Paulo Carmona: "Não há razoabilidade na decisão sobre tetos nos biocombustíveis"
Representante do setor dos biocombustíveis explica vantagens da circularidade nos óleos e lamenta que Portugal dê isenções fiscais sem olhar a quem, pondo em risco produção nacional e beneficiando a importação.
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Discorda da recente legislação que impõe restrições a matérias-primas necessárias à produção de biocombustíveis, para atingir meta de 11% de incorporação, tal como ficou definido com Bruxelas. Considera que "estamos aqui a cometer alguns, alguns erros quanto à origem dos resíduos e afirma ser contra importações de resíduos vindos da China, ou da Índia, para se produzir biocombustíveis em Portugal porque não têm controlo de origem, tal como se exige aos produtores portugueses. É o motivo que o leva a afirmar que "estamos a destruir riqueza que existe em Portugal".
Carmona defende que deve haver bom senso e liberdade de escolha quanto à natureza das fontes limpas, no caminho para a descarbonização, seja eletrificação, biocombustível, ou mesmo hidrogénio. Recorda que a Alemanha com o aperto da guerra, desmantela centrais nucleares, mas abre centrais de carvão. Pede, por isso, bom senso na resolução da equação que junta urgência de resolução do problema climático com segurança energética e poupança das famílias, quando 26% dos portugueses, não tem dinheiro para aquecer casas.
Defende ainda que a isenção de ISP para importações de resíduos, para posterior transformação em biocombustíveis, que rende um benefício fiscal na ordem dos 60 milhões de euros, deveria ser verba canalizada só para produtores portugueses, caso não exista controlo da origem desses resíduos.
Sobre a situação no país e no mundo, diz ser um otimista por natureza, mas considera triste que numa altura que a revolução portuguesa está pestes a assinala os 50 anos do 25 de Abril, fica triste com o facto de o Governo ainda estar a apoiar cerca de três milhões de portugueses.
Paulo Carmona é o convidado desta semana d'A Vida do Dinheiro, enquanto presidente da Associação Portuguesa de Produtores de Biocombustíveis, e além do mundo da gestão e da energia, também fez incursões na política, tendo sido candidato da Iniciativa Liberal, pela Guarda, nas legislativas de 2019 e candidato IL por Sintra as autárquicas de 2021.
Licenciou-se em Gestão e Administração de Empresas na Católica e complementou os estudos com um mestrado em Filosofia do Conhecimento, além de ter feito o PADE na AESE Business School e passado pela Kellogg School of Managment. Entre outras experiências profissionais, numa carreira muito ligada ao setor energético, foi CEO da Prio, professor universitário e vice-presidente da Fundação AIP.
Vamos começar pelos preços da energia e os impactos da guerra no setor energético. A estratégia para fazer face à escalada de preços foi adequada?
Está a ser adequada, numa lógica de ação-reação. A Europa viu-se ao espelho e entendeu quão dependente é energeticamente em relação aos concorrentes - EUA, América Latina e Ásia -, uma dependência letal em termos de custos. E entrou em modo pânico, começando a açambarcar reservas até encher todos os tanques. A guerra pôs-nos a pensar, felizmente, no que podemos fazer. Claro que houve esquizofrenias, como a Alemanha fechar centrais nucleares e abrir as de carvão, que emitem gases. Felizmente, esse histerismo passou e a Europa, através do RePower EU, está a apostar forte nas renováveis. Há que cuidar os caprichos da natureza, mesmo porque as baterias ainda não estão tão desenvolvidas quanto queríamos - esse tema tem de ser dominado. Tenho muita confiança na capacidade humana. Não podemos é antecipar saltos tecnológicos. Mas foi sobretudo um acordar para a Europa que nos ensinou a necessidade de diversificar fontes de abastecimento energético.
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E os biocombustíveis continuam a ser o parente pobre das renováveis?
