"Os grandes advogados que fundaram a democracia, como Mário Soares, devem estar a dar voltas no túmulo"
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Menos de seis meses depois de ter tomado posse, a bastonária da Ordem dos Advogados regressa à rádio. Fernanda Almeida Pinheiro desafia a ordem e promete paralisar em justiça. Em causa, a revisão do estatuto das ordens profissionais, que abriu guerra entre bastonários, bastonárias e governo.
Numa entrevista invulgarmente dura, a bastonária critica o governo e o PS, acusa os governantes de mentirem aos portugueses e recusa a ideia de estar a transformar a Ordem num sindicato. Diz que Mário Soares e outros advogados «fundadores da democracia» devem estar "às voltas no túmulo" com a forma como "este PS" está a conduzir a reforma das ordens profissionais.
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A Ordem dos Advogados considera que a proposta de revisão dos Estatutos "privatiza a Justiça ao permitir a negociação e cobrança de créditos por empresas que atuam sem qualquer tipo de ética". Isto quer dizer exatamente o quê?
Quer dizer que a partir de agora, e segundo aquilo que é a intenção do governo, vai legalizar aquilo que até hoje é considerado um crime de procuradoria ilícita, que vai permitir que estas empresas possam atuar livremente no mercado - embora digam que vão ter a supervisão de um advogado, a verdade é que quem vai estar a fazer cobrança são os contact centers dessas empresas. E em que termos é que falam com os cidadãos? Falam em termos de ameaça, em termos de tentativa de extorsão, de verbas que muitas vezes sabem que não têm legitimidade nenhuma para cobrar.
Isso já acontece?
Claro que acontece. Todos os dias nos tribunais. Posso lembrar-vos aquele exemplo clássico, aquilo a que chamamos case study, que são as empresas de telecomunicações. Em regra, como sabe, há muitos anos que é proibida a cobrança daquele valor de fidelização quando a pessoa sai do contrato, não é? Esses valores de fidelização, se a pessoa não paga, ficam lá, na empresa de telecomunicações. O que é que acontece nesses casos? Em regra, a empresa de telecomunicações vende esse crédito a terceiros e depois são estas empresas de cobrança agressiva que vão ter com o cidadão. E vão ter com o cidadão em que termos? Instauram uma ação de uma injunção, em regra é isto que acontece, e depois a pessoa já não reside no local onde habitualmente residia quando rescindiu o contrato. Provavelmente até por isso é que rescindiu o contrato, passou para outra morada e teve de rescindir. E, se calhar, os serviços nem são prestados nessa outra morada para onde foi, mas fica lá aquela verba. Então a pessoa não está lá para receber a sua notificação, não responde à sua notificação e o processo avança porque aquela injunção vai transformar-se num título executivo. E o que é um título executivo, para que toda a gente perceba? É um documento que permite que eu vá ao tribunal diretamente numa execução e penhorar bens diretamente às contas das pessoas, aos vencimentos das pessoas, património das pessoas, quando o valor dessa execução é inferior a 10 mil euros. Então imagine o que é, um belo dia, está na sua casa descansado e vai ao supermercado pagar uma conta de supermercado e não tem dinheiro na sua conta para pagar, mesmo sabendo que lá tinha dinheiro. E vai verificar e tem ali uma penhora. Ora, se não é citado e se não responde àquela situação dizendo que aquele crédito que lhe estão a cobrar não é devido, aquilo transforma-se numa coisa definitiva e, portanto, eles só vão parar de o penhorar quando chegar ao fim dessa execução. Aliás, vão continuar até a penhorar mesmo que se oponha, porque a não ser que preste caução - e muitas pessoas não têm dinheiro para prestar caução -, vão ter de continuar a pagar uma coisa que não devem até que um tribunal venha dizer que não deve.
Daí falar em "ameaça aos direitos, liberdades e garantias"?
