Os espiões da II Guerra em Lisboa: do champanhe ao triciclo, códigos no soutien e partituras de Wagner
Nos 80 anos do fim do maior conflito da História, a TSF recorda “O papel de Lisboa na II Guerra Mundial”. No primeiro de três episódios, descobrimos o “ninho de espiões” na capital portuguesa. Reportagem vencedora do programa Lisboa, Cultura e Media
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Não consta que andassem de chapéu e gabardina, mas “Lisboa estava cheia de espiões” durante a II Guerra Mundial, garantem à TSF as historiadoras Marisa Filipe e Margarida Ramalho.
Em plena Avenida da Liberdade, Marisa Filipe dá o tiro de partida para uma visita guiada à “Lisboa dos espiões”. Nesta “avenida das elites”, havia tudo: a sede da aviação britânica (na actual sede do PCP), fábricas de porcelana e cerâmicas, orquestras que tocavam às quintas-feiras, refugiadas de quem se dizia que “estavam a trazer más influências às filhas”, por andarem em mangas de camisa e saias acima do joelho. Lisboa era um “oásis completo”, descreve Marisa Filipe, enquanto desce a Avenida “em direcção ao Garbo”.
Nesta viagem pela terra da espionagem, passamos pelas ruas, quiosques, bares e principais hotéis onde os agentes secretos ficaram alojados, no coração de Lisboa e também no Estoril. O chefe da espionagem britânica em 1943, Graham Greene, que haveria de tornar-se escritor, tinha mesmo uma lista dos hotéis que serviam de base à espionagem em Portugal.
Junto ao elevador da Glória, o hotel ”Suíço-Atlântico” orgulha-se de ter acolhido o basco Garbo, que inventou 26 espiões falsos. Sem falar inglês nem alemão, Garbo usava informações dos jornais, como cinemas e linhas de comboio, para enviar dados para o Reichstag. Conseguiu, assim, infiltrar contra-propaganda no regime nazi, chegando a enganar Hitler, ao dizer que o desembarque dos Aliados seria em Pas-de-Calais, em vez da Normandia.
Pelo “Suíço-Atlântico”, passou também António de Oliveira Salazar. Reza a história que era neste hotel que o ditador português se encontrava com uma amante francesa, aproveitando “rotas de fuga”, que descobrimos pela mão do director do hotel, Hugo Borges. Enquanto o “Suíço-Atlântico” era “ponto de encontro de ingleses”, nos Restauradores, o “Avenida Palace” era base da espionagem alemã e conhecido como “hotel do champanhe”. Marisa Filipe explica que, sem informações sobre a guerra, os portugueses só conseguiam ter notícias da frente de batalha de duas maneiras: ouvindo a BBC às escondidas ou pelo champanhe que se bebia no “Avenida Palace”. Dependendo de quem pedia garrafas de champanhe, assim se sabia se tinham sido os ingleses ou os alemães a ganhar uma batalha.
O luxuoso bar do “Avenida Palace” mantém a decoração em tons vermelhos, com um piano que terá inspirado uma cena do filme “Casablanca”. No Rick’s Café, um grupo de soldados alemães, que cantava o hino do Reichstag, é silenciado por uma mulher que entoa a Marselhesa. “Essa cena é aqui”, garante Marisa Filipe.
Outra ligação ao cinema nasce no Hotel Palácio, no Estoril, onde estiveram hospedados, entre outros, os condes de Barcelona, Antoine de Saint-Exupéry e Ian Fleming, o escritor que se terá baseado no espião Dusko Popov, para criar o agente secreto mais famoso do mundo, James Bond.
Ao serviço dos aliados e dos alemães, Dusko Popov, que seria considerado o agente duplo mais extraordinário da II Guerra Mundial, esteve alojado no Palácio Estoril e frequentava o Casino, onde se fazia acompanhar sempre por “duas beldades”. Por ser um agente duplo e pela companhia feminina, o espião era conhecido como “triciclo” e inspirou Ian Fleming, com quem se cruzava no hotel de cinco estrelas. “O 007 vem dele”, conta José Diogo, o funcionário mais antigo do Palácio Estoril, que chegou a entrar na saga que foi filmada no hotel, em 1968, “007 - ao serviço de Sua Majestade”.
Na cena que filmou três vezes, José Diogo entregava a chave do quarto a James Bond. “Ele ficou no 516. Guardei a chave e ainda a tenho”, recorda com orgulho, enquanto o director de comunicação do hotel, Tiago Bernardo, gosta de pensar no Palácio Estoril como “um parque de diversões para décadas passadas”. A ligação à História é explorada pelo hotel que promove visitas, festas e encontros, sob o lema “007 – licença para se divertir!”
A multi-milionária Betty Guggenheim também ficou no Estoril, onde fazia praia, atiçando os polícias dos bons costumes. “Ela começava a tirar a roupa” e divertia-se com os agentes que usavam uma “régua para medir os centímetros de pele que estavam expostos”, descreve Marisa Filipe. Sendo multi-milionária, Betty Guggenheim “pagava a multa à vontade”.
Todo esse eixo Lisboa-Cascais-Estoril era um ninho de espiões
É o que realça a historiadora Margarida Ramalho, que relata como os países beligerantes tentavam “angariar informadores nas pessoas que ganhavam miseravelmente”. Contudo, havia também espiões entre as estrelas mundiais, como a cantora Josephine Baker, que actuou em Lisboa em 1940. Na passagem pela capital portuguesa, a celebridade, que era também espia, escondia no soutien “rolinhos de papel com informações escritas a tinta invisível” e, com “muito sangue frio e muita coragem”, colocava-os entre as partituras de Wagner, o “compositor favorito de Adolf Hitler”, revela Marisa Filipe.
“Lisboa era uma cidade muito vibrante, um oásis no meio de uma Europa desfeita (...) com manteiga, champanhe e vinhos”
A historiadora recupera os passos dos espiões pelo Chiado e Rossio, até à “sede da Gestapo” e ao Terreiro do Paço. A praça mais emblemática de Lisboa estava “cheia de malas” durante a II Guerra Mundial, eram “pertences dos refugiados”. Mas esse capítulo da História fica para outro episódio desta série sobre “O papel de Lisboa na II Guerra Mundial”.
* A autora não segue as normas do novo acordo ortográfico