"Os bombeiros andam sempre de mão estendida"
Corpo do artigo
Chamam-lhes soldados da paz, mas os bombeiros portugueses há muito que estão em guerra com a tutela. Mudam os governos, mudam os ministros e as críticas dos bombeiros são quase sempre as mesmas - o financiamento é pouco e chega tarde e as sucessivas reformas na Proteção Civil deixam de fora as corporações de bombeiros.
No cargo há um ano e meio, António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros, confessa que as corporações passam a vida "a pedir", esperam do Governo a celebração de um contrato programa plurianual que permita uma estabilização do financiamento e não vão desistir enquanto não forem "bombeiros a comandar bombeiros".
Vamos começar pela carta que enviou ao primeiro-ministro, onde pedia a demissão do presidente da Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Florestais. Essa carta teve resposta?
Não, essa carta não teve resposta, mas devo dizer que com a entrega dessa carta tivemos uma reunião com o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, António Mendonça Mendes, e com o senhor presidente da AGIF, onde tivemos a oportunidade de voltar a dizer que os bombeiros, mais do que a Liga ou as próprias associações, os bombeiros estão ofendidos com as palavras que ele proferiu na Assembleia da República, na Comissão de Agricultura e Pescas, porque não correspondem à verdade. São palavras que admitimos que possam ter sido ditas num contexto de comissão parlamentar, que se diz muita coisa e onde se tem muito entusiasmo, mas que passado esse momento a obrigação que ele tinha e o respeito que os bombeiros lhe merecem era que ele tivesse vindo a público retratar-se sobre essas palavras, o que não fez até hoje, apesar das nossas insistências, das várias conversas que tivemos quando fomos recebidos para entregar o nosso protesto e também um apelo. Estamos desagradados. Os bombeiros consideram-se ofendidos e enquanto tivermos este sentimento não participamos em reuniões da AGIF e vamos continuar a lutar nos sítios certos. E, portanto, neste momento passamos a uma outra fase, que julgo que será na próxima semana, em que apresentaremos uma queixa-crime por injúrias e difamação nos competentes tribunais para encerrar este assunto de vez.
Faz sentido os bombeiros estarem a fazer uma carta, a fazer um protesto, a ameaçar com um processo judicial por causa de umas declarações, enquanto o país está a arder? Não poderia ter escalado as prioridades de outra forma?
Podia, mas sabe que os portugueses têm uma boa frase para isso: quem não sente não é filho de boa gente. E, portanto, isto não tocou em nada a nossa capacidade operacional. Se verificarem, tudo aquilo que foi solicitado aos bombeiros, nós fizemos, e fizemos até além daquilo que nos é muitas vezes exigido. E gostava até de deixar aqui um número: temos 243 mortos em serviço, de 1980 até agora, mas temos no ano 22 e 23, até ao momento, 170 bombeiros feridos. Desafiava a saber quais são as outras forças de segurança que têm estes números. Isto é, a profissão de bombeiro, o exercício da atividade de bombeiro.
Na carta, a Liga dos Bombeiros desafia o Governo a rever aspetos como o financiamento dos corpos de bombeiros, a proteção social e a formação, e lamenta que as reuniões com o Ministério da Administração Interna no início do ano não tenham produzido resultados com soluções claras para atenuar a vida difícil dos bombeiros. Houve alguma resposta do primeiro-ministro?
O sr. primeiro-ministro nunca nos deu a oportunidade de podermos conversar com ele diretamente, nem nunca nos deu o prazer de estar connosco, bombeiros, nos últimos tempos. E, portanto, não houve nenhuma resposta. Aquilo que endossámos sempre ao sr. primeiro-ministro, com toda a cortesia, tenho endossado ao sr. ministro da Administração Interna. E a Liga dos Bombeiros Portugueses tem de dizer que, com o sr. ministro da Administração Interna, temos tido um diálogo franco e aberto e em algumas coisas, melhorámos. Melhorámos, até, substancialmente em alguns aspetos. Agora, há questões de fundo que, muitas das vezes, se prendem com as questões orçamentais. E, portanto, estamos sempre empurrados para aquilo que é, talvez, um pano escuro onde por trás há umas sombras, que são sempre as finanças. Não há dinheiro. Há o PRR, há os fundos, mas estamos sempre a ser empurrados. Estou à vontade sobre essa matéria porque a Liga dos Bombeiros Portugueses conversa com todos e já tive a oportunidade de conversar com todos os membros do Governo que têm, de uma forma direta ou indireta, uma relação com os bombeiros.
