"O silêncio em torno dos problemas da droga tem sido excessivo"
João Goulão, diretor-geral do SICAD, não acompanha Rui Moreira na ideia de "endurecimento da lei para lidar com o problema".
Corpo do artigo
Somos socialmente complacentes com a canábis, apesar de a modificação genética da planta ter elevado a sua potência psicoativa. Mais enraizado ainda é o consumo de álcool e pouco se discute que em 2021 tenham morrido mais pessoas de intoxicação alcoólica do que de overdose. João Goulão alerta para o recrudescimento de consumos em tempo de crise e pede mais respostas no apoio aos doentes. Solidário com as preocupações da Câmara do Porto sobre a Pasteleira, não deixa de considerar que em Lisboa tem havido mais investimento na intervenção social.
O tema do tráfico e do consumo de droga reentrou em força no espaço público com a situação no Bairro da Pasteleira, no Porto. A questão é efetivamente social ou está a ser gerida politicamente?
Francamente, acho que um bocadinho das duas componentes. É evidente que há um recrudescimento do uso de drogas e de tráfico e atividades conexas, com grande visibilidade na área do Porto, e isso é uma fonte de preocupação e exige intervenção. Deve ser uma intervenção equilibrada entre a redução da oferta e a redução da procura, ou seja, com alguma ação das forças policiais que se dedicam ao combate ao tráfico, mas com o desenvolvimento de apoios sociais e oferta de cuidados de saúde às pessoas que têm um consumo mais problemático.
No caso da Pasteleira, o que está a falhar?
Há ali consequências de intervenções que se calhar não foram bem pensadas ou cujas consequências não foram previstas. Nomeadamente um pulverizar de uma população mais marginalizada, mais desorganizada, que se situava sobretudo no Bairro do Aleixo e que com a sua destruição foi distribuída por outras zonas da cidade.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2023/02/tsfjn1_joao_goulao_sicad_20230211193927/hls/video.m3u8
O problema decorre da situação social ou da liberalização?
Muito mais das circunstâncias difíceis que a sociedade portuguesa está a viver do que da descriminalização, que foi um passo importante e introduziu coerência em toda a abordagem. Como é sabido, o uso de substâncias foi descriminalizado, mas não foi despenalizado. Penso que o quadro legal de que dispomos é adequado. O que exige é que haja meios, quer na redução da oferta, quer na redução da procura.
Não acompanha todas as críticas do autarca Rui Moreira?
Estou completamente solidário com as preocupações expressas pelo presidente da Câmara do Porto. Só não acompanho o caminho no sentido do endurecimento da lei para lidar com o problema. Acho que é muito mais pela via da oferta de apoio social, da melhoria das condições de vida das populações, de cuidados ao nível do urbanismo, da habitação, de proporcionar à população em geral e aos utilizadores de drogas em particular os níveis básicos de dignidade humana.
A proposta aprovada pela Câmara do Porto, com um apelo ao Governo no sentido de criminalizar o consumo na rua, não tem apoio político. Mas considera que lançar novamente este debate pode causar divisões sociais num tema que estava estabilizado?
É evidente que reintroduziu o tema no debate público e isso é bom porque o silêncio em torno dos problemas relacionados com a droga, com os comportamentos aditivos em geral, tem sido excessivo para as circunstâncias que vivemos. É importantíssimo que estas questões sejam novamente colocadas na agenda.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2023/02/tsfjn2_joao_goulao_sicad_20230211193905/hls/video.m3u8
Apesar da fase ainda experimental que atravessamos, já temos tempo suficiente para avaliar os resultados das salas de consumo assistido em Lisboa e no Porto?
Aquilo que podemos constatar é que são dispositivos que têm atraído pessoas às quais se dirigiam, nomeadamente as franjas mais desorganizadas da população utilizadora de drogas, e nesse sentido têm servido os seus propósitos. Uma das críticas é de que os espaços de consumo vigiado se constituem como um polo de atração para as populações e acabam por constituir um polo de desorganização para a envolvente. É fundamental termos a capacidade de, a partir das salas de consumo assistido, cuja grande virtualidade é ganhar a confiança destas populações, conseguirmos referenciá-las às unidades de tratamento.
Mas há diferenças entre as duas cidades na forma como olham para esta problemática?
Em qualquer das cidades houve um envolvimento, aliás de acordo com o que decorre da lei que permite a abertura deste tipo de espaços. Outro tipo de respostas, nomeadamente sociais, de habitação, de emprego, etc., têm tido um investimento mais consistente por parte do Município de Lisboa do que aquilo a que temos assistido no Porto.