São talvez olhados de lado quando se trata da descarbonização dos transportes. Diz-se que os biocombustíveis competem com a alimentação, o que é falso, nomeadamente em Portugal - onde não se usa óleo de palma nem amidos para o fabrico; nós utilizamos principalmente óleos alimentares usados, na base da economia circular, e óleos que são subprodutos do fabrico de farinhas para os animais, nomeadamente o de soja e o de colza, que não se usa na alimentação. A soja é o elemento proteico essencial para alimentar os animais; ela é importada, esmagada para as farinhas e o óleo é desperdício. Dantes exportávamo-lo, até a preços abaixo de custo, para o Norte de África, mas os biocombustíveis vieram valorizar esse subproduto e com isso baixar o custo de fabrico das farinhas. Tanto que temos hoje farinha de soja muito competitiva e até exportamos para Espanha. Durante a pandemia, com o consumo de combustíveis a cair, cessou a incorporação de biocombustíveis porque não havia consumo de combustíveis; mas as fábricas continuaram a produzir farinha porque os animais precisavam de comer e nós também - leite, frango, ovos. E de repente o fabrico de farinhas parou porque não havia forma de escoar o óleo (que é 20% da soja). Os tanques estavam cheios porque não se produzia biocombustíveis. Foi por isso que se fez o despacho 4736/2020, a solicitar incorporação física de biocombustíveis, para que se escoasse os óleos e as fábricas poderem continuar a produzir farinhas para alimentar os animais.
Devia haver um olhar diferente sobre os biocombustíveis - até considerando o setor dos transportes e o potencial de transformar resíduos de outras indústrias em matéria-prima? O grande problema da descarbonização da economia são os transportes, porque o resto maioritariamente resolve-se com a eletricidade que produzimos. Nos transportes como se consegue?
É muito difícil para já, dada a tecnologia, que funcionem a eletricidade - a não ser que utilizemos catenárias nas autoestradas, pode ser um caminho... Ou placas indutoras. Mas não vale é a pena antecipar revoluções tecnológicas. E a questão prática é esta: os biocombustíveis são essenciais à descarbonização. Olhemos o veículo elétrico e a nossa realidade: segundo a ACAP, temos cinco milhões de carros, dos quais 200 mil elétricos. Somos um país pobre, com um parque automóvel de 20 anos e não vamos começar todos a comprar elétricos. Além disso, é preciso um reforço enorme na rede elétrica para colocar todos os carregadores, de forma a carregar o carro em casa sem ter de desligar o frigorífico ou deixar de ver TV. Atenção, o veículo elétrico é uma ótima solução, mas não pode ser a única. E há que fazer planeamento. Se nós andamos há 50 anos a discutir o aeroporto, há 30 a debater o plano ferroviário, vamos levar 20 para ter uma rede elétrica que sustente essa nossa ambição. Nós sabemos o que queremos: a descarbonização da economia e melhor ambiente para nós e os nossos filhos. Como? Sem impor vias únicas. É bom ter elétrico, mas se ultrapassar 20% do total vamos ter problemas.
E o biocombustível pode ser alternativa?
Não é a, mas uma das alternativas. A Europa às vezes vira-se toda para um lado e ainda há pouco tempo a Alemanha, que é um grande produtor automóvel, veio pôr um ponto de ordem nisso, dizendo que os motores a combustão não podem acabar em 2035. Vamos é tornar os motores a explosão limpos, criar combustíveis sintéticos verdes - através de hidrogénio. O hidrogénio é uma das possibilidades, os veículos elétricos outra, os biocombustíveis também estão a avançar. O objetivo é comum e a forma de lá chegar deve ser democrática. Mas os biocombustíveis não podem mesmo ser postos fora da equação. Aliás, as metas europeias são altas: nós temos 11%, que é relativamente perto da média de biocombustíveis europeia, mas há erros.
Quais?
