Para onde vão os doentes das "altas sociais"? Uma casa temporária para quem espera um lugar
O Hospital de Sant'Ana, em Cascais, já tem ocupadas todas as camas para doentes que tiveram alta do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, mas continuam à espera de poder voltar a casa ou seguir para um lar. São pessoas de diferentes cantos do mundo, mas também há vizinhos que se reencontraram passadas décadas
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A Residência Temporária da Misericórdia de Lisboa não é bem um hospital, mas também não é uma casa. Tem uma enfermaria, acompanhamento clínico e social, mas os utentes podem ir tomar café, participar em atividades e gerir algum tempo livre.
Maria Alice demora-se na sesta enquanto o resto do grupo apanha o que vai chegando do sol de inverno, na esplanada ou numa sala quente da cafetaria.
Troca quase tudo o que lhe dizemos de uma forma muito divertida, ouve mal. Mas tem uma memória brilhante.
Aos 95 anos lembra-se da companheira da cama ao lado, "era a vizinha do quarto andar, eu vivia no primeiro". Nunca mais se tinham visto, desde esse tempo de partilha de um prédio em Lisboa, sabe-se lá há quantas décadas.
Reencontram-se no Hospital de Santa Maria. São outra vez vizinhas nesta residência do Hospital de Sant'Ana. Partilham mesma circunstância de não terem nesta fase da vida ninguém que as possa cuidar de perto. Ou simplesmente não terem ninguém vivo.
Ao contrário da vizinha reencontrada, que não nos entende e não sai da cama, Maria Alice espalha charme e alegria. "Gosto muito de viver, todos os dias peço a Deus que me deem mais um dia!". Fala do tempo em que foi cabeleireira, das cores que lhe ficam bem, da sobrinha que vive no Canadá e vem pelo Natal... fala, fala, fala.
O grupo reunido na cafetaria do Hospital é menos enérgico.
Acompanhados por uma assistente social e um enfermeiro, mantêm moderado o tom das conversas.
Por acaso, também há aqui quase vizinhas reencontradas. São duas mulheres de S. Tomé que vieram para tratamentos em Portugal ao abrigo de um acordo de cooperação entre os dois países. Aos poucos vão-se lembrando da terra, da família e do dialeto e da música. Uma delas canta como se estivesse sozinha, talvez na sua ilha.
Depois há quem faça de conta que não ouve para não ter de falar, quem esteja mais preocupado com o abandono para ter vontade de falar ou quem esteja já focado no dia em que ha de voltar a casa. A casa de verdade.
Todos preferem estes dias aos que passaram em Santa Maria. Aqui ainda não é, mas às vezes parece, um pouco, casa.
A Residência Temporária de Sant'Ana é só uma das parcerias da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com o Instituto da Segurança Social. O organismo a quem a ministra da saúde encarregou de identificar os chamados "casos sociais" que se arrastam nos hospitais sem necessidade médica, mas que também não têm para onde ir.
O acordo envolve, ao todo, cerca de uma centena de camas, conta à TSF André Brandão de Almeida. "Além desta unidade temporária, aqui no Hospital de Sant'Ana há outra onde os utentes ainda precisam de acompanhamento médico 24 horas e, por vezes, de reabilitação. Mas também estão aqui provisoriamente."
O administrador da Santa Casa de Lisboa para a área da saúde explica que estas camas, com acompanhamento médico, são protocoladas com o Ministério da Saúde. O mesmo se passa com a recém-inaugurada Residência Raquel Ribeiro, com 66 camas para pessoas em reabilitação.
"Já temos outras ULS (Unidades Locais de Saúde) interessadas em fazer acordos como este com a ULS de Santa Maria."
Brandão de Almeida refere que é uma nova estratégia na gestão da Santa Casa - também ela em reabilitação. "A ideia é desinvestir numas áreas para crescer noutras, como é o caso da saúde". O país não vai para novo e o Serviço Nacional de Saúde já foi mais saudável.