Os 158 esqueletos encontrados em Lagos que não deixam esquecer o passado esclavagista português
Nesta cidade algarvia terá sido realizada a primeira venda de escravos de maior dimensão na Europa: 235 pessoas
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Se ainda houvesse dúvidas sobre como os portugueses capturaram, transportaram e venderam escravos vindos de África no século XV, a descoberta feita em 2009 numa lixeira de Lagos deitou por terra qualquer teoria. Em 2009, quando se procedia aos trabalhos para construir um parque de estacionamento subterrâneo na cidade, começaram a surgir ossadas humanas: 158 esqueletos que se viria a comprovar serem de pessoas africanas. Escravos trazidos pelas naus do Infante D. Henrique que faziam expedições pela costa ocidental de África.
Elena Morán, arqueóloga e diretora do Museu de Lagos, explica que a transação comercial daqueles que eram capturados pelos portugueses fazia-se um pouco mais acima do local onde está situado o edifício conhecido como o Mercado de Escravos (que nunca o foi). Hoje, no edifício, está o núcleo da Rota da Escravatura do Museu de Lagos.
Tudo indica que tenha sido também em Lagos que se realizou a primeira grande venda de escravos na Europa: 235 pessoas. O cronista do Infante D. Henrique, Gomes Eanes de Zurara, conta com sentimento este episódio passado em 1443. ”Uns tinham as caras baixas e os rostos lavados em lágrimas, (...) outros estavam gemendo mui dolorosamente (…) Apartavam os filhos dos padres e as mulheres dos maridos, e os irmãos uns dos outros”, relata. No entanto, adianta o cronista, o próprio infante, “em cima de um imponente cavalo”, levou o seu quinhão: 46 escravos.
Se alguém duvidasse da História, vários séculos mais tarde a realidade viria a comprovar o papel dos portugueses nas Rotas da Escravatura. Quando em 2009 a câmara municipal de Lagos começou a fazer escavações numa lixeira situada fora da muralha do núcleo urbano medieval, onde seria construído um parque de estacionamento subterrâneo, surgiram 158 esqueletos. Desses, 49 eram de crianças. ”Ninguém pensava encontrar ossadas humanas numa lixeira”, admite Elena Morán. Foi uma descoberta única na Europa, tantos escravos “sepultados” (se se pode chamar sepultura a uma lixeira) num único lugar. Depois de estudos técnicos realizados pelos antropólogos, percebeu-se que essas ossadas pertenciam a indivíduos africanos, escravos que no século XV terão sido “descartados” para o local, por doença, ou por morte mais violenta.
O estudo dos esqueletos tem sido realizado ao longo dos anos por uma equipa de antropologia do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Mas ainda há muito por conhecer. Elena Morán lamenta que a Academia e os estudantes de doutoramento não aprofundem mais o caso e procurem eventuais documentos que possam existir na cidade sobre escravatura. "Nunca mostraram interesse”, assegura.
No museu, um espaço pequeno para a dimensão de tamanho assunto, podem ver-se mapas, a trajetória das rotas feitas pelos navegadores na costa africana e como viviam esses povos antes dos portugueses lá chegarem. Há também outros objetos e documentos, entre eles uma carta de alforria concedida a uma criança escrava.
O tema da escravatura e o passado colonial português foi reavivado no discurso da escritora Lídia Jorge este ano. A presidente das comemorações do 10 de Junho, celebradas precisamente na cidade de Lagos, afirmou no seu discurso que “é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso". "Lagos, precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico", disse.
Talvez por isso Elena Móran acentua que este museu quer deixar no visitante uma inquietação também para o presente. Para alertar consciências e lembrar que nos séculos XV e XVI foram vendidos escravos africanos em Portugal.