Todos, exceto o primeiro-ministro?
Exceto o primeiro-ministro. Mas isso não foi por razão de não lhe termos solicitado audiências. É que o sr. primeiro-ministro entendeu que o assunto devia ser tratado, eventualmente, noutros ministérios e tem todo o direito de o fazer. E nós, cada vez que ele diz que este assunto deve ser tratado com o sr. ministro da Saúde, vamos ao sr. ministro da Saúde ou com qualquer outro ministro que nos seja indicado. Portanto, vamos a todo lado e temos conseguido resolver alguns problemas. De facto, conseguimos resolver o problema de transporte de doentes não urgentes com o Ministério da Saúde. É verdade. Conseguimos resolver o problema dos transportes urgentes com o INEM, conseguimos resolver o problema das portagens e também já fomos ao Ministério das Finanças levar as nossas perspetivas de o que é que deveria acontecer para que as associações pudessem sobreviver. Porque estamos, em alguns casos, em grave risco.
Além do financiamento, há outros pendentes com o Governo?
Alguns estão pendentes, como, por exemplo, esta questão do financiamento. O financiamento, para nós é muito importante porque os bombeiros vivem de mão estendida. Costumo dizer, a título de brincadeira com os meus companheiros de caminhada, que eu passo a vida a pedir. E os presidentes de associações humanitárias passam praticamente a vida a pedir. Portanto, temos de solicitar ao Governo central, temos de solicitar às autarquias, temos de solicitar aos beneméritos, ou seja, passamos a vida a pedir. E o que achamos é que, neste momento da democracia, da Europa, é que os bombeiros deveriam estar de uma forma diferente. Isto é, que o Governo olhasse para os bombeiros e discutisse, de facto, o que é que quer dos bombeiros. Queremos bombeiros voluntários ou queremos bombeiros profissionais?
Em Portugal, deviam ser profissionais ou profissionalizados?
Julgo que isso é o menos importante. O que é o mais importante é saber o que é que os portugueses querem. Porque a profissionalização de um Corpo Nacional de Bombeiros custa mais de 2,5 mil milhões de euros por ano. Portanto, este é um aspeto que não podemos deixar de equacionar. No que diz respeito à Liga, o que pensa é que o sistema atual de corpos de bombeiros voluntários, baseados em associações humanitárias de bombeiros, com a emanação que têm da sua própria comunidade deve ser a estrutura fundamental. Mas porque a exigência que hoje temos é completamente diferente do que tínhamos há 20 anos ou há 30, temos de manter dentro desses corpos de bombeiros um conjunto de profissionais que respondam à primeira emergência, deixando que a segunda emergência, isto é, o segundo reforço à segunda emergência, possa ser feita por voluntários. Portanto, a matriz é uma matriz voluntária com profissionalização de alguns desses voluntários dentro daquele corpo de bombeiros, respondendo a uma coisa que vimos a defender, que é um contrato de programa. Não vamos lá se não for assim. O que gostaríamos é que o Governo contratualizasse com direitos e deveres, com responsabilidades de ambos os lados, para que se integrasse aquilo que é a responsabilidade financeira do Governo central, dos municípios, câmaras municipais que têm responsabilidades no âmbito da proteção civil, e dos próprios sócios que criam a sua associação e dos beneméritos.
E quão menos custa esse Contrato Programa em relação àquilo que referiu dos bombeiros profissionalizados?
