Os caminhos andados do profeta de Amarante
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Foi pela manhã de 9 de Dezembro de 1923 que nasceu Manuel da Silva Vieira Pinto, em Aboim, no concelho de Amarante. A pobreza dava mãos à generosidade, numa terra pequena e de fracos recursos.
José Lino é um dos nove irmãos e um dos três afilhados do padre Manuel. Ambiência rural de pequenos agricultores. Para o segundo filho mais velho, o Manuel, estava destinado, segundo o pai, o comando do pouco património da família. Com a ajuda do pároco, o Seminário Diocesano do Porto ganhou mais um candidato. Cedo se manifestou nele o líder natural que, depressa, se fez sentir nos eventos, de carácter cultural e festivo, na aldeia dedicada a S. Pedro.
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Vieira Pinto dialogava com Teixeira de Pascoaes
Em plena guerra mundial, um grupo de seminaristas daquela zona, abrigada pelo Marão, visitava o esplendor da filosofia e da poesia de Teixeira de Pascoaes, na freguesia de Gatão. Nos jogos de infância, além do peão e do berlinde, o pequeno Manuel entretinha-se a fazer de padre nas missas que, ingenuamente, improvisava. Teixeira de Pascoais gostava de conversar com aqueles rapazes inquietos.
Um pouco mais crescido, era, à noite, que, em família, o Manuel experimentava a reza tradicional do terço, uma das vertentes da religiosidade popular na época, enquanto no país e no mundo dos anos 30, emergiam as angústias de todas as fomes.... Entre os seminários da diocese do Porto e a aldeia de Aboim, no epicentro da família, consumiram-se os 12 anos de formação humana e teológica, exigidos para o exercício pleno do sacerdócio católico. Na aldeia, não havia, ao tempo, quaisquer outras formações. E veio a festa da missa nova a 15 de Agosto de 1949, antecedida pela ordenação na catedral do Porto. No terreiro da casa, ergueram-se mesas e a alegria transbordou do arraial.
Por mais de 5 anos, o padre Manuel Vieira Pinto foi destinado ao acompanhamento dos jovens operários da Acção Católica, nas periferias da cidade do Porto. Em breve, pôs a render as qualidades com que fora servido. Os amigos surgiam inevitáveis.
O primeiro pregador na RTP
Do bulício do meio operário juvenil, em que se sentiu como peixe na água, o padre Manuel Vieira Pinto é nomeado, em 1955, Director espiritual do Seminário Menor de Vilar, no Porto. Infelizmente, acabaria nesta casa os seus dias, 65 anos depois, vítima de Alzheimer.
Nos anos 60, enquanto a figura lendária do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, remia, com o exílio, as investidas contra o Governo de Salazar, Vieira Pinto tornou-se o pregador maior da Igreja portuguesa, que a televisão nascente descobriu no Pavilhão de Desportos de Lisboa e Porto. Nascia em Portugal a estrela do Movimento por um Mundo Melhor, no pontificado do papa Pio XII. O jesuíta Ricardo Lombardi tinha descoberto um novo modelo de espiritualidade. Acontecia um terramoto que haveria de sacudir a sonolência da Igreja Católica, mesmo às portas do Concílio Ecuménico Vaticano II, trazido a lume, uma década depois, pelo improvável Papa João XXIII. Andavam, então, na roda de Vieira Pinto os padres Feytor Pinto e o frade capuchinho, Acílio Mendes, da pastoral bíblica e litúrgica.
Uma criança negra faz estremecer colonos brancos
O Vaticano, na pessoa do Papa Paulo VI, não hesitou escolher, em 21 de Abril de 1967, o padre Manuel Vieira Pinto, director do Movimento por um Mundo Melhor, para bispo da diocese de Nampula, no norte de Moçambique.
Um gesto profético bem calculado, no aeroporto de Nampula, haveria de marcar indelevelmente, o seu múnus episcopal, na colónia de Moçambique. Uma criança negra, arrancada ao colo da mãe e projectada contra o Sol, fez estremecer uma multidão de colonos brancos, à espera de um pastor católico e português, da mesma cor...