Naturalmente. Agora, imagine o que é uma pessoa que recebe a remuneração mínima mensal garantida, que nem sempre tem a salvaguarda dessa situação, por exemplo, quando a cobrança é fiscal. Muitas das vezes não são respeitados os mínimos que são impostos por lei e se realmente a pessoa não vai a um advogado para se poder mexer, para poder conhecer os seus direitos e para poder também reivindicar os mesmos, junto das instâncias próprias, pode ficar gravemente prejudicado. E, portanto, isto quando é feito com advogados, já é complicado. Quando é feito com agentes de execução, já é complicado, mas quer os advogados, quer os agentes de execução, têm códigos deontológicos e regras que têm de cumprir e se não o fizerem existem consequências legais para que isso aconteça. Neste caso, e é aquilo que o governo propõe, o governo propõe que o mercado vá gerir estas realidades. E a pergunta que nós fazemos é, quando são lesados os direitos das pessoas quem é que vai responder a isto? A quem é que elas se vão queixar? Quem é que vai garantir, se existem danos patrimoniais ou não-patrimoniais àquelas pessoas, quem é que as vai ressarcir? É que uma ordem profissional tem obrigatoriamente um seguro de responsabilidade civil. Aqui o governo também diz que vai criar uma portaria para impor esse seguro. Vamos ver quem é que estará preparado para assumir essa responsabilidade.
Ficam expostos os vulneráveis?
Naturalmente. Repare que vamos continuar a afundar o enorme fosso que já existe. Acha que as pessoas que têm economicamente capacidade vão recorrer aos serviços de um licenciado ou vão recorrer aos serviços de um advogado?
A ideia de uma Justiça para ricos e outra ara pobres vai agravar-se?
Claro, porque é evidente que as pessoas, não tendo a noção, nem conhecimentos jurídicos, técnico-jurídicos, para poderem prestar aconselhamento jurídico e para pode- rem, inclusivamente, acompanhar as pessoas a tribunal, porque também é disto que se trata... Portanto, não se trata só de um acompanhamento jurídico e de uma consulta de dizer: "O senhor faça assim ou faça assim." Temos de dotar as pessoas de meios para terem igualdade de armas numa demanda judicial e é isso que não está a acontecer. Portanto, estamos a vender às pessoas, que é aquilo que pretende o governo. Aliás, eu fico até incomodada com o grau de desonestidade intelectual que existe por parte do governo de tentar vender esta ideia às pessoas, de que um licenciado em Direito tem os mesmos conhecimentos que tem um advogado. É incrível, já reparou? Para lhe dar um exemplo para as pessoas perceberem isto: este mês, o governo está a lançar, e bem, finalmente - que já não o fazia há 20 anos - um concurso público para admitir conservadores para as suas conservatórias. Deus sabe que a necessidade é grande e há 20 anos que não existia um concurso público. Nós precisamos também, e eles vão admitir também, funcionários para as conservatórias, porque está um verdadeiro caos e as pessoas não têm acesso aos seus direitos porque não conseguimos ter capacidade de resposta por parte das conservatórias, que não têm culpa nenhuma de não terem recursos humanos. A responsabilidade, naturalmente, é do governo. E, portanto, [isto para] dizer-lhe o seguinte: esses conservadores, as exigências em termos de habilitações literárias, são, curiosamente, um mestrado ou uma licenciatura pré-Bolonha. E a pergunta que se coloca é a seguinte: mas não é a mesma coisa um licenciado e um conservador ou um licenciado e um juiz, ou um licenciado e um advogado, ou um licenciado e um notário? E já agora, se o valor, se aquilo que o governo preconiza é que a licenciatura Bolonha é uma licenciatura normal, por que razão é que para o Estado se exige um mestrado e se exige uma licenciatura pré-Bolonha? Então, isto não é uma discriminação para com os jovens advogados e para com os jovens licenciados? Então o próprio Estado diz que não aceita e não quer licenciados pós-Bolonha porque só os outros é que são bons. Que mensagem é que estamos a mandar aos cidadãos?
A carta aberta que, no fundo, denuncia todas estas situações foi enviada pela ordem a Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente, a António Costa e a Úrsula von der Leyen. Obteve respostas?