Há um défice de respostas com responsabilidades políticas?
Mais importante do que fazer uma culpabilização, é sentar todas as entidades com responsabilidades nestas matérias em volta de uma mesa e discutir. Cada um colocar em cima da mesa aquilo que pode efetivamente fazer no sentido de resolver estas situações, porque elas são igualmente complicadas em Lisboa, no Porto e noutras cidades.
Tem alertado que tempos de crise, por norma, causam um aumento de dependências. Estão já a ser preparadas medidas preventivas?
As pessoas utilizam drogas por um, e estou a simplificar muito, por um de dois grandes motivos: ou para potenciar o prazer, para a festa, ou para aliviar o sofrimento. E em momentos de sofrimento social assistimos a um aumento da utilização de determinadas substâncias e em determinadas circunstâncias. É o caso da heroína, quando foi a crise da dívida soberana tivemos um número muito elevado de recaídas. Durante a pandemia, a utilização da heroína foi a que manteve maior estabilidade, e agora antecipamos que possa haver novamente um recrudescimento quer da heroína, quer de substâncias que vão invadindo este espaço, como seja o crack. Já se nota alguma subida no seu consumo.
As oscilações nestas substâncias têm sobretudo a ver com a oferta?
O diretor do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência tem dito nos últimos tempos, relativamente ao espaço europeu, que nunca como agora as drogas estiveram em todo o lado, tudo é usado como droga e toda a gente, todos os grupos sociais utilizam drogas. A abundância de substâncias novas e velhas no mercado, o uso por parte dos mais variados grupos etários, grupos sociais, etc., e a diversidade de contextos em que acontece esse uso, nunca foi tão alargado como hoje. E nós sentimos, em Portugal, exatamente essa realidade.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2023/02/tsfjn3_joao_goulao_sicad_20230211194017/hls/video.m3u8
A forma como toleramos socialmente a canábis é problemática?
Os produtos de canábis são, de longe, os produtos ilícitos mais consumidos em Portugal e em toda a Europa. A tendência costumava ser de considerar a canábis uma droga leve, com poucos impactos na saúde, com uma grande complacência social relativamente ao seu uso. Mas a primeira causa de pedidos de ajuda nos centros especializados em tratamento da toxicodependência são episódios relacionados com o uso de canábis, que hoje está longe de ser uma droga leve. A própria planta foi modificada em termos de manipulação genética, de técnicas de cultura, etc. E aquilo que circula hoje tem uma potência psicoativa que é muitíssimo mais elevada do que aquilo que temos na nossa fantasia. Sendo socialmente aceite, começa a ser um problema sério.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2023/02/tsfjn4_joao_goulao_sicad_20230211194021/hls/video.m3u8
Acredita que legalizar o consumo, para fins não terapêuticos, poderia ajudar a uma maior regulação dos produtos?
Eu movimento-me na área da saúde e as minhas preocupações prendem-se com os valores da saúde. A minha grande dúvida é: seremos mais eficazes a proteger a saúde dos nossos concidadãos num quadro de legalização, de regulação, comparável ao que acontece com o álcool, por exemplo, ou no sistema de que dispomos, de dissuasão? Tenho dúvidas acerca disto e as experiências que foram conduzidas até agora em outros países ainda não são conclusivas. Há impactos ao nível da saúde mental das populações, da violência, a condução sob efeito de canábis, enfim, vários impactos não estão completamente esclarecidos. Não quero de todo fechar ou manifestar-me em oposição a essa solução, mas gostava de ter mais evidência científica.
O relatório de 2021 mostra o aumento das intoxicações alcoólicas. Temos também em relação ao álcool uma atitude demasiado complacente?
Penso que se mantém uma atitude extremamente complacente relativamente a esses usos. Está profundamente enraizado do ponto de vista cultural na nossa população. Esse uso continuado faz de nós um dos países com uma utilização per capita de bebidas alcoólicas mais elevada do Mundo. Isso tem a ver com um certo condicionamento cultural e com o facto de, por exemplo, não haver uma política de preços. Continuamos a ter um preço disparatadamente baixo para as bebidas alcoólicas, o que limita a capacidade de intervenção do ponto de vista meramente preventivo.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2023/02/tsfjn6_joao_goulao_sicad_20230211194038/hls/video.m3u8
Defende a regulação direta de preços ou medidas fiscais, como seja a aplicação ao vinho do imposto sobre o álcool e as bebidas asseguradas (IABA), que neste momento é zero? A importância económica deste setor tem sido um entrave a estas medidas?