Posso dizer que, sob estimativa do Instituto Nacional de Estatística, no ano de 2021, as Associações Humanitárias de Bombeiros, porque têm de entregar na Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil e na UINE os seus relatórios e contas, tiveram como receita, portanto, do Estado global, independentemente do que é, cerca de 370 milhões de euros. Isto é a receita atual.
Hoje o país tem um regime misto?
Sim, é um regime misto, mas clarificado.
Mas não será essa a grande fragilidade dos bombeiros?
É verdade aquilo que diz e, por isso, o contrato de programa. Ora, o contrato de programa é aquilo que temos vindo a defender para garantir o standard mínimo de resposta, isto é, o país obrigatoriamente tem de ter aquele standard mínimo. E depois tenho a possibilidade de ter um corpo de bombeiros melhor ou pior do ponto de vista do material, das instalações, das condições que dou aos meus próprios bombeiros, a melhores camaradas, uma televisão de maior ecrã, etc. Isso é outra coisa. Agora, o standard mínimo tem de ser mantido. Não podemos ter a validade de eu ser socorrido num determinado ponto do território nacional de maneira diferente daquilo que é o padrão mínimo de qualidade que é exigido, por exemplo, em Lisboa ou no Porto.
Mas admite que isso acontece?
Admito que isso está a acontecer.
E quanto mais pequenos são os corpos de bombeiros ou mais pequenos são os concelhos, maior é essa fragilidade.
Ou quanto mais a distância entre aquilo que é o município e o corpo de bombeiros, muitas das vezes é isso que acontece. Muitas das vezes por impossibilidade do município. Um município que tem cinco mil eleitores, tem capacidade para manter um corpo de bombeiros com 70 ou 80 homens? Tem dificuldade. Porque tem o problema da misericórdia, tem o problema das IPSS, tem o problema da associação humanitária. Portanto, o Estado tem de criar o standard mínimo e dizer assim, para ter duas ambulâncias, dois carros de combate a incêndio, uma autoescada num concelho, eu tenho de contratualizar com esta associação este valor. E é esse valor que se deve depois garantir que seja para um fogo urbano, seja para um acidente rodoviário, seja para um incêndio florestal, que aquele corpo de bombeiros tem capacidade de resposta. Porque o Estado também ganha muito dinheiro com isto. Um bombeiro voluntário, que é contratualizado para a época dos fogos florestais nas suas equipas, ganha 2,58 euros à hora. Isto é mais ou menos metade do que ganha qualquer outra força de segurança, portanto, isto também tem vantagem. O que temos vindo sempre a dizer é que o subfinanciamento crónico, não vem de agora, não é este o Governo responsável, é crónico, porque nunca se quis discutir de facto como é que os bombeiros voluntários, que deixaram de ser aquele bombeiro voluntário em que havia uma única pessoa no quartel que tocava a sirene porque havia um acidente de vez em quando. Então, para isso, temos de manter permanentemente standards mínimos.
Então, neste tema do financiamento não há avanços nesta negociação?
Não há avanços. É muito difícil haver avanços, mas há alguns avanços no que diz respeito aos serviços prestados. Como disse há pouco, conseguimos um melhor acordo com o INEM, já é o terceiro que conseguimos em ano e meio, conseguimos um acordo com o secretário de Estado da Saúde sobre o transporte de doentes não urgentes, razoável, mas, por exemplo, já temos um problema. Nos últimos três meses o combustível aumentou 15%. Isso tem uma implicação direta nos nossos custos de 3%. O que quer dizer que ao pagar, neste momento, uma taxa de saída de 10 euros, já não é 10 euros, já é mais 3%. E isto multiplicado por cerca de 2 milhões de serviços que fazemos por ano é muito dinheiro. Porque aqui a dimensão que temos é esta: os bombeiros são 434 associações bombeiros, a um euro são 434, mas quando falamos em 1000 euros para cada corpo bombeiro, como é? Quando o governo subsidia anualmente no valor fixo de 32 milhões de euros para este ano os 434 corpos bombeiros e até dentro daquele rácio que depois deu aquela discussão com a AGIF, o valor que é depois distribuído pelos 434 corpos bombeiros não é quase nenhum.
