Ou Estás Comigo... "Quem não se predispõe a ser injusto acaba no caixote do lixo do mundo"
"Ou Estás Comigo", espetáculo do grupo de Prova de Aptidão Profissional da ACE Escola de Artes e encenado por Paulo Mota, exorta a tomar partido e prova como o teatro, em tempos de pandemia, vê o seu caráter político reforçado.
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Um espelho como um abismo. Quem está do outro lado é de imediato repelido, mas instigado a fazer incidir claridade no caos, por intermédio de esforços de visão. Há quatro marginais, roupas esburacadas, olhares vazios e caninos salientes para não ignorar. Não se confundam as camadas dos trajes que os despem, mais do que cobrem, com as ossadas do seu tempo. Tocam-se, mas traem-se.
Passam fome, são pobres, sujos, o desvario do mundo. Desconfia-se que piquem e que mordam. Desconfia-se que nada nasça atrás das portas que erguem sem auxílio de paredes. "O pai matou a mãe, e nunca mais arranja emprego... 'Eu sou gorda e toda a gente é magra.' É este caixote do lixo." Paulo Mota, encenador, tem por eles estima. Diz que a peça "Ou Estás Comigo" é "uma espécie de elogio aos marginais", a forma de os desviar para o papel de destaque que lhes é (quase sempre) vedado. "É sinal de que prefiro a imitação dos marginais à dos engravatados", concretiza, em entrevista à TSF.
Não têm poder de compra, nem representação em tribunal, não têm dinheiro, mas eles podem matar, com a boca, com os dentes.
Por isso, dos "engravatados", apenas um exemplar, "engraçado, que sorri, conquista a nossa empatia e conduz-nos". Tem em mãos mais armas do que o charme com que invade as searas ressequidas onde nada floresce. E os anúncios formais, atenuados pela cordialidade, são o gatilho da revolução. A revolução também começa assim, quando "uma única barraquinha de repente se torna um interesse imobiliário".
"Um burguês, um jovem empreendedor, chega com intenção de lhes comprar o barraco. Estes quatro marginais não têm poder de compra, nem representação em tribunal, não têm dinheiro, mas eles podem matar, com a boca, com os dentes. E eles matam-no." É preciso que haja na morte um significado. É preciso que a morte seja a resistência. Com o sangue, quatro marginais exercem o poder e conquistam o esqueleto do resto dos seus dias magros.
Se estou aqui e ali, não estou em lado algum, e as leis vão passando...
Era preciso que os "quatro monstros" conquistassem mais espaço para evoluir, o quarto do poder reservado aos privilegiados. De um burguês invasor, ficam apenas pensamentos arrombados, conta o encenador. "Do que resta dele, ficam apenas com um livrinho vermelho, que contém escritos políticos e filosóficos desse homem. Estes marginais, não educados, começam a espelhar-se naqueles escritos, a alterar-se, a crescer, e um deles começa a ficar muito reticente em relação àquela morte, porque, apesar de tudo, é um Homem como nós."
"Ou estás comigo... Há assuntos em que de facto isso faz sentido..." No estreito onde a dúvida cabe, também se morre, também se mata. Paulo Mota não hesita quando se trata de completar a repetida frase ["Ou estás comigo"], porque há temas que convocam a sociedade para "que cada um diga claramente de que lado está".
De repente, vais ver um espetáculo em que se mata um fascista. Não me parece mal que o teatro sonde essa hipótese.
"Se estou aqui e ali, não estou em lado algum, e as leis vão passando..." A reflexão do encenador é um convite ao poema "Notícias do Bloqueio", de Egito Gonçalves: "Aproveito a tua neutralidade,/ o teu rosto oval, a tua beleza clara,/ para enviar notícias do bloqueio/ aos que no continente esperam ansiosos./ (...) Tu lhes dirás o nosso ódio construído,/ sustentando a defesa à nossa volta/ - único alcochoado para a noite/ florescida de fome e de tristezas./ Tua neutralidade passará/ por sobre a barreira alfandegária/ e a tua mala levará fotografias,/ um mapa, duas cartas, uma lágrima..."