Naturalmente que sim, há aqui tensões entre economia e saúde. É preciso fazer opções acerca de qual é o valor preponderante que pretendemos enfatizar e colocar em primeiro plano.
E em Portugal a economia, no caso do vinho, tem um valor mais forte que o da saúde?
Penso que sim, que tem tido. A questão do preço e da oferta é importantíssima. Outra questão é a informação acerca, por exemplo, do número elevadíssimo de intoxicações agudas alcoólicas e mortes, que suplantam largamente o número de mortes por overdose de substâncias ilícitas. Há toda uma intervenção em torno do consumo nocivo do álcool que é necessário desenvolver e fazer apoiar também no discurso político.
Concorda com propostas como a da Irlanda, que tem aberto uma guerra na União Europeia, de colocar rótulos com advertências sobre a saúde nas garrafas de vinho?
Concordo. Nós temos um pictograma nas garrafas de vinho, já há alguns anos, que tem a ver com o consumo de álcool pelas grávidas. Era importante que esse próprio pictograma tivesse uma maior dimensão, uma mais fácil leitura para passar mais eficazmente a mensagem. A negociação da inclusão desse pictograma foi admitida e consensual, trabalhámos diretamente com a indústria.
Mas aqui estaríamos a falar de mensagens maiores, mais impactantes, à semelhança dos maços de tabaco.
Penso que haveria vantagens em ter esse tipo de mensagens de uma forma visível e legível, inteligível, digamos assim. É um adjuvante do trabalho preventivo que podemos desenvolver. Portanto, penso que é um dos caminhos a explorar. Não exatamente nos mesmos moldes daquilo que é defendido pela Irlanda, mas podemos perfeitamente adequar e negociar e consensualizar também com a indústria, que está ela própria pouco interessada nos impactos negativos que o uso nocivo do álcool pode ter na sociedade.
Tendo em conta que o uso de substâncias psicoativas tem uma relação muito estreita com a saúde mental da população, vê motivos de alarme quando lê os recentes estudos sobre o agravamento dos indicadores entre adolescentes e jovens?
Naturalmente que sim. Há impactos que têm depois também reflexo no uso de substâncias ou em outras práticas potencialmente aditivas. Temos, por exemplo, e o próprio evoluir da pandemia não é alheio a isso, uma evolução significativa de práticas relacionadas com ecrãs, com jogo, a dinheiro ou sem ser a dinheiro. Tudo isto muitas vezes é acompanhado do consumo de substâncias, sejam elas lícitas ou ilícitas, desde logo tabaco e álcool, e vai muito a par com manifestações preocupantes como os distúrbios alimentares.
Temos capacidade de resposta para dependências como a do jogo online?
Temos vindo a desenvolver essas respostas. Não criando respostas novas, mas aproveitando a existência de uma rede que foi, sobretudo, desenvolvida nas décadas de 80 e 90 e muito dirigida aos problemas relacionados com heroína. Quando parecia que esta rede estava sobredimensionada, porque a questão da heroína começou a desvanecer-se um pouco na nossa sociedade, em vez de fazer um downsizing das respostas foram incluídas no mandato outras temáticas, nomeadamente a questão do álcool e, mais recentemente, os comportamentos aditivos e dependentes. Vai havendo já respostas e alguma afluência de pessoas com este tipo de problemática nas unidades existentes.
Tem alertado para a perda de capacidade que representou a transição do Instituto da Droga e da Toxicodependência para o SICAD. Nesta altura está em cima da mesa a proposta para recuperar uma estrutura única, idêntica ao IDT. Já tem uma resposta do Governo?
Tem havido progressos. Nós apresentámos um borrão, digamos assim, das alterações legislativas que propomos e tivemos quinta-feira uma discussão com a nossa tutela direta, a senhora secretária de Estado da Promoção da Saúde. Discutimos com algum detalhe as propostas que apresentámos e penso que estamos no bom caminho e que em breve teremos a reconstituição de uma estrutura única, com a capacidade de pensar as políticas e de executar no terreno.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2023/02/tsfjn5_joao_goulao_sicad_20230211193958/hls/video.m3u8
Poderá ser ainda este ano?
Espero que sim. Atualmente temos cerca de 80 pessoas no SICAD e esperamos recuperar aqueles que restam, porque tem havido uma sangria de recursos humanos.