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Para atingir as metas de 11%, aprovou-se um decreto-lei, a 6 de abril, que impõe restrições a matérias-primas de origem agrícola porque alguém diz que o óleo de soja e o de colza concorrem com a alimentação. Ninguém usa esses óleos para cozinhar. E temos necessidade de produzir por causa da farinha, portanto o produto existe. Se pomos um limite aqui, acaba-se com esse potencial de economia circular. A única produção que não tem cap é a que usa matérias-primas avançadas, nomeadamente lenho-celulósicas, biomassas das florestas, gordura retirada dos esgotos. Se limitamos a matéria isso também penalizamos a fileira agrícola, porque nunca antes se plantou soja e colza aqui. E na Europa nem há capacidade tecnológica para produzir óleos a partir de algas ou cardos - é preciso apoios para as desenvolver. Então o que acontece é que a Europa está a ser invadida por exportações chinesas de biodiesel dito avançado porque traz um papel a dizer que aquilo vem de um esgoto em Xangai. E não é assim... Supostamente, na China há 43 fábricas através de esgoto - a Europa tem uma. Todos desconfiam desse avanço chinês, mas ninguém pode ver. E diplomaticamente, ninguém vai pôr em causa um carimbo de uma instituição chinesa.
O Paulo está a pôr.
Porque tenho esse ceticismo. Nós na Europa temos uma fábrica em condições de extração de óleos em quantidade industrial; a Índia exporta para Portugal toda a produção do desperdício das terras raras de filtração. Estas contas não batem certo. Nas matérias-primas avançadas está a acontecer isso: vem o papel e pronto. E estamos a enriquecer quem faz os carimbos sem controlo nosso e a destruir riqueza em Portugal, sem fiscalizar as importações produzidas ninguém sabe como.
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Mas isso não contradiz os objetivos de uma Europa verde?
Bruxelas pensa mais na questão burocrática de atingir as metas seja como for. Nós estamos preocupados com o planeta e eles abrem centrais a carvão, vendem matérias-primas, metais raros, tecnologia para as baterias, biocombustíveis... E riem-se dos nossos esforços verdadeiros e legítimos, porque estão a ganhar dinheiro à nossa conta. É um contrassenso.
Os meios e as tecnologias para alcançar a descarbonização têm avançado com objetivos muito exigentes de Bruxelas. Mas o impacto que se quer no ambiente pesa também no bolso dos cidadãos. Que tipo de medidas podem equilibrar esta equação?
Isso leva-nos ao trilema energético: assegurar a questão ambiental, com segurança energética e as poupanças das famílias. E é gravoso num país como o nosso, em que 26% das pessoas dizem não ter como aquecer as casas no inverno. Tem de haver bom senso. Portugal não tem de estar no pelotão da frente, ainda que não deva ficar na cauda. Temos 0,14% das emissões globais e as políticas têm sido boas para nós, temos agora, aliás, uma componente de renováveis interessante - ao contrário do que aconteceu com o "avancemos em força para as renováveis" de Manuel Pinho, que criou verdadeiros desastres tarifários que ainda estamos a pagar. Portanto, não sejamos os pioneiros que apanham com as setas, nem os chineses que vão à boleia, haja meio-termo. E há que fazer contas. Por exemplo, estão previstos 2 mil MW de free float na Wind Float da EDP, mas é um projeto-piloto e custou imenso dinheiro - a que preço ficará essa energia?
Mas há incentivos, até do PRR.
Sim, mas pagam-se... E também podem ir para outras coisas. O hidrogénio, por exemplo, é uma solução bastante cara, mas que faz sentido no meio da tal equação energética. Não vamos é dar lições ao mundo.
A opinião pública não está já tão condicionada contra os combustíveis, quaisquer que sejam, que se inviabiliza algumas soluções?