É em tempos de pandemia e de ascensão de extremismos, com o peso dos acontecimentos que atropelam o mundo, que ganha forma a peça "soturna e densa", visto ser a arte uma força de lutar contra "essas narrativas", quando "agimos por imitação", realça Paulo Mota. "Esta ascensão do André Ventura é algo que me assusta muito, e, de alguma forma, interessa-me colocar no imaginário a morte de um fascista. Como exercício de consciência coletiva... De repente, vais ver um espetáculo em que se mata um fascista. Não me parece mal que o teatro sonde essa hipótese."
Mais gesto do que texto, "Ou Estás Comigo", com atores do grupo de Prova de Aptidão Profissional da ACE Escola de Artes, é a negação da indiferença. "O André Ventura foi o maior motor para vir para aqui todos os dias mostrar textos políticos a jovens de 16 ou 17 anos, quando ainda estão um bocadinho apanhados pelo Instagram e por tudo o que é capitalismo fácil", assinala o encenador convidado para conduzir a peça.
Apesar de rejeitar a apologia dos "fundamentalismos", o encenador defende que há "temas fraturantes" que aniquilam "as zonas neutras", quando não concordar com um ideal é ser-lhe oposição. "Quem não se predispõe a ser injusto acaba no caixote do lixo do mundo", explica, e ainda fundamenta: "Se são injustos comigo e eu sou justo, acabo no caixote do lixo do mundo."
Quem tem dinheiro tem poder político, quem não tem dinheiro não tem poder político, não tem liberdade, anda sempre com a corda ao pescoço.
"Quando o Governo de Madrid vetou a hipótese de um referendo, que o povo da Catalunha aprovava..." Há mais do que um exemplo na roda dos dias que inspira ações maiores, na perspetiva do encenador, porque: "Dirás como trabalhamos em silêncio,/ comemos silêncio, bebemos/ silêncio, nadamos e morremos/ feridos de silêncio duro e violento./ (...) Vai pois e conta nos jornais diários/ ou escreve com ácido nas paredes/ o que viste, o que sabes, o que eu disse/ entre dois bombardeamentos já esperados./ Mas diz-lhes que se mantém indevassável/ o segredo das torres que nos erguem,/ e suspensa delas uma flor em lume/ grita o seu nome incandescente e puro./ Diz-lhes que se resiste na cidade/ desfigurada por feridas de granadas/ e enquanto a água e os víveres escasseiam/ aumenta a raiva/ e a esperança reproduz-se."
O grito marginal da arte
Basta uma adenda, uma alínea, para evitar "atrocidades". No vazio legal, é o gesto que reconstrói. Foi num vácuo de apoios e instruções que esta peça se ergueu de desmoronamentos sucessivos. "Até março, achávamos que tudo ia acontecer. Mas, de repente, tudo mudou, e vimo-nos obrigados a pensar em quatro cenários isolados para que nenhum ator entrasse em contacto com os outros. Chegámos até a pensar em gravar um filme, talvez até em casa, com um telemóvel."
Quando vi que a ministra estava muito interessada em fazer espetáculos nos seus jardins, como a corte faz, pensei que não, que tinha mesmo de ser num barraco. Somos pobres.
Sem meios, os artistas foram impelidos a improvisar um rosário de planos. "No caso do Ministério da Cultura, a história é exaustivamente a mesma, sempre. Quem tem dinheiro tem poder político, quem não tem dinheiro não tem poder político, não tem liberdade, anda sempre com a corda ao pescoço."
Em tempos de pandemia, e com muitos colegas que chegaram ao limiar da fome, sem receber "um único cêntimo do Ministério", Paulo Mota admite: "Cheguei a pensar no cenário do jardim do palácio da Graça Fonseca, mas depois voltei o meu pensamento para uma casota, que representa mais o Porto. Quando vi que a ministra estava muito interessada em fazer espetáculos nos seus jardins, como a corte faz, pensei que não, que tinha mesmo de ser num barraco. Somos pobres."
O espetáculo, encenado por Paulo Mota, com dramaturgia de Constança Carvalho Homem, fica em cena no Palácio do Bolhão, no Porto, até 30 de julho.