Sim. Inclusivamente, o senhor primeiro-ministro, que diz que leu com muita atenção a carta, e o senhor Presidente da República que está, inclusivamente, a acompanhar este assunto muitíssimo de perto e já tinha demonstrado essas preocupações quando fomos recebidos em audiência no início do mandato, porque isto é uma coisa inqualificável. Ainda no dia 17 e no dia 18 de junho estive na Assembleia-Geral da Federátion des Barreaux d'Europe (FBE)- federação que agrega 210 ordens de advogados da Europa inteira - e, ao contrário de certas vozes que andam aí na praça a dizer que só os países totalitários têm ordens de advogados, não é verdade. Todos os países, até os totalitários, pasme-se, têm ordens de advogados. E nesses países, todos eles têm ordens de advogados livres, não há nenhum conselho de supervisão. Ninguém tinha ouvido falar nisto e estão absolutamente estarrecidos e, por isso, aprovaram em conjunto com a Ordem dos Advogados, depois da nossa denúncia, uma comunicação que foi feita e que foi também remetida, quer pela FBE, quer depois pelo CCBE [Conseil des Barreaux Européens], que é também uma agregação de ordens dos advogados da União Europeia, que tem assento no Conselho da Europa, ambas têm, e remeteram também eles próprios as suas comunicações e as suas cartas ao primeiro-ministro, ao Presidente da República, à presidente da Comissão Europeia a demandar, inclusivamente, ao próprio governo português para que venha esclarecer todo este processo. É que o CCBE chamou a atenção, e muitíssimo bem, para que nenhuma destas alterações pode ser implementada no país sem que sejam feitos estudos de impacto sobre a proporcionalidade destas medidas, sobre o impacto que vai ter sobre os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, coisa que o governo português, até agora, não conseguiu esclarecer se fez, porque o único relatório a que nós tivemos acesso é o da Autoridade da Concorrência. No entanto, a diretiva europeia obriga a que esse estudo de impacto seja feito, por exemplo, pela DGERT [Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho]. Não o conhecemos, não sabemos, portanto, aquilo que a Autoridade da Concorrência vem aqui dizer ao cidadão é que temos um problema de concorrência na profissão jurídica, o que é completamente falso.
Mas por que é que é falso?
É muito simples. Nós temos 35 400 advogados e somos um dos países da União Europeia, se não o único, que tem o maior número de advogados per capita. Eu posso dizer - e acho que já na altura tinha dito isto aqui - que, quando estive na Áustria, a população é mais ou menos idêntica à portuguesa e tem seis mil advogados. Aqui ao lado, em Espanha, são 40 milhões de habitantes e existem 75 mil advogados. Nós em Portugal temos 35 500. E além de advogados, temos também pessoas que têm, dentro dos seus limites processuais, capacidade para prestar consulta jurídica, que são os solicitadores.
Como é que lê as declarações do Primeiro-Ministro quando, na semana passada, no Funchal, se dirigiu diretamente aos bastonários e às bastonárias, dizendo que as ordens querem impedir a concorrência e que é o governo que está a furar essa tentativa?
São falsas. Essas afirmações são completamente falsas. O senhor primeiro-ministro está a falar do acesso à profissão e quer convencer a população de que existem limitações ao acesso à profissão. Não existem nenhumas limitações. Dou-lhe o exemplo da Ordem dos Advogados, mas darei também o exemplo da Ordem dos Médicos, para ver se as pessoas percebem.
Está a dizer que o primeiro-ministro está a mentir?
Mas completamente. É falsa essa questão. Qualquer licenciado em Direito, logo que termina o curso, tem acesso à inscrição no estágio profissional. O que o senhor primeiro-ministro quer dizer é que essas pessoas podem ou não podem passar a este estágio profissional, porque essa ideia de que todos nós podemos ser advogados é uma ideia falsa. Um licenciado em Direito não é a mesma coisa que um advogado. Um licenciado em Direito nem jurista é, porque um jurista tem como profissão dar pareceres sobre a matéria que conhece e vai-se especializando nessa matéria e está normalmente a trabalhar para uma entidade a emitir pareceres. Um licenciado em Direito até isso pode não saber fazer, porque essas coisas têm de se aprender. Portanto, o governo da nação, o senhor ministro da Justiça, achava que a consulta jurídica que dava ao balcão de uma autarquia local ou de uma junta de freguesia era uma informação simples ao cidadão, ajudá-lo a preencher um formulário e dar-lhe um guia prático sobre a questão que estava ali a ser tratada. Isto não é consulta jurídica nenhuma. Uma consulta jurídica é uma consulta técnica em que alguém vem ter com um advogado ou com um profissional, neste caso um solicitador, que também pode prestar, dentro dos limites processuais, essa consulta, que tem um problema para resolver e vem-me pedir uma solução técnica ou jurídica para aquele problema. Por exemplo, aqueles contratos que chamam de corriqueiros, que é um contrato de promessa compra e venda. Imagine que alguém veio ter comigo ao meu escritório - e já me aconteceu mais de que uma vez - e que tem um contrato de promessa compra e venda que foi assinado há 10 anos e que nunca foi cumprido. Ou seja, alguém prometeu comprar uma casa e alguém prometeu vender uma casa e ninguém nunca comprou nem vendeu aquela casa. Continuamos no limite do contrato de promessa compra e venda. E o senhor diz-me que este contrato já não está válido. E eu tenho de lhe dizer, está, está, porque este contrato aquilo que tem é uma mora, ninguém o cumpriu.
