no caso dos outros dois bairros que fazem parte do mesmo “triângulo” nas Olaias — O Portugal Novo e o Carlos Botelho — onde vivem quase 500 famílias, Filipa Roseta admite mais dificuldades. A vereadora da Habitação espera por isso que a experiência do Bairro Horizonte sirva de exemplo para regularizar os bairros vizinhos.
Saudades das barracas
O Bairro Horizonte foi buscar o nome à vista sobre o Tejo, mas tem estado esquecido durante décadas. Tanto, que até as ambulâncias o demoram a encontrar no mapa, apesar de estar praticamente no centro da cidade. Um bairro aparentemente pacato, mas onde salta à vista a carcaça de um carro, que ardeu no Carnaval. Era o carro do filho de Manuela. Não foram problemas no bairro, garante. Fogo posto ou curto-circuito? A seguradora ainda está a decidir.
Quem vem de fora é recebido por burros no pasto nos terrenos baldios, e por um mural no bloco de apartamentos que mantém vivas as memórias do bairro. Retratos da vida a preto e branco a lembrar o espírito de comunidade. Manuela confessa as saudades: “Adoro a minha casa. É outra coisa, mas a convivência, a união não se compara, não é nada comparada à das barracas.”
À entrada do bairro também salta à vista um parque infantil a denunciar a presença de crianças. E ainda há muitas? “Ainda há, ainda há. A minha nora tem três, aqui esta moça tem outros três, ali aquela tem quatro”, descreve Manuela, apontando para as casas na rua principal. Mas numa tarde solarenga de um dia de semana, os mais jovens ou estão na escola, ou na coletividade, a sede do União Clube da Curraleira, que esteve para ser deitada abaixo.
Para lá chegar é que é uma carga de trabalhos para os moradores mais velhos, que já não têm joelhos para tantos degraus. Mas o que mais indigna Manuela Augusto, além da falta de manutenção e limpeza, é haver uma casa fechada no bairro: “É esta casa que tem gradeamento. Com tanta gente que precisa, é mal empregada. É só ratos e bicharada. É uma pena”.
Telheiras, uma experiência pioneira
Ao contrário de Manuela, que chega a defender ocupações de casas e andou nas manifestações depois do 25 de Abril a gritar “Casas, sim, barracas, não”, Eugénia Galvão nunca se viu uma revolucionária.
A arquiteta era ainda estudante, no princípio dos anos 70, quando foi criada a primeira empresa pública proprietária e gestora de terrenos e de imóveis públicos em Lisboa (EPUL).
Eugénia Galvão fez toda a carreira na EPUL, reformou-se diretora do departamento de projetos, mas quando começou foi desenhar Telheiras, o bairro onde ainda hoje mora na zona norte da cidade.
“Esta zona tinha terrenos municipais e terrenos privados. E este projeto foi uma decisão política, na altura em que era presidente da câmara o engenheiro Santos e Castro. A ideia era fazer habitação para a classe média, não era para a classe média alta. Havia a chamada habitação social, que estava um pouco rotulada, porque tinha pouca qualidade arquitetónica e construtiva”, explica.
Neste caso, manteve-se o núcleo antigo da zona, e os proprietários expropriados foram indemnizados com área de construção. Muitos desses prédios já passaram metade dos 80 anos de duração do Direito de Superfície em que foram construídos.
Eduarda Galvão considera que Telheiras foi um projeto pioneiro e uma experiência interessante, mas que não podia ser replicada hoje. “Em termos de disponibilidade de terrenos não tenho noção nenhuma do que há, mas mesmo assim tenho a perceção de que ainda há muita coisa. Agora, onde eu penso que a crise é mais grave atualmente é nos métodos de construção”, afirma.
Para a arquiteta, a crise pede que se ganhe tempo: “O tempo do betão e do tijolo acabou. O tempo de duração de uma obra acabou. Nós já devíamos estar, e começámos a ensaiar, ainda no tempo da EPUL, mesmo no fim da vida útil da empresa, uma tecnologia construtiva diferente, através da construção metálica em aço leve”.
Eugénia Galvão defende menos burocracias, melhorias nos licenciamentos, e acima de tudo pede que não se façam promessas impossíveis. “Eu fico chocada quando ouço os políticos dizerem que dentro de dois anos vamos ter não sei quantos mais mil fogos. Em dois anos a única coisa que se consegue é o licenciamento do projeto”, acrescenta.
Da experiência dos primeiros tempos da EPUL, a arquiteta também fez parte da Associação de Residentes de Telheiras, onde se falava dos problemas, e se ajudava a decidir o bairro. E por isso, esta arquiteta que nunca teve filiação política vê na “organização e militância” a chave para o sucesso. E devíamos voltar às cooperativas de habitação, ou é um modelo que deve ser afastado? “Sim, é uma organização básica. Se não for por aí, estamos, ou melhor, quem está vulnerável, está sozinho. É um sistema individual.”