Os e-mails que provam a existência de um cartel entre os bancos
Perceba como funcionava o alegado cartel no crédito à habitação, ao consumo e às empresas que levou a aplicar uma multa recorde de 225 milhões a 14 bancos.
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A decisão final da Autoridade da Concorrência (AdC), que em setembro condenou e aplicou uma multa de dimensão nunca vista a 14 bancos, explica ao detalhe como funcionou durante mais de uma década, entre 2002 e 2013, o chamado cartel da banca, violando a lei e prejudicando os clientes num setor considerado "fulcral" para a economia portuguesa.
A decisão de 936 páginas, analisada pela TSF e só agora divulgada na íntegra, explica que a concertação entre os bancos tinha cinco características: contactos por email ou telefone; caráter bilateral ou multilateral; contactos institucionalizados; pontos de contacto estáveis; reciprocidade nas informações trocadas entre os bancos; e conhecimento de quem manda.
Os contactos por email ou telefone
A investigação da AdC incidiu sobre 94.777 ficheiros eletrónicos apreendidos ou entregues pelos dois bancos que denunciaram ou confirmaram as práticas ilegais.
Boa parte da análise foca-se na informação "sensível", "não pública" e "estratégica" para a atividade bancária trocada, bem como na forma como esta era partilhada.
A decisão sublinha que a informação partilhada chegava a incluir intenções de alterações de comportamento estratégico de cada banco no futuro próximo, podendo evitar, assim, a pressão da concorrência.
Nomeadamente, havia partilha de preços - mais conhecidos como "taxas de spread" aplicadas ao crédito concedido aos clientes - e dos montantes dos empréstimos concedidos mensalmente por cada banco num pormenor a que nem o regulador do setor, o Banco de Portugal, tinha acesso.
A informação recolhida pela AdC revela que a troca era feita, por norma, pelos departamentos de marketing e de crédito.
Contactos feitos por telefone ou e-mail entre pessoas que tinham, normalmente, as mesmas posições nos bancos concorrentes.
A Autoridade regista contactos por telefone "intensos", comprovados por referências a essas mesmas chamadas em vários e-mails.
Nos muitos e-mails há evidências que levam a AdC a concluir que era evidente a concertação entre os bancos.
O caráter bilateral ou multilateral
Outra característica do cartel era ser bilateral ou multilateral. Ou seja, umas vezes a informação era passada a outro banco (que por sua vez a passava a outros) ou a vários ao mesmo tempo.
Perante tantos e-mails analisados, a decisão dá exemplos como um e-mail enviado de um responsável do Barclays para outro do Santander, em 2010, transmitindo que o BPI ia subir os seus spreads no dia seguinte e pedindo para o Santander não divulgar esta informação.
Os contactos institucionalizados
Outra característica eram os contactos institucionalizados: a troca de informações era reiterada e frequente fazendo mesmo parte das funções dos departamentos que tinham a tarefa de se articularem com os concorrentes para conhecer as suas ofertas e condições comerciais.
Mais uma vez a AdC apresenta como exemplo um e-mail, agora interno do Santander, de 2012, incluindo anexos que revelam a capacidade de monitorização dos concorrentes "devido à troca de informação".
São ainda citados e-mails internos do antigo BES ou um mail do Montepio a questionar o BES.
Os pontos de contacto estáveis
A prova apresentada também leva a Autoridade da Concorrência a concluir que os responsáveis que comunicavam entre si eram sempre os mesmos, numa "organização estável" que fazia com que qualquer alteração de contactos fosse rapidamente contactada aos colegas dos outros bancos que também trocavam informações, com listas atualizadas de contactos diretos.
Voltam a ser citados e-mails internos, mas também entre bancos para provar a tentativa de assegurar a continuidade da troca de informação.
Em 2010, por exemplo, há um e-mail interno do BBVA, na sequência de um pedido de troca de informação do BCP, em que se incentiva o novo responsável a aproveitar o contacto e telefone para se "apresentar como a nova gestora do produto", dizendo-lhe que devia ter "contactos regulares com os seus homólogos dos outros bancos" para conhecer a "produção, oferta, tendências".