O que aqui está em causa, na opinião da Ordem dos Advogados, é que o governo está a tentar que pessoas que não têm qualificação exerçam funções para as quais não são qualificadas ainda?
Naturalmente, mas é isso mesmo que acabou de dizer. Isto só não acontece com os médicos e vou já lá buscar aquele exemplo, porque o estágio de Medicina está incluído na licenciatura e também é essa uma falsa questão. O governo veio dizer que as ordens não querem ceder. Lá estão os médicos. Há algum médico neste país que não se possa inscrever diretamente na Ordem dos Médicos sem fazer qualquer exame para o efeito?
Então, e tal como os médicos, poderia o estágio de Direito estar incluído na licenciatura?
Não vejo como, porque a licenciatura em Direito não tem nada a ver, dá-lhe acesso a várias profissões, mas tem de as aprender.
Mas esta consulta jurídica não é um bocadinho corporativa? Quando a ordem diz que um licenciado não tem capacidade, não é capaz, não pode ser responsabilizado, não pode ajudar um cidadão...
Porque não pode, porque se a pessoa não está inscrita na Ordem dos Advogados e se prestam um mau aconselhamento jurídico, a quem é que o cidadão se vai queixar? Como é que o cidadão é ressarcido do seu mau aconselhamento jurídico ou de um contrato que seja mal elaborado ou de uma cobrança de créditos que está a ser feita de uma forma que não cumpre com aquilo que a lei estabelece que deve ser? Porque repare, um devedor não é nenhum criminoso, não é?
Não há temas menores que possam ser tratados por outros profissionais que não os advogados, porque quem nos ouve pode ficar com essa sensação de que realmente há aqui algum corporativismo e que esses temas menores poderiam ser tratados por outras pessoas que não advogados. Isso não é possível?
Não é possível por esta razão simples: não estamos a falar de temas menores na vida das pessoas. Qualquer aconselhamento jurídico que seja feito de forma errada ou assinatura de um contrato que não salvaguarda os direitos dessa pessoa pode-lhe comprometer gravemente a vida. Isso acontece muitas vezes. Nós estamos a viver um tempo muito difícil com a subida das taxas de juro. Repare que a subida das taxas de juro acontece agora e está a prejudicar pessoas que compraram as suas casas há 10, 15, 20 anos.
O governo não está a salvaguardar a vida das pessoas, é o que está a dizer?
Mas é evidente que não está. Não está nesse sentido técnico-jurídico do termo. Está a tentar, inclusivamente, fazer passar a mensagem até aos jovens que estão hoje ingressados nas profissões, de que não vale a pena estudarem. Já viu isto? É que chegámos a este ponto. Não precisa de ser advogado, porque consegue fazer tudo o que o advogado faz com uma simples licenciatura em Direito. E, portanto, todos aqueles que até agora até se empenharam nos seus estudos, pagaram os seus estudos e fizeram uma formação adequada, vão ser colocados de parte. Uma parte daquilo que é o seu trabalho vai ter de deixar de ser executada porque pode ser executada por qualquer pessoa. Repare que a proposta inicial no governo era que até os não-licenciados podiam fazer isto. Nós é que chamámos a atenção para esta loucura. Digo-lhe mais, mesmo dentro da profissão de advogado, não podemos dar aconselhamento jurídico a todas as pessoas porque temos várias áreas. Eu, por exemplo, não podem vir ter comigo, porque tenho essa consciência e esse dever deontológico de recusar prestar aconselhamento jurídico a pessoas, por exemplo, na área Administrativa e Fiscal, que não conheço minimamente.
Acredita que pode surgir mais litigância?
