Cheiros quase insuportáveis de uma comida que se recomenda, vinhos portugueses em restaurantes de topo londrinos e um hotel com um holandês que se mudou de armas e bagagens para o nosso país.
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Kees Eijrond não é um residente estrangeiro qualquer. Nascido em Amesterdão, pode ser um investidor como muitos outros, mas com a particularidade de conhecer o nosso país desde o pós 25 de Abril de 1974, de ter fixado residência na zona da Bica, em Lisboa em 1996, de ter participado em eventos culturais com a companhia de bailado de que é diretor da companhia de bailado contemporâneo "Rosas" e, desde este ano, orgulhoso anfitrião do Hotel Verride, na capital, na zona onde reside.
Os seus fatos assinados pelo estilista Yohji Yamamoto, muitos deles com calças abaixo dos joelhos, a insistência no azul e o seu Rolls Royce ligth blue, dos últimos a serem exclusivamente produzidos no Reino Unido, fazem do holandês um personagem de uma história com muitas aventuras e andanças.
Logo após o 25 de Abril de 1974, Kees, formado em engenharia agrónoma, esteve no Alentejo para ajudar às vindimas inserido num programa de voluntariado. Sobre esses tempos, diz que encontrou um Portugal pobre, sem condições básicas, miserável, sobretudo no interior. Não foi por isso que desistiu de encontrar uma casa em Lisboa. Queria morar no centro de Lisboa, ter vista para o Tejo e usufruir de um jardim. Conta que viu mais de 100 casas, a maior parte com o amigo de sempre Jorge Salavisa, na altura, diretor do bailado da Gulbenkian.
Garante que foi Salavisa que o ajudou a realizar o seu sonho. E por isso Kees retribuiu a vontade do antigo diretor do Teatro Nacional de São Carlos e da Companhia Nacional de Bailado, que aspirava a morar num hotel quando se reformasse. No rés-do-chão do Hotel Verride, na Rua de Santa Catarina, Jorge Salavisa passou a ter residência permanente.
Kees Eijrond conta que sempre se interessou pelo edifício, há anos devoluto e em estado de degradação. Soube que havia um concurso para a compra que acabou por ganhar. Um diferendo com a Câmara arrastou-se em tribunal até 2012, altura em que o assunto ficou resolvido. Seis anos depois abria um hotel de cinco estrelas com uma das vistas mais privilegiadas de Lisboa, mas com apenas 19 quartos, entre os quais duas suítes, dois restaurantes e um bar no topo do edifício. Quis, acrescenta, manter o aspeto de um palácio.
Na zona, Kees vive com o seu companheiro Naushad Kanji, que trocou as capitais da Europa pela residência permanente na Bica. O holandês revela, entre risos, que há quem o apelide de Marajá do Bairro Alto. Talvez pelas roupas que muitas vezes revelam a preferência pelos trajes orientais.
O Hotel está junto ao miradouro de Santa Catarina, conhecido por Adamastor e, apesar de o edifício ser de Kees, há 34 investidores de todo o mundo envolvidos na gestão. O holandês passa a vida a viajar sobretudo pela responsabilidade de uma companhia de bailado, que vai estar brevemente na Culturgest, em Lisboa.
Topo de Londres
Em boa hora Artur Gama se dedicou à Quinta da Boa Esperança comprada na zona Oeste em 2014. Pelo menos é o que diz Tim McLaughlin-Green, responsável pela empresa Sommeliers Choice, que continua a importar os vinhos da quinta para organizar a carta de grande parte dos restaurantes de topo de Londres.
Artur era trader de commodities pelo mundo inteiro, mas foi num restaurante em Beirute que conheceu o seu importador. O repasto envolvia uma ação solidária no Líbano e estavam presentes chefs, sommeliers e outros personagens ligados ao mundo da gastronomia. Desde essa altura que os vinhos do Casal da Boa Esperança passaram a fazer parte de uma escolha exclusiva do sommelier inglês.
Artur Gama já não viaja tanto como antigamente. Hoje, juntamente com a sua mulher Eva Moura Guedes e a sua filha ainda pequena, dedicam-se à quinta que fica na localidade da Zibreira a menos de 10 quilómetros de Torres Vedras e a cerca de 20 da costa atlântica.
Paula Fernandes é a enóloga residente da Quinta da Boa Esperança desde finais de 2014 e trabalha as castas tintas Aragonez, Castelão, Touriga Nacional, Alicante Bouchet e Caladoc (esta praticamente irrelevante) e as castas brancas Arinto, Fernão Pires e Sauvignon Blanc. A propriedade trabalha com vinhas novas e velhas, numa área total de oito hectares de vinha em produção, mas há nove hectares de vinha plantados e, a curto prazo, está prevista a plantação de mais 1,5 hectares.
Artur está a finalizar o enoturismo. A possibilidade de alugar quatro suítes sobre a vinha vai estar disponível em breve, mas inicialmente, apenas para reservas que incluam todos os quartos. Artur costuma receber amigos e organizar vários eventos porque é assim que a vida lhe parece melhor.
Ericeirice
O neologismo parte da mistura entre Ericeira e Infundice. Mas o nome correto é Caneja da Infundice. Dispensa-se a explicação da segunda palavra porque apenas existe neste prato sui generis porque o cheiro como é fortemente amoniacal e pode confundir-se facilmente com o habitual odor das casas de banho menos cuidadas.
A pergunta fica. Se cheira tão mal porque se come? Porque é um prato típico que vem dos confins da tradição na Ericeira. Porque só se come na zona. Porque até a Maria de Lourdes Modesto comeu e gostou.
É feito com um peixe da família dos tubarões, parecido com o Cação tão presente na alimentação no Alentejo, que se pesca ao lago da Ericeira ou, nos anos em que escasseia, na costa de Marrocos e Mauritânia. Há uma Confraria da Caneja da Infundice para que a memória não se apague. Os presidente e vice Paulo Tenente e Francisco Henriques estão apostados em manter uma tradição que facilmente se poderia perder.
Não se come nos restaurantes, o que dificulta a procura, mas há sempre um amigo de um amigo que se não é passa a ser, que facilita o acesso. A confraria é uma das formas de tentar encontrar o manjar. Francisco Henriques sabe preparar a caneja e explica que, basicamente, consiste em cortar o peixe às postas, retirar todos os vestígios de sangue, envolver os pedaços em panos de algodão ou linho e, se fosse como manda a tradição, enterrá-lo durante 15 dias. Também serve um sítio escuro e com pouco ar. Quando sai do "estágio" leva-se a ferver e serve-se com batatas cozidas. O vinho deve ser tinto e novo, de preferência com alguma acidez, uma vez que nesta refeição todo ele fica adocicado. Um dos fenómenos que mais impressiona é o azeite que se deita no prato. Em contacto com o peixe fica quase branco e pastoso.
Dizem quem o comeu que é delicioso, mas é preciso alguma preparação psicológica sobretudo pelo cheiro que pode assustar. Juntamente com a convidada especial Maria de Lourdes Modesto vieram uns jovens técnicos da universidade que fizeram testes e consideraram perfeitamente saudável o consumo e, agora já na linha das hipóteses, há quem jure que baixa o colesterol.