Isso é uma questão ideológica de cancelamento de soluções e imposição. Cada um deve decidir o meio, desde que o fim seja a descarbonização e as soluções sejam viáveis. Não é essa postura da Europa... A Europa não tem estado muito aberta a alternativas. A esquizofrenia de abandonar o nuclear e toda a gente aplaudir, quando é a única solução no mundo segura - no sentido de não ser intermitente nem depender da natureza e não ter emissões -, para trocá-lo pelo carvão... Há resíduos, claro, mas também os há nas baterias. Não podemos ser mentalmente fechados, estar amarrados em termos ideológicos.
O que significam hoje os biocombustíveis para o país?
Na produção portuguesa, é uma fileira grande com muito emprego, há importação livre, não há sobrecusto para os consumidores e conseguimos criar e fixar essa riqueza em Portugal. Estamos a falar de 250 a 300 mil m3 de produção de origem vegetal e de óleos alimentares usados, que são 60% da produção. É economia circular. Estamos com uma capacidade de recolha de 22% dos óleos alimentares usados no país. É mais fácil em grandes fábricas de fritos, de margarinas, e consegue-se porque há a ajuda europeia da dupla contagem, que incentiva a recolha. Opomo-nos é ao que foi feito em Portugal com os tetos. As fábricas de farinhas produzem óleo e não faz sentido desperdiçá-lo, como não faz sentido pôr tetos aos óleos utilizados e depois ter de importar para incorporação. Não há razoabilidade nestas decisões de alguma inspiração europeia.
Mas deve ser o governo a impor regras ou a UE?
Os governos são autónomos. O biodiesel de matéria-prima avançada tem isenção de ISP há dois anos e meio, mas para isso devíamos saber de onde vem esse produto, porque essa isenção custa perto de 60 milhões de euros aos contribuintes - são os tais que vêm da Índia ou da China, importados pelas petrolíferas. Essa isenção só existe em Portugal. E não podemos controlar o esgoto ou pastelaria de onde vem.
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A isenção devia acabar?
Não digo acabar, porque isso é uma decisão política. O que discuto é que se favoreça a importação não controlada, que se dê 60 milhões de isenção em que 40 milhões vêm de fora, quando se podia direcionar essa ajuda para Portugal, até para ajudar na dimensão tecnológica das nossas universidades, para investigar. Ou seja, dar a isenção onde se consiga controlar a origem da matéria-prima avançada. Se na China não me deixam ver a origem, não tem isenção. A UTAD, em Trás-os-Montes, e Agronomia têm coisas brutais em biocombustíveis, Évora está a avançar, então vamos incentivar o que se faz cá. Os contribuintes também gostam de ver que o seu dinheiro é bem utilizado.
Virando a agulha para o seu papel no Fórum de Administradores e Gestores, como viu os últimos apoios à economia e as metas do Programa de Estabilidade? Estes números alteram as perspetivas "menos otimistas" do vosso barómetro de há um mês?
Os gestores ficaram bastante confiantes quando o governo teve maioria absoluta, porque isso dá capacidade de implementar um programa sem depender de negociações com parceiros que muitas vezes eram escorregadios e não amigos das empresas. Mas o otimismo esfriou com todas as questões e questiúnculas, casos e casinhos e com uma deriva muito mais populista nas medidas. O que queremos é estabilidade fiscal e legal para conduzir os trabalhos.
Sobretudo num momento já instável.
Exato. O governo está a fazer uma coisa louvável em termos de estabilidade macroeconómica: apesar de garantir que não há austeridade, continua com práticas de controlo das contas e a fazer cumprir o pagamento da dívida - e isso dá estabilidade macrofinanceira. Estas medidas foram adiadas por uma questão de prudência...
E não vêm fora de tempo?
Pois, isto já foi feito há muito por outros países. O governo dizer que apoiou três milhões de famílias revela que ao fim deste tempo todo ainda temos tantos portugueses a precisar de assistência do governo para fazer face a estas situações. E isto devia fazer-nos pensar em tudo o que ficou por fazer por incúria, incompetência ou azar.
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