Muito mais. Uma das grandes necessidades que este país tem é de uma advocacia preventiva e essa advocacia preventiva existe quando a pessoa tem acesso a aconselhamento jurídico digno desse nome. A primeira coisa que a Ordem dos Advogados fez quando chegou ao Ministério da Justiça, e creio que falei convosco sobre isso a primeira vez que estive aqui, foi criar um sistema nacional de aconselhamento jurídico. É uma obrigação do Estado, o artigo 20º, número dois, da Constituição assim o impõe e nós colocámo-nos à disposição para criar um sistema de aconselhamento jurídico no país inteiro, em igualdade de circunstâncias, para todos os cidadãos e cidadãs deste país, para que pudessem ter aconselhamento jurídico digno desse nome e não andassem, como muitas vezes sucede, a pagar os parcos recursos que têm a pessoas que não estão minimamente habilitadas a prestar esse aconselhamento jurídico. Posso lembrar-lhe, por exemplo, que foi descoberta mais uma rede de exploração em termos laborais de cidadãos que são escravizados. Essas pessoas, acontece-lhes isso porquê? Porque se calhar não têm capacidade para recorrer um advogado quando chegam aqui, não é? Para saberem como é que se legalizam, como é que podem estar a trabalhar no mercado português, porque não têm forma de saber isso. E a senhora ministra sabe que existem milhares e milhares de processos destes pendentes, a que os migrantes não têm qualquer acesso, nem qualquer apoio por parte dos juristas e dos advogados deste país para poderem aceder a informação digna desse nome e têm de ir 20, 30 vezes, tratar dos seus assuntos junto das conservatórias porque nem sabem qual é a documentação de que necessitam para o poder fazer.
Teme que se descredibilize a classe?
Não é a classe, é os cidadãos. Não é uma questão do descrédito dos advogados, mesmo qualquer advogado que existe hoje ou desde sempre tem de fazer formação contínua ao longo da sua vida porque as leis vão alterando. E, portanto, se queremos pessoas especializadas e devidamente qualificadas, e a ordem aposta muitíssimo na formação dos seus profissionais, a pergunta que se faz é: estas entidades vão fazer o mesmo para as pessoas licenciadas em Direito? Que conhecimento técnico ou jurídico, por exemplo, tem uma pessoa licenciada em Direito para saber em que tribunal é que tem de instaurar uma ação, como é que se faz uma contestação, como é que se faz uma petição inicial, como é que conta a história, como é que alega de direito, como é que alega de facto? Está a ver todas estas componentes que não é só no tribunal? Se nós não conseguirmos precaver as pessoas de irem a tribunal, vamos aumentar naturalmente a litigância ainda mais, porque depois não temos outra alternativa se não ir lá e muitas das vezes o que vamos lá fazer é conter ainda mais prejuízos do que aquilo que já tivemos nas nossas vidas e desgraçamos a nossa vida, porque não tivemos o aconselhamento jurídico ou não tivemos quem nos dissesse que aquele contrato, da forma como estava redigido, nos iria prejudicar.
Então um processo destes pode aumentar ainda mais os processos em tribunal e a lentidão dos tribunais?
Não tenho dúvidas absolutamente nenhumas. Mas para que lado é que vai quebrar a corda nesse lado, nesse sentido? Sempre para o lado mais fraco, porque são esses que embora este país tenha um número altíssimo de advogados na praça, a verdade é que a esmagadora maioria das pessoas não pode pagar um advogado e não pode porquê? Porque ganha mal, que essa é outra questão. As pessoas acreditam que trazendo para a profissão outros licenciados em Direito, que vão reduzir os preços que são altíssimos. Mais uma vez estas pessoas não conhecem a realidade da advocacia portuguesa e o governo tem essa profunda ignorância. O governo quando veio falar connosco apresentou-nos sempre a realidade das grandes sociedades deste país que representam uma minoria e isso leva-nos ao problema, por exemplo, dos estágios.
A ordem está a favor ou não da remuneração dos estágios?
Absolutamente a favor e nunca disse outra coisa senão isto. O que nós estamos a dizer e ainda bem que pega nesse tema, porque esse é o tema do corporativismo, não é? Se eu fosse corporativista estava caladinha sobre o tema dos estágios porque esta é a forma que o governo da nação encontrou mais eficaz para proibir o acesso das pessoas aos estágios por uma razão muito simples. A esmagadora maioria das sociedades pequenas deste país e dos advogados em prática individual, que representam cerca de 85% dos profissionais, não têm capacidade financeira para pagar um estágio. Quer que lhe faça uma conta simples? Vamos supor que um advogado fatura três mil euros limpos por mês. Agora, destes três mil euros o advogado tem de pagar uma contribuição à sua ordem profissional de 35 euros por mês, tem de pagar 267,94 euros para a sua Caixa de Providência e tem depois de pagar o seu escritório, tem de pagar os seus meios de comunicação para o escritório, tem de pagar as suas deslocações aos tribunais e os seus meios, utensílios de escritório, tem de pagar também água, luz e telefone no seu escritório e depois tem de pagar as suas despesas pessoais. Se somarmos isto tudo, e olhe que fiz as contas a uma sala de 500 euros, algo que já nem existe em Lisboa, a mais 200 euros para alimentação, a 40 euros de passe para deslocação, portanto, nem sequer contabilizei o automóvel, chego ao fim de todas estas despesas e fico a dever cerca de 30 euros a um qualquer dos meus fornecedores. Porquê? Porque 950 euros por mês, que é aquilo que o governo propõe que se pague aos estagiários, por sinal, diga-se, muito exíguo esse valor, quem é que consegue viver com 950 euros com dignidade? Pois muito pouca gente, não é? Infelizmente, neste país têm de viver com esse valor, mas não vivem com grande dignidade. Se tiverem de pagar sozinhos uma renda de casa já não conseguem viver com dignidade absoluta. Mas vamos até supor que são 950 euros. Sobre esses 950 euros o patrono tem de pagar subsídio de alimentação, vai ter de pagar seguro de acidentes de trabalho e vai ter de pagar Segurança Social sobre este valor.