Mas quem é que está a falhar neste ponto para que não haja avanços? É a tutela?
O Ministério da Administração Interna, peço desculpa pela expressão que vou usar, é também um bocadinho vítima como nós somos, porque somos o front office.
Então o assunto tem de ir ao primeiro-ministro? É isso que está a dizer?
O assunto tem de ser um assunto do governo e da Assembleia da República. A Assembleia da República tem de pensar, porque isto não é uma questão para este governo, é uma questão para sempre. Isto é uma questão de regime. O que é que queremos daqui a 10 anos dos nossos bombeiros? Não podemos continuar a dizer que queremos bombeiros voluntários e ter desertificação do interior. Se tenho 4 mil eleitores num concelho e desses 60% têm mais de 65 anos, como é que vou recrutar bombeiros voluntários?
A expectativa é que o assunto vá ao Parlamento nesta legislatura?
Fizemos uma petição e a primeira comissão vai discutir connosco alguns aspetos. Não tenho essa perspetiva. Acho que nós, em Portugal, nos acomodamos demasiado às questões e isto vai funcionando. E porque é que vai funcionando? Porque os bombeiros nunca farão aquilo que outras forças podem fazer, que é ausentar-se do serviço. Como é que posso barricar-me dentro de um quartel de bombeiros e depois à porta do quartel bombeiros alguém tem um acidente? Vão bater à porta do quartel e o bombeiro não sai? Sai.
Não vão fazer greve?
Nunca poderão fazer greve, porque isso é contra a nossa matriz.
E isso enfraquece o poder reivindicativo?
Claro que enfraquece, porque todos os políticos do país já perceberam que os bombeiros podem dizer tudo o que querem, mas quando chega à hora e toca o telefone no quartel, eles metem-se na ambulância e vão a correr para o local e muitas vezes têm acidentes com prejuízo para a sua própria vida, para defender as outras vidas. E isso é uma matriz dos bombeiros voluntários. Mais uma vantagem. E, portanto, sendo esta a matriz dos bombeiros voluntários, é normal que enquanto a situação está, para que é que nos vamos preocupar com isto? Se a UIGA continua a convidar toda a gente para as suas cerimónias, se os bombeiros continuam a convidar todos os políticos para as suas cerimónias, se até temos uma boa relação e de convivência, e temos, a UIGA tem uma boa relação de convivência com todos os ministros e com todos os políticos.
Tinha uma expectativa diferente em relação ao papel do ministro da Administração Interna?
O senhor ministro da Administração Interna tem tentado apoiar os bombeiros. A questão aqui é que é mais fundo e acho que não está na mão dele. Acho que ele, e agora estou a fazer uma especulação, gostaria de resolver o problema, mas é claro que depois temos o ministro das Finanças, depois temos o problema dos fundos comunitários, o problema da saúde, portanto, isto está tudo espartilhado.
Se isto não se resolver, o que é que no limite pode acontecer? Os bombeiros não terem condições para sair do quartel perante uma emergência?
Eu acho que nunca vai acontecer isso, porque são 434 corpos bombeiros. E, portanto, poderá haver alguns que vão definhar. No limite vão desaparecer. Poderá acontecer. Não é que esteja no horizonte de curto, médio prazo que isso aconteça, mas pode acontecer. Porque depois também temos aqui dois pesos e duas medidas. Há concelhos que investem nos seus bombeiros 3 milhões de euros...
Há concelhos mais fortes, mais prósperos, em que os corpos bombeiros estão altamente equipados. E há outros em que o dinheiro não chega para pagar a água e a luz.
Tinha um concelho até há bem pouco tempo que não tinha uma única viatura específica de combate a incêndios urbanos. Era um concelho com quatro corpos bombeiros. Portanto, isto, e não é muito longe daqui.
Onde é que é?
