Nos 45 anos da libertação dos presos políticos, na Fortaleza de Peniche é inaugurado um memorial com o nome de todos que por ali passaram. O Museu Nacional Resistência e Liberdade abre no próximo ano.
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A enorme máquina faz deslizar um ponteiro sobre a placa de aço. A um ritmo constante, com a máxima precisão, vai recortando com laser cada letra, seis segundos de cada vez. São 66 mil carateres que compõem os nomes dos 2510 presos políticos de Peniche.
Paulo Frade, dono da Frademetalúrgica, percorre com orgulho as centenas de nomes gravados. Logo na primeira placa, aponta o nome de Álvaro Cunhal. Foi o primeiro que reconheceu quando começou o trabalho.
Nas instalações da empresa, na freguesia da Terrugem, em Sintra, as placas vão-se alinhando. Uma espécie de ensaio para o trabalho final. No conjunto, o memorial dos presos políticos que passaram pela Fortaleza de Peniche tem 21 metros de largura, 4 metro de altura. Pesa cerca de 40 toneladas.
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O projeto foi desenvolvido pelo Atelier AR4 Arquitetura e a Frademetalúrgica ganhou o concurso público para executar a peça. Paulo explica que não é assim que vai ficar. O arquiteto João Barros Matos pensou em todos os pormenores. "Ele quer que isto vá buscar uma tonalidade mais avermelhada, um aspeto mais revolucionário", conta Paulo, "o trabalho em si é bastante forte. Ele quer, de certa forma, que transmita a resistência dos homens que lá estiveram enclausurados."
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Como as letras são recortadas, é possível fazer um decalque de cada nome numa folha de papel. Afinal, são mais do que nomes. E Paulo sentiu esse peso. "Eles ajudaram a que isto tomasse outro rumo. Acredito que seja importante para os familiares ver que o nome do pai ou do avô foi recordado - é uma homenagem."
Paulo contribuiu. Faz uma pausa, olha para a obra feita. "Gostava de me cruzar com algum dos que lá esteve."
Um portão para a memória
"Recordo-me de entrar aqui, algemado, numa carrinha. Nem sabia onde estava". O bater dos portões da Fortaleza de Peniche traz à memória de José Pedro Soares aquele dia 1 de junho de 1973, quando aqui chegou transferido da prisão de Caxias. Só saiu a 27 de abril de 74 - o dia da libertação.
Ao lado, Domingos Abrantes escuta, pensativo. "Este dia 27 é um dia que fica na História", acaba por dizer. O som destes portões transporta-o para uma viagem no tempo. Atravessou-os mais do que uma vez. A primeira entrada foi em fevereiro de 1960. A última saída em março de 73. É essa que prefere recordar.
"Aquela noite é uma coisa longuíssima. Sabia que tinha aqui gente à minha espera. É uma sensação terrível. Abrir-se a porta... Primeiro, conhecer a vila. Passei aqui quase 9 anos e não conhecia! Depois chegar aqui e ver pessoas que já não via há anos, é uma sensação muito agradável. Mas também se saía com a sensação de que não se sabia quanto tempo lá se estava fora".
Não se atravessam estes portões de ânimo leve. Nem mesmo hoje, com 45 anos de Liberdade. Domingos e José Pedro têm feito esta viagem com frequência nos últimos meses. A Fortaleza está em obras - aqui vai nascer o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade.
A homenagem que faltava
José Pedro Soares aproxima-se do microfone. "Se está a gravar e se os nossos ouvintes escutarem este barulho, devem saber que estamos a assistir à montagem do memorial onde vão figurar os nomes os presos que estiveram aqui na cadeia de Peniche". Ao lado, Domingos Abrantes acrescenta: "Vai ser uma coisa imponente."
A inauguração do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade está marcada para 2020, mas a primeira fase abre agora, no aniversário da libertação.
A exposição "Por Teu Livre Pensamento" mostra documentos, fotografias e algumas peças que prestam homenagem aos antigos presos, às suas famílias e à população de Peniche. Vai também ser possível ver como ficará o museu. No Parlatório, serão transmitidos testemunhos em vídeo dos familiares que visitavam os antigos presos. Há também filmes sobre as fugas de Peniche e uma cronologia da Fortaleza desde o século XVI. E, claro, o memorial.
As placas com os 2510 nomes vão sendo transportadas. Um corrupio de homens e máquinas apressam-se para ter tudo pronto no dia da grande homenagem.
"Não é uma cadeia de gente anónima", lembra Domingos Abrantes, "aqui estiveram pessoas concretas. Este memorial vai ter essa homenagem."
José Pedro lembra que a homenagem não é apenas aos presos. "Por detrás de cada nome há vidas sacrificadas. Nunca nos podemos esquecer dos filhos, das mulheres... Pessoas que vieram de todo o país."
Recorda uma história que lhe chegou há pouco tempo, numa reunião em Lisboa. Um homem do Alentejo foi preso e transferido para Peniche. A família tinha poucas posses e para o visitar venderam mobília de quarto. Quando chegaram à prisão, tinha sido castigado. Não houve visita, voltou para trás.
Domingos Abrantes e José Pedro Soares vão percorrendo os vários edifícios da cadeia. Um misto de emoção e uma urgência de contar.
"Tenho um amigo, o Francisco Miguel, uma figura lendária da Resistência. Fugiu daqui mas estava tão frágil que foi apanhado", conta José Pedro, "esse meu companheiro disse uma vez a uma camarada minha, a Tengarrinha: 'Sabes, eu gostava tanto de ter filhos'". A voz treme-lhe, comovido. "Por passar tantas anos na cadeia, nunca teve essa oportunidade."
Francisco Miguel, "o sapateiro" de Baleizão. Cumpriu um total de 21 anos de prisão, 10 dos quais no Tarrafal.
Os sons da prisão
A visita segue em passo rápido; é preciso aproveitar enquanto não chove. Domingos Abrantes, homem precavido que não sai de casa sem ver a meteorologia, garante que estamos safos até às 6 da tarde.
Em Peniche, os dias de tempestade são mais agrestes do que em qualquer sítio e o mar consegue ser assustador. "Quando estávamos aqui, nas noites de inverno, a água chegava a passar por cima do Pavilhão A, a uma altura incrível."
Enquanto lá estiveram, nunca viram o mar. As janelas com vidros foscos que impediam o mundo de entrar na prisão. Era o som que lhes chegava e que os guiava.
O som das ondas a bater; das traineiras a chegarem; do farol; das festas na vila; dos passos dos guardas; das gaivotas. "São os sons da cadeia", relata José Pedro.
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Um museu para o Futuro
"O museu chama-se 'da Resistência e da Liberdade'. E é bom não esquecer", alerta Domingos Abrantes. "Com todo o mérito que tiveram os militares de Abril, sem a resistência de longos anos, não havia a Liberdade. Milhares de portugueses que deram o melhor da sua vida e alguns a própria vida."
O museu foi uma conquista, assegura José Pