Paul McCartney, incêndios e seis meses na América Latina. Eis a história de Joaquim Letria no Diário de Lisboa
Há precisamente 100 anos saiu o primeiro número do Diário de Lisboa. Quarenta anos depois, em 1961, Joaquim Letria entrava para a redação à experiência, a atender telefones, antes de se tornar estagiário. Tinha 19 anos e uma grande vontade de ser jornalista. Agora, em jeito de comemoração de um "jornal único e fascinante", Joaquim Letria recorda uma redação viva e unida, onde se escrevia com tempo e se aprendia com os melhores.
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Entrou para o Diário de Lisboa com 19 anos. Ainda se lembra do seu primeiro dia de trabalho?
Recordo-me do movimento da redação, recordo-me de um grande amigo que ficou para sempre, o Manuel da Fonseca, o escritor. Ele começou no mesmo dia que eu e fizemos uma exploração interessantíssima para descobrir onde é que eram as casas de banho. Ninguém nos tinha dito onde é que era. De resto, o Diário de Lisboa foi a minha casa e a minha família, porque os jornais não tinham nada que ver com os jornais de hoje no relacionamento e nas pessoas e o Diário de Lisboa foi uma família e uma casa.
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Foi muito difícil entrar no Diário de Lisboa? Como foi feita a candidatura?
Pedi à Emília Neves para falar ao pai: "Fala ao teu pai, pede ao teu pai, fala ao teu pai, pede ao teu pai". Andei meses nisto até que, finalmente, ela disse: "Vai lá que já falei com o meu pai". Depois, tive mais de mês e meio de persistência, a ir todos os dias à redação tentar falar com o Dr. Mário Neves, um extraordinário jornalista e um homem a quem o Diário de Lisboa deve tudo. Mas não me recebia, tinha mais do que fazer até que um dia me recebeu e perguntou-me: "Você quer ser jornalista ou quer um emprego? Porque se quer um emprego eu arranjo-lhe na Feira das Indústrias. Se quer ser jornalista, entra para aqui". E foi assim que eu comecei. Eu ganhava 50 escudos por dia e, quando não trabalhava, não ganhava. Mas aprendi muito, trabalhei com gente fantástica. Comigo trabalhavam o Urbano Tavares Rodrigues, o Manuel da Fonseca, o José Cardoso Pires, o Luís Sttau Monteiro, o Manuel de Azevedo. Tinha um ambiente completamente familiar. Aliás, naquele tempo os jornais pertenciam a famílias. Nós sabíamos para quem trabalhávamos. Eu sabia que estava a trabalhar para a família Ruela Ramos. Havia uma relação de proximidade, não tem nada que ver com o que se vem a passar mais tarde.
Para um jovem de 19 anos, deve ser muito interessante entrar numa redação destas. Quando entrou quem eram as pessoas mais especiais que lá estavam?
Aquele com quem mais aprendi foi com o Dr. Mário Neves, que era diretor-adjunto. Ao fim desses seis meses, consegui ser promovido a estagiário, imagine.
Então entrou à experiência para ser estagiário?
Eu atendia telefones. O telefone era um instrumento muito importante naquela época porque eram os correspondentes, era a ligação ao país, os ministérios. E fazia folgas, feriados e férias de pessoas. Entretanto, ia aprendendo, naquele estilo muito português, de que ninguém ensina nada. Toma e desenrasca-te. Ao fim de seis meses, passei a estagiário e, ao fim de seis meses de estágio, entrei. Entretanto, tive um convite para a Associated Press, comecei a colaborar no escritório de Lisboa da Associated Press. Foi um período fantástico da minha vida porque andava nos 20 anos. No outro dia deram-me uma fotografia em que eu tinha 21 nos e estou com o Paul McCartney, que também tinha 21 anos, temos a mesma idade. Naquela época, aos 21 anos, o mundo era uma coisa fantástica. Toda aquela gente permitia um ambiente de convívio e fraternidade. Depois havia uma grande identificação política, as pessoas sabiam o que é que se passava e estavam muito identificadas umas com as outras.
Lembra-se qual foi o seu primeiro serviço para o Diário de Lisboa?
Mandaram-me fazer [a cobertura de] um incêndio na Avenida Duque de Loulé e eu nunca tinha visto um incêndio sequer. Também ninguém me disse como é que se cobria um incêndio. De maneira que cheguei lá e fiz uma coisa que os jornalistas agora fazem todos mas não fiz como eles fazem agora. Fui falar com os bombeiros. Ia tomando notas e sabendo o que se estava a passar, a origem, os prejuízos. Agora chamam um bombeiro, esticam-lhe o microfone e o bombeiro, coitado, tem que fazer a reportagem além de apagar o incêndio. Não foi isso que eu fiz.
Que histórias recorda como fundamentais para o seu percurso no Diário de Lisboa? Que artigos destacaria como importantes para a sua formação enquanto jornalista?
Muito do que posso lá ter deixado e que ainda hoje está na coleção foram os suplementos. Eu vivia a coordenar os suplementos. Ainda hoje me lembro que à segunda-feira era o futebol, à terça-feira era o automobilismo, à quarta-feira era a mulher, quinta-feira era o literário e sexta-feira era o suplemento da mesa redonda, que eram uns debates que se gravam ali.
Como surge a rubrica "Algures no mundo há sempre um repórter do Diário de Lisboa"?