É um bocadinho ali a sul, fica na Península de Setúbal. Mas isto é para se perceber que por isso é que nós defendemos muito o contrato-programa. E isso não depende só do Sr. Ministro da Administração Interna. Nem depende só do Governo. Depende da Assembleia da República, que isto tem de ser articulado com todos os partidos e tem de ter uma capacidade para dizer o que é que queremos para o futuro.
As sucessivas reformas na proteção civil parecem ter sido feitas um pouco à margem das corporações de bombeiros. É impressão minha?
Não, é uma certeza. Os corpos de bombeiros, desde que acabou o Serviço Nacional de Bombeiros, têm perdido protagonismo do ponto de vista daquilo que é a sua responsabilidade no processo legislativo e no processo reformista, quando são quem faz 97% dos serviços da proteção civil. Hoje os bombeiros são uma espécie de mão de obra barata para a proteção civil. E a proteção civil o que faz é mandar naqueles que têm de se sujeitar a essa situação, por força muitas das vezes daquilo que são leis mal feitas, mal organizadas. E, portanto, houve aqui um processo que durou algum tempo, vários governos, várias situações e que conduziu hoje a que os bombeiros não são comandados por bombeiros. Os bombeiros hoje, a determinada altura, perdem a sua capacidade de comando para serem comandados pela proteção civil. O que não quer dizer que alguns dos elementos que estão na proteção civil, ou alguns dos elementos que estejam, não sejam bombeiros, ou melhor, ex-bombeiros. Mas a estrutura hierárquica, piramidal, de ter um comandante nacional de bombeiros e que acabe no bombeiro, não acontece. E isso depois traz graves problemas até à própria proteção civil. Exemplo: a proteção civil preocupa-se muito na coordenação das operações. Em particular nos incêndios florestais e nas situações de cheias, inundações, etc. Bom, eu tenho uma vantagem. Fui inspetor superior de bombeiros e fui o primeiro presidente civil da proteção civil. E sei muito bem qual é o papel da proteção civil em Portugal e no mundo. E sei muito bem qual é o papel dos bombeiros em Portugal e no mundo. Os bombeiros foram constituídos nitidamente, estruturalmente, para combate a incêndios. Era essa a sua vocação. Depois alargou ao transporte de doentes urgentes e não urgentes por via de que ninguém na sociedade resolvia o problema, e os bombeiros o fizeram, e socorros a náufragos, porque também, naquela altura, era deficiente a proteção que se fazia nas comunidades, especialmente piscatórias. E, portanto, os bombeiros tinham estas três grandes áreas. Quando a proteção civil aparece para proteção das populações. Ora, proteger as suas populações não é comandar incêndios florestais. Proteger as suas populações, em primeiro lugar, é sensibilizar, informar, educar as populações para o risco. Esta é fundamental, e a proteção civil esteve excelente aonde? A aldeias seguras, pessoas seguras. Ora, deu aí um exemplo concreto e prático de que a proteção civil, na nossa perspetiva, da Liga dos Bombeiros, de que se deve vocacionar para quê? Para organizar a sociedade, para ser resiliente. Aliás, hoje aparece esse programa de resiliência das cidades. Ora, é isto que a proteção civil deve fazer, em primeiro lugar. Só em segundo lugar é que deve fazer a coordenação estratégica dos meios. E por isso a Lei de Bases da Proteção Civil, que é uma excelente lei, tem muito claro o que é que compete ao poder político, o que é que compete ao poder técnico, proteção civil, serviços de proteção civil, e o que é que compete aos agentes, os executantes no terreno. E, a determinada altura, desde 2004, 2005 para cá, começou-se a criar uma confusão e hoje os bombeiros foram absorvidos do ponto de vista do mando, do comando, por parte da proteção civil. Ora, uma das coisas que nós dizemos é que beneficiávamos todos se os bombeiros fossem comandados por bombeiros. E se a proteção civil continuasse numa situação de emergência, de risco, de vulnerabilidade nacional ou regional, ou local, a fazer aquilo que deve fazer. Salvamento de retirada de pessoas das aldeias, a questão da logística, a questão do corte de estradas, etc. Aquilo que é estratégico. Agora, o combate às chamas, deixem isso para os bombeiros.