A pouco e pouco, muda-se a vida, toda a vida, em tons africanos, na encantada cidade do norte de Moçambique.
Nos primeiros dias da presença de D. Manuel Vieira Pinto, em Nampula, alguém faz as vezes de secretário particular: o padre José Luzia - há 65 anos daquela Diocese moçambicana, ido dos Seminários da Guarda e dos Olivais, em Lisboa.
Bispo e missionários expulsos e acusados de traidores
Há um novo missionário na fogueira de Nampula. Manuel Horta, de 82 anos, natural de Vila Nova de Tazém, no concelho de Gouveia. O missionário comboniano foi expulso de Moçambique por ter promovido e assinado, em 12 de Fevereiro de 1974, o documento Um Imperativo de Consciência. Mas não se sente, por isso, traidor da pátria. Apenas teve pena do sofrimento por que passou o povo moçambicano.
Por sua vez, Anselmo Borges, teólogo e padre da Sociedade Missionária Portuguesa, assinou o primeiro livro sobre o pensamento de Vieira Pinto quando, em 1992, ocorreram os 25 anos da sua ordenação episcopal, tendo sido homenageado pelo Presidente Mário Soares, em cerimónia realizada, no teatro Rivoli, na cidade do Porto. Em tempo de guerra é um imperativo de consciência repensar a mesma guerra. Em conversas pessoais que Anselmo Borges mantinha com Vieira Pinto registou uma das mais intrigantes perguntas do presidente Samora Machel, dirigidas ao bispo de Nampula.
Segundo Anselmo Borges, foi este à-vontade do bispo de Nampula com Samora Machel, que permitiu que Vieira Pinto lhe dirigisse as mais extensas cartas com críticas duras sobre os desmandos da Frelimo, no poder.
O missionário Zé Luzia, como gosta de ser chamado, depois de ter provado também a expulsão do território, em 1976, reflecte também sobre o renascimento de uma Igreja que quis continuar um projecto novo, apesar das condições impostas pela revolução marxista-leninista, em que a religião se viu, calada, sem meios, colonizada outra vez.
Freira espanhola no oásis do convento Mater Dei
Refere-se agora o oásis espiritual, que se sente na natureza verdejante e tranquila da diocese da Nampula. Ali se instalou, em 1973, o convento Mater Dei de candidatas africanas. Um desejo longo da irmã Juliana Calvo Arinho, nascida em Espanha, em Teruel, em 1943. Programadas ainda em tempo colonial, não foi fácil àquelas religiosas chegarem à diocese de Nampula. Esperava-as o bispo, D. Manuel Vieira Pinto, um homem, a toda a prova, sensível.
A simplicidade do bispo, contrastava com o ambiente de espionagem política capitaneada pela PIDE-DGS. Mal chegadas a Nampula, as religiosas do convento Mater Dei foram testemunhas da polémica expulsão do bispo e dos missionários que ousaram defender a auto-determinação e a independência dos povos.
O bispo ocultado e esquecido
D. Manuel Vieira Pinto, arcebispo emérito de Nampula, celebra a dia 9 de Dezembro de 2023, cem anos do seu nascimento.
Com o ministério pastoral, exercido na antiga colónia de Moçambique, como já referido, foi vítima da doença de Alzheimer, por mais de uma década, e sepultado, em plena pandemia, a que apenas quatro familiares puderam estar presentes, D. Manuel Vieira Pinto desapareceu aos 96 anos de idade. O arcebispo emérito de Nampula viu-se, assim, ocultado de um mundo que ele, mais do que ninguém, amou até ao fim.
Caberá à Igreja Católica em Portugal e em Moçambique, bem como aos Governos destes dois países, envidarem esforços para que não se apague a memória de quem serviu, com dignidade e denodo, a humanidade.