Ou seja, "decorre da prova que o intercâmbio existia independentemente da mudança de colaboradores dentro dos departamentos responsáveis por manter a troca de informação".
"Os novos colaboradores eram apresentados pelos seus antecessores aos colegas da concorrência e/ou incentivados a manter os contactos com os concorrentes", lê-se na decisão da AdC que logo a seguir cita um e-mail de 2001 de um responsável do BES, para vários concorrentes como a CGD, BCP, Montepio, Barclays, BBVA, Santander, BPI e BPN, com o contacto do seu sucessor:
Nesse e-mail pode ler-se: "Venho agradecer toda a vossa colaboração dentro do meu trabalho no que respeita a informação da concorrência. Aproveito para indicar o nome do novo responsável nesta área, o qual irá continuar a colaborar do mesmo modo que tem vindo a ser usual dentro do nosso trabalho".
A hierarquia
As trocas de e-mails analisadas permitiram ainda perceber que a partilha de informações sensíveis era feita com "conhecimento dos respetivos diretores e administradores, que autorizavam previamente a troca de informação".
Neste ponto é dado o exemplo de trocas de e-mails de 2011 entre o Santander e a Caixa Agrícola ou um e-mail interno do BPN para os superiores com os preços do BES que entrariam em vigor daí a 3 dias, informação que tinha sido enviada (de novo por e-mail) por um responsável do BES à CGD, Santander, BPI, Montepio, Banif, BCP, Deutsche, BBVA e Barclays.
Também no banco público, a CGD, um e-mail de 2011 prova que a hierarquia conhecia e aprovava a troca de informação com outros bancos, com conhecimento, inclusive, de administradores.
Em 2012 há outro e-mail interno, agora no BES, com a análise de números obtidos junto das outras instituições de crédito.
A regra da reciprocidade
Finalmente, a regra da reciprocidade é a característica final destacada pela AdC.
Na prática, um banco dava aos outros informação sensível sobre as suas ofertas comerciais e dados sobre os créditos concedidos no pressuposto que iria receber informação idêntica dos concorrentes.
Os exemplos avançados são mais uma vez através de e-mails de 2008, 2010 e 2011 entre Barclays, Crédito Agrícola e Santander.
Num desses e-mails um dos bancos condiciona a resposta à regra da reciprocidade.
A Lei da Concorrência
Recorde-se, a terminar, o que diz a Lei da Concorrência para proteger os consumidores: "São proibidos os acordos entre empresas e as práticas concertadas entre empresas que tenham por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional".
Entre os acordos proibidos estão aqueles que consistem em "fixar, de forma direta ou indireta, os preços de compra ou de venda ou quaisquer outras condições de transação", "limitar ou controlar a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos" ou "repartir os mercados ou as fontes de abastecimento".
A decisão da AdC sublinha que não é admissível pensar que tanta troca de informação, de forma reiterada a institucionalizada, aconteceu durante mais de uma década sem o conhecimento das chefias dos bancos.
"Num mercado livre e concorrencial", afirma a decisão, "os concorrentes não trocam entre si informação estratégica, pelo contrário, utilizam-na para se distinguirem dos seus adversários e concorrerem pelo preço, pela qualidade e pela inovação, em benefício do consumidor".
Dois dos bancos envolvidos já assumiram culpas, mas a grande maioria anunciou, entretanto, que vai recorrer da decisão.
A Autoridade da Concorrência sublinha que a sua atuação já foi "sujeita ao escrutínio e validação permanente dos Tribunais, o que se traduziu na interposição de 43 recursos judiciais (incluindo para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Tribunal Constitucional), em relação aos quais somente 5 decisões foram desfavoráveis à Autoridade".
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O anúncio da condenação de 14 bancos a uma coima de 225 milhões de euros foi feito em setembro pela AdC. No entanto, só agora é possível conhecer todos os fundamentos numa decisão completa que a TSF tem consultado e analisado.