No combate aos fogos ou na resposta a catástrofes, a cadeia de comando funciona, ou seja, é de facto a proteção civil que manda?
Apetecia-me dizer "tem dias". Cada situação é uma situação. É evidente que, se nós estivermos a falar de um acidente rodoviário, em que muitas das vezes há multivítimas, a proteção civil acaba por não se meter nisso. Nós, quando estamos a falar nestas questões, estamos a falar em questões de cariz mais elevado do ponto de vista do número de meios recrutados ou imobilizados por um teatro de operações, como, por exemplo, os incêndios florestais, que é o exemplo mais visível. O mais visível. Aquilo que aparece mais na televisão, nas rádios, na comunicação social, é onde há uma observação maior, se fizemos bem ou se fizemos mal, se estivemos bem ou se estivemos mal. Há uma maior crítica, há uma comissão de lições apreendidas para ficar tudo igual. E, portanto, nós com toda a honestidade o que dizemos é que nós queremos que o comando operacional dos bombeiros seja executado por bombeiros, não estamos a dizer que queremos sair da proteção civil. Nem dissemos que queremos sair dos serviços nacionais de proteção civil. Queremos a independência, a autodeterminação, dentro daquilo que é a proteção civil.
Mas isso não é um bocadinho corporativismo, ou seja, parece que os bombeiros não admitem que mais ninguém, além dos bombeiros, seja capaz de coordenar ou comandar a reação a uma catástrofe?
A Guarda Nacional Republicana, a PSP, os militares, a Autoridade Marítima Nacional, não é assim? Só os bombeiros é que têm de ser diferentes?
Na PSP e na GNR, por exemplo, estes só agora é que são os primeiros comandantes vindos das próprias unidades. Até agora vinham de outras forças.
Não, vinham dos comandantes...
A GNR vinha do Exército.
E acabaram com eles, não foi? Agora, este é o primeiro. Mas nós também queremos acabar com eles, não quer dizer que seja de um dia para o outro. O que queremos é exatamente, com uma diferença, é que os bombeiros já tiveram o seu comando, e foi-lhes retirado, enquanto a GNR nunca tinha tido. A PSP também nunca tinha tido, e conseguiu ter. E bem, os militares sempre tiveram o seu comando, e portanto os bombeiros, o que querem, é voltar a ter o seu comando, não por saudosismo, porque nós queremos que os nossos técnicos de combate a incêndios se preocupem no combate a incêndios, e que numa operação, quando nós estamos a ver as chamas, que os bombeiros se preocupem com as chamas, e que haja outras entidades, que não os bombeiros, que se preocupem com as outras missões, e aí entra a proteção civil, que é coordenar todas as atividades para o bem comum, que é o salvamento de pessoas, bens e ambiente, e ter a proteção do cidadão.
Já aconteceu aos bombeiros no terreno receberem ordens dos comandantes distritais com as quais não concordam, ou que não entendem, que são adequadas, tendo em conta o teatro de operações?
Já aconteceu se os bombeiros já receberam ordens com as quais não concordam, ou que acham desadequadas.
É por causa disso também que lutam por esta autodeterminação?