Mas quem é que devia pagar aos estagiários, o governo?
Tem de ser, se quer impor essas regras e se quer manter como deve um estagiário devidamente acompanhado por um patrono, tem de criar bolsas para aqueles que não têm capacidade financeira para o fazer, poderem recorrer a essas bolsas. Aliás isto acontece com as empresas comerciais, que nem sequer desempenham uma função essencial, como é o caso da advocacia, no Estado de Direito. Nem compreendo. Então o governo está perfeitamente disponível para pagar estágios profissionais dentro de instituições que visam lucro e depois não quer assumir a responsabilidade perante os jovens advogados que estão a ingressar na profissão? Acha muito mal que não recebam, e eu também acho o mesmo, mas não cria mecanismos que permitam que os senhores advogados que têm todas as condições para ministrar estágios, porque até são bons advogados, até conhecem bem a profissão e até a podem ensinar de uma forma digna, mas não podem recorrer a apoio. O que é que vai acontecer a estes patronos? Vão recusar os estágios. E o que é que vai acontecer aos estagiários? Vão ficar sem patrono. E sem patrono nós podemos fazer estágio? Não podemos fazer. Portanto isso é uma falácia absoluta do governo, esta tentativa de captar a opinião pública contra a advocacia deste país dizendo que nós somos corporativistas. Esta é, de resto, se nós tivéssemos dúvidas sobre a ausência de corporativismo nesta nossa luta, começo logo por aí. Se eu tivesse interesse em diminuir drasticamente o número de advogados do país para criar problemas à concorrência, estava calada sobre isto.
Disse que "admite parar a Justiça". É à ordem que compete fazer esse trabalho de sindicalismo?
Sindicalismo como? Eu não estou a defender os meus associados, estou a defender as populações. Isso não tem nada a ver. A primeira obrigação da ordem, a primeira atribuição, é a defesa do Estado de Direito democrático e da Justiça. E isso tem de ser feito nem que seja contra um governo da nação, como é evidente. Então se o governo da nação está a implementar leis que nós entendemos, e não somos só nós, felizmente, que não se adequam àquilo que é a verdadeira defesa de um Estado de Direito, mal andaria uma Ordem dos Advogados se não lutasse contra isto. Repare que às vezes fico surpreendida com estas questões. Nós, há 50 anos, vivemos num regime totalitário e a Ordem dos Advogados violou muitas vezes a lei. Em defesa das pessoas, advogados foram presos neste país para defender os direitos das pessoas. E naquela altura isto não era proibido. Então a Ordem dos Advogados poderia fazer aquilo que fez em nome da defesa da democracia e da liberdade de expressão dos constituintes e dos direitos processuais dos seus constituintes? Claro que não.
Mas acha que estamos num período paralelo com este tipo de lei?