A administração gostava das coisas que eu escrevia e do meu estilo, se quiser. Mandaram-me então fazer uma viagem muito grande pela América Latina, que foi uma viagem fantástica. Era para ser um mês mas estive seis meses e meio. Corri o Brasil todo. Naquela época, a força aérea permitia borlas a estudantes e jornalistas. Aparecia numa base, dizia que era jornalista e perguntava se havia algum voo a sair. E ia. Isto permitiu-me correr o Brasil todo de norte a sul. Depois, Argentina, Bolívia, Peru. Foi uma viagem absolutamente inesquecível. Eu ia mandando crónicas que a Varig, a companhia aérea brasileira, ia trazendo aqui para os escritórios. Aquilo ia saindo com muita regularidade. Depois fiquei muito surpreendido quando cheguei pelo êxito que aquelas crónicas tinham tido. Aquilo era uma rubrica que se chamava "Algures no mundo há sempre um repórter do Diário de Lisboa". Foi invenção de um senhor chamado Lopes de Souto que era administrador do jornal. A partir daí, sempre havia alguém algures no mundo a escrever para o Diário de Lisboa.
Para jornalistas como eu, que entraram em redações já depois da era da internet, encontrar informação, verificar factos é algo que está, por vezes, à distância de uma pesquisa rápida online. Em termos de funcionamento da redação, e do ponto de vista prático, como era fazer jornalismo naquela altura, como é que as coisas eram feitas?
Era levantar o rabinho da cadeira e dar corda aos sapatos. Não havia outra maneira. Falar com as pessoas, ter contactos, saber quem é que pode ajudar nisto, quem é que percebe daquilo. Tínhamos também outra coisa que hoje não existe. Apesar da pressão dos chefes, tínhamos algum tempo. Hoje as pessoas não têm tempo. Não se pode trabalhar assim. Pode mas mal. Dava-se alguma importância à escrita e à forma. Não é por acaso que trabalhei com o Cardoso Pires e o Sttau Monteiro. Se eu não aprendesse nada com eles, com quem é que eu ia aprender? O Diário de Lisboa tinha um ambiente absolutamente fantástico nisso.
E esse ambiente que se vivia no Diário de Lisboa continuava para lá das portas do jornal? Tendo em conta que estava sediado no Bairro Alto, quando fechavam a edição do dia, passavam para as mesas dos bares?
Sim. Convivíamos muito em restaurantes e em bares. Frequentávamos pontos comuns, dávamo-nos bem e as nossas famílias relacionavam-se também. Mas não era só isso. Havia toda uma relação que não era só no Diário de Lisboa. Por exemplo, a meio da tarde começavam a aparecer pessoas. Desde o Almirante Sarmento Rodrigues, que tinha sido ministro da Marinha e que era um homem interessantíssimo, à Beatriz Costa, que era muito amiga do Norberto Lopes. Depois, amigos do Mário Neves e gente que, entretanto, se tornava também nossa amiga. Os jornais eram, no fundo, uma tertúlia. Quando não sabia o que é que havia de fazer, já tinha dado a volta às capelinhas todas, às duas da manhã, ia para o Diário de Notícias porque havia sempre gente. O piquete era até às cinco da manhã e havia gente a jogar o póquer, a conversar. Como vê o ambiente era este. O Diário de Lisboa inseria-se muito bem nisto e era muito frequentado porque era um jornal sério, de uma família muito séria e austera. O dono do Diário de Lisboa, o Dr.. Ruela Ramos, ia e vinha de elétrico para casa. Geralmente andava em pé na plataforma ao pé do guarda-freios. Não tem nada que ver com hoje, que andam aí com o rabinho tremido e à procura de coisas que nós não damos valor, ou que damos valor a mais. Naquela época, o Diário de Lisboa era uma coisa muito especial. Foi criado por um ex-padre, o Joaquim Manso. Depois juntou no início, nos anos 20, muita gente do Diário de Notícias e d' O Século. Transformou-se naquilo que viria a ser o jornal com umas características únicas e de prestígio na imprensa nacional.
O seu primeiro serviço foi cobrir um incêndio, pela primeira vez. Recorda-se da sua última história publicada no Diário de Lisboa.
Não propriamente. Lembro-me das últimas. Normalmente eram entrevistas. Havia entrevistados que davam entrevistas notáveis, como o D. Hélder Câmara, que era o arcebispo de Olinda, em Recife. Era muito importante porque tinha uma visão progressista da Igreja brasileira, numa altura de ditadura. Para o fim, aquilo que mais me marcou e de que gostei mais de fazer talvez tenham sido as entrevistas anónimas. As pessoas modestas, que ninguém conhece, a quem não se dá valor, as pessoas a quem não se dá voz. Há gente absolutamente fascinante e muito interessante. Eu gostava muito de agarrar nessas pessoas e pô-las a contar histórias, a valorizar o que faziam. O Diário de Lisboa permitia-me fazer isso. Outro jornal, se calhar, não tinha tempo nem paciência para estar a aturar um maluco como eu. O Diário de Lisboa permitia isso, assim como permitia ao Pedro Alvim escrever textos absolutamente fantásticos, o [Mário] Castrim, com a crónica de televisão. A propósito de uma noite de televisão, ele fazia a crónica de um país. Era difícil encontrar outro jornal com estas características. Era um jornal fascinante. Era o único que dizia Lisboa. Nenhum era, já viu? Era O Século, Diário de Notícias, Novidades, A Voz, Diário da Tarde, Jornal de Notícias. Nada disso tinha que ver com uma coisa chamada Diário de Lisboa e isso dava-nos muito orgulho e dava um grande espírito e de amizade entre todos nós.