Sabe que é muito estranho que nós façamos o seguinte, e vou-lhe dar o exemplo rápido, numa situação que vai compreender perfeitamente aqui o que nós dizemos. Os nossos bombeiros neste momento têm quatro riscos em comandante. Se quiserem ter um quinto risco, têm de ir para a proteção civil. E esse elemento da proteção civil até só se dedica aos bombeiros. Então porque é que não fica nos bombeiros? Nós já fizemos várias propostas ao sr. Ministro da Administração Interna sobre esta matéria. Aliás, o ano passado prometeu que este ano iríamos conversar sobre isso, depois não teve oportunidade de o fazer. Nós estamos à espera que agora, que está a acabar, está a chover, pensamos que o mês de setembro talvez seja um pouco mais calmo, vamos ver se é, em outubro nós voltaremos à agenda do dia, porque sabe que nós temos tempo. Os bombeiros duram há 620 anos. Portanto, nós podemos esperar mais 10 anos, 15 anos, 20 anos, mas nós não vamos deixar de lutar por aquilo que nós queremos, que é bombeiros comandados por bombeiros. Numa estrutura completamente diferente, tendo em atenção o momento que todos nós vivemos, a modernização dos nossos meios, a qualidade que os nossos meios têm de ter, mas queremos ter esse comando e vamos tê-lo.
Quando se deparam com decisões com as quais não concordam. O que é que fazem os comandantes no terreno? Tomam decisões paralelas? Têm de atuar consoante o cenário em que estão e, portanto, não respeitam essas ordens da tutela?
Sabe qual é o único agente de proteção civil que no pós-2017 está em tribunal e a única pessoa que foi inocentada, mas continua com o processo pendente porque está em recurso, na relação de Coimbra? Um comandante de bombeiros. Comandante Augusto Arnault. Pedrogão.
Já falámos aqui sobre ele.
Exatamente. Portanto, isto quer dizer o seguinte. Nós temos de ter em atenção que não concordando com algumas decisões que nos são sugeridas ou impostas...
São sugeridas ou impostas?
Umas vezes sugeridas, outras vezes impostas. Muitas das vezes o que acontece é que a salvaguarda dos cidadãos e dos bens impera sobre tudo. Podemos não concordar muitas vezes com essas decisões. Se calhar algumas das vezes alguns comandantes dizem que vão fazer como eles querem e fazem exatamente como eles devem fazer, e é com isso que salvamos as casas e as pessoas. Mas não vimos depois para a comunicação social, nem vimos para o relato público dizer isto, aquilo e aqueloutro. Há muitas coisas que precisam ser retificadas no sistema de comandamento. Desde logo há algumas ordens e contraordens que são dadas de organização. Este ano nós tivemos poucos incêndios e temos conseguido ter um combate muito eficaz e eficiente. Fruto de duas coisas, na minha opinião. Primeiro, o número de meios aéreos que foi possível ter em Portugal. E aí o Sr. Ministro da Administração Interna andou muito bem. Até ao contrário de outras pessoas. E conseguiu obter a disponibilização de 72 meios aéreos.
Vimos isso há pouco aqui em Cascais, por exemplo.
72 meios aéreos.
E quem são as outras pessoas?
Parece que o Sr. Presidente da AGIF disse nessa comissão que tínhamos meios a mais. Digo eu, acho que eu ouvi isso. Não tenho a certeza, mas eu vou confirmar se foi ou não. Se não foi, eu pedirei desculpa ao Sr. Presidente da AGIF. O número de meios aéreos. E aquilo que nós, Liga, bombeiros, no nosso comando próprio, sempre defendemos. Um ataque inicial musculado. Isto é, em vez de se mandar um helicóptero, manda-se um helicóptero e dois aviões. Ou três aviões. Portanto, tentar mitigar imediatamente os efeitos do incêndio. Triangulação e capacidade operacional musculada. E como temos tido a sorte, eu acho que é só sorte, não é mais nada, de termos não muitos incêndios, muitas ignições ao mesmo tempo, temos conseguido ter esta resposta rápida. E esta resposta rápida permitiu que nós tivéssemos cinco incêndios, seis incêndios de grande envergadura durante um verão inteiro. Admitindo que ainda pode haver um ou dois de grande dimensão, mas dificilmente será mais do que isso.
Quando o Presidente de uma agência governamental como a AGIF diz que os bombeiros recebem em função da área ardida e que há municípios a gastarem balúrdios, estou a citar, com as corporações de bombeiros, em vez de aplicarem as verbas na prevenção, julga que estas declarações são isoladas? Ou que de alguma forma, sendo este o Presidente de uma agência governamental, refletem o pensamento do Governo sobre o papel dos bombeiros?