Não tenho dúvidas nenhumas. Porque repare, isto é um passo até chegarmos a um totalitarismo absoluto. Se enfraquece a advocacia, que é o baluarte da defesa do Estado de Direito democrático e se não permite que as populações acedam à Justiça, o que é que nós temos aqui? Aliás, ainda ontem houve um jovem licenciado em Direito que muito bem falou em oligarquias. É disto que estamos a falar. Nós estamos a impedir as pessoas de poderem aceder à Justiça de forma igualitária em relação às pessoas que têm muito poder económico. E isto é um retrocesso absoluto e inadmissível num Estado de Direito. E digo-lhe mais, estou surpreendida como é que este Partido Socialista se atreve a fazer uma coisa destas. Todos os advogados que fundaram este país devem estar a dar voltas no túmulo com isto. Porque isto é uma coisa absolutamente inqualificável. O doutor Salgado Zenha, o doutor Mário Soares, o doutor António Arnaut que sempre lutaram pelos direitos das populações, serem confrontados com uma coisa destas, acharem que um advogado é um mero licenciado em Direito? Isto foi dito pelo senhor Secretário de Estado Adjunto da Justiça, Jorge Costa, que, por sinal, é um Procurador da República e tem a obrigação de saber mais e de saber melhor. Isto é uma completa desconstrução, e não tenho dúvidas nenhumas disto que estou a dizer, e uma tentativa vil de colocar as populações contra os advogados, que sabemos bem que não têm, se calhar, a melhor das aceitações públicas, para tentar ganhar vantagem. E a prova disto mesmo é esta falácia do estágio. E a prova disto mesmo é a tentativa constante que o governo está a fazer de uma propaganda absurda e absolutamente demagógica, tentando colocar do nosso lado questões corporativistas. Aliás, basta ver o blog do senhor professor constitucionalista, o professor Vital Moreira, que é um escândalo. Essa pessoa refere-se à Ordem dos Advogados como um grémio. Recebeu uma Medalha de Ouro, que lhe foi atribuída pela Ordem dos Advogados e refere-se à Ordem dos Advogados como um grémio? E como um conjunto igual aos taxistas da nação, uma pessoa que é Constitucionalista e que sabe perfeitamente que a profissão de advogado tem custódia constitucional e não é por acaso. E não é na Constituição da República Portuguesa, é em todas as Constituições da República, espalhadas pelo mundo inteiro, democrático. Não é porque sejamos pessoas bonitas ou bem-afamadas ou perfumadas. O que está aqui em causa não é o direito dos profissionais, é da profissão ela mesma. E é bom que as pessoas tenham isso em linha de conta.
E perante tudo isto, o que é que lhe parece que é o entender da senhora ministra? Haverá falta de sensibilidade para estes temas?
Olhe, agora nem sei. Porque o que lhe posso dizer é que a senhora ministra, de uma forma muito estranha, não apareceu na conferência de imprensa. Portanto, enviou o senhor secretário de Estado, mas parece-me que, de facto, se calhar será isso. Porque uma pessoa que não tem a noção sequer do que é uma consulta jurídica, foi isto que nos foi transmitido na nossa reunião, que me vem dizer que a consulta jurídica se entendia nos organismos públicos como sendo a entrega de formulários às pessoas para ajudá-las a preencher um guia prático. Eu tive de perguntar, mas isso não é uma consulta jurídica. Ou o que é que entende que é uma consulta jurídica? Porque não é. Felizmente essa loucura já foi retirada da proposta. Enfim, não andámos a falar à toa, mas outras permanecem. E já agora, também esclarecer mais esta questão: não existe nenhuma imposição, nem de troika, nem de PRR, nem de diretivas europeias que mexa nos atos próprios das profissões. E a prova disto mesmo é que existem outras ordens profissionais, como é o caso dos médicos e dos enfermeiros, que ninguém está a mexer nos atos próprios. O acesso à profissão não se confunde com atos próprios. O que o governo está a tentar fazer é retirar atos que estão como atos próprios da profissão, porque assim se entendeu para defesa das pessoas, das pessoas e das empresas, e está a atribuí-las a empresas privadas, a sociedades que visam o lucro, a pessoas que não têm preparação técnica-jurídica para o fazerem, porque isso interessa, não é em nome do benefício do cidadão. E isso lhe posso garantir, porque empresas que visam o lucro não estão ali para defender o cidadão. Estão ali para defender o seu lucro pessoal, como acontece, por exemplo, com as agências imobiliárias. Repare que na maioria dos casos, os contratos que estão ali celebrados, os tais corriqueiros, são celebrados por advogados. Advogados que representam quem? As imobiliárias. Estarão a salvaguardar os interesses do prometendo vendedor e do prometendo comprador? Não. E estamos a falar de negócios que, volto a repetir, envolvem milhares de euros. Este mês a ordem reuniu com o Ministério da Justiça, com a ministra, também com o Ministério dos Assuntos Parlamentares e representantes da Presidência do Conselho de Ministros.
Quis negociar alterações, mas, pelos vistos, terão sido recusadas e anunciou formas de luta, formas de protesto, este mês de junho. Quais são os próximos passos?
Um deles é que vamos estar nas comarcas, portanto, nas principais regiões do país como forma de protesto e de luta. Vou estar presente em atos de distribuição, também, para levar o protesto, vamos estar também com os nossos colegas em protesto conjunto, portanto, invocando estas questões que foram deliberadas pela Assembleia-Geral dos Advogados que vão fazer nos seus próprios requerimentos, sensibilizando publicamente os demais operadores judiciários para essa questão. Vamos também, naturalmente, recorrer às instâncias europeias, se isso for necessário e for compatível. Já pedimos também para falar diretamente com as instâncias europeias para explicar esta situação. Vou ainda contactar com o CCBE, estarei pessoalmente no plenário do CCBE, no próximo, para também me dirigir à Assembleia e explicar o que é que está a acontecer em Portugal, que o está a deixar muito receoso, tendo em conta que esta questão não existe em nenhuma Ordem dos Advogados por essa Europa fora. E, portanto, isto são tudo manobras e questões que estamos a levantar para tentar chamar a atenção das pessoas. Está em curso também uma campanha publicitária para que as pessoas percebam que não estamos aqui a defender ninguém, ninguém da profissão. Nós estamos aqui, realmente, a defender as pessoas, até porque a advocacia há muitos anos que convive, infelizmente, com esta realidade da procuradoria ilícita que lesa profundamente os cidadãos e que o Estado não tem conseguido, como é seu dever, combater este flagelo social de forma eficaz e aquilo que se propõe agora é, precisamente, legalizar isto. Isto não faz sentido absolutamente nenhum, portanto, se nós, durante todo este tempo, andámos e tivemos a consciência de que isto não era bom para os cidadãos e que os prejudicava gravemente, o que é que mudou, entretanto? Não é, com certeza, o acesso à Justiça [por parte] dos cidadãos, porque isso vai continuar a não ser garantido e só terá acesso à Justiça uma parte, uma das partes em litígio. A outra continuará fragilizada, como esteve até aqui e sem ver reforçados os seus direitos, que era aquilo que a Ordem dos Advogados muito gostaria que acontecesse.
Antes das férias judiciais o que gostaria que mudasse na Justiça?
Gostava de ver acontecer na Justiça bom senso e gostava de ver acontecer na Justiça resolução efetiva de problemas, até porque esta senhora ministra tem um problema entre mãos desde janeiro e eu, enfim, torno-me repetitiva e gostava de não ter de, dentro de seis meses, estar a abrir o ano judicial a dizer exatamente aquilo que disse este ano, em janeiro, mas parece-me que estamos a caminhar nesse sentido. Isto porque ainda esta semana a senhora ministra assinalou uma série de grandes alterações com pompa e circunstância, mas quando vamos ler aquelas alterações, algumas delas, naturalmente muito úteis, mas que não representam nada naquilo que significa a estrutura da Justiça e daquilo que nós precisamos que seja alterado. Nós continuamos com o problema do estatuto por resolver, dos senhores funcionários judiciais, que continuam em greves e que já deram origem a mais de 50 mil diligências adiadas, que deram origem a cinco milhões de atos por praticar no país inteiro. Não vejo a senhora ministra interessada em resolver esse problema. Continuamos com falta de juízes, magistrados judiciais, ao nível da segunda instância, que não vejo como é que estamos a resolver esse problema. Continuamos sem assessores aos senhores magistrados, continuamos a criar task forces para resolver processos que são muito mediáticos na Justiça.
Que leitura faz ao facto de a Operação Marquês correr o risco de prescrever?
É uma surpresa para alguém que isto possa acontecer nestes processos mediáticos? Para mim não é de certeza. Se não temos meios para investigar, se não temos recursos humanos para nos podermos dedicar, e até vou pegar no outro caso: o Tutti Frutti. Ter de se criar uma task force para resolver um problema que está sob investigação, um processo que está sob investigação há seis anos, envergonha qualquer sistema judiciário. Isto não pode acontecer. Não pode acontecer porque, além do problema que temos com a Operação Tutti Frutti, que ninguém nega que existe, temos também o problema daquela criança que está a aguardar há não sei quanto tempo pela pensão de alimentos. Temos também o problema daquela criança que precisa de ver a sua adoção devidamente tratada e tem esse assunto por resolver, temos o problema daquela pessoa que está a ser penhorada indevidamente e que vê uma boa parte do seu vencimento ser cortado porque não temos um juiz que possa avaliar se realmente ele tem ou não tem razão, mas não há task forces para isso, o que se lamenta profundamente. Esse tipo de situações para mim representam uma violação do acesso à Justiça, isto é intolerável num Estado de Direito democrático.