Não vou fazer esse juízo de valor que possa ser isso, porque não tenho essa informação, antes pelo contrário. O que eu digo é que muitas das vezes os políticos, e não é só o Governo, são os políticos em geral, apreciam muito o trabalho dos bombeiros, mas, quer seja na Assembleia da República, quer seja no Governo, quer seja nas autarquias, não consubstanciam aquilo que é o apreço que eles nos dizem que têm por nós. E isso é o que eu digo. Quanto a essas afirmações, eu julgo que isso é um pensamento de um projeto, eu não diria pessoal, mas um projeto muito próximo de alguém na área da formação das florestas, que já se tenta fazer há alguns anos em Portugal, que é fazer a importação do modelo canadiano, americano, chileno ou australiano para Portugal. Se Portugal aceitar esse modelo, em que se divide bombeiros da floresta, de bombeiros urbanos, veja-se o que é que se passou este verão no Canadá. Veja-se o que é que se passou. Nós vamos cometer uma atrocidade para com as nossas populações. Porquê? O combate aos incêndios em Portugal, em muitas das localidades, dez minutos depois, quinze minutos depois, tem uma casa à frente. Nós não temos extensões florestais que nos permitam às sete horas da noite, por razões de contrato de trabalho, sair e voltar no outro dia de manhã. Isso não existe. No dia em que o fizermos, não vale a pena, só fazemos o primeiro ano, desaparecemos, ficamos sem casas e sem floresta. Se o querem fazer, façam.
O governo quer fazer isso?
Eu não sei se o governo quer fazer isso. O que eu sei é que há algumas entidades que defendem que haja uma separação. E mais, já temos criado a força de sapadores-bombeiros florestais. Por acaso, que antes de terem mais do que 100 homens, nem 100 homens e mulheres, já têm um comando. A primeira coisa que fizeram é ter um comando. Depois é arranjar os homens. Nós, é ao contrário. Continuamos a ter bombeiros, ainda sem termos o nosso próprio comando. E já criaram isso. Bom, vamos ver o que é que isso vai dar. Essa questão é uma questão que não funciona, na nossa opinião. E veja-se a Galiza. Vejam-se os incêndios em Espanha. Esse modelo de que o florestal é silvicultor e durante três meses passa a bombeiro, isso não pode existir. Pode existir do ponto de vista supletivo. Isto é, eu acho que é um desperdício ter um corpo de bombeiros a fazer um rescaldo. Mas onde é que estão os sapadores florestais a fazer o rescaldo? Já viram? É que eu não vi. É que depois fala-se muito, mas depois, quando se vai à prática, as coisas não são bem aquilo que se procura. Porque é preciso depois ter capacidade para poder fazer. Qual é o país? Aliás, temos um caso até interessante. Os senhores ouviram na Grécia que havia num determinado incêndio que estava uma ilha a arder com mortos, com situações de autêntica calamidade, 500 bombeiros. Depois nós pusemos em Odemira mil bombeiros numa tarde. A maior parte voluntários. É essa a nossa riqueza. Nós não podemos prescindir dos nossos bombeiros. Esqueçam. Uma coisa é a questão da prevenção. Uma questão da silvicultura. Outra questão é o combate. O combate é feito pelos nossos bombeiros. E depois há de haver forças que, supletivamente, ajudem em determinados locais e em determinadas situações a complementar o trabalho dos bombeiros.
Tem alguma expectativa tem relação ao Orçamento do Estado?
Nós já não criamos expectativas. O que nós fazemos todos os anos e vamos fazer agora é falar com todos os grupos parlamentares. Não é possível continuar a não ter um plano de médio prazo. A PSP, a GNR, as Forças Armadas e bem, têm planos de investimento plurianuais. Os bombeiros têm de o ter. Nós temos de saber o que é que queremos dos nossos bombeiros daqui a cinco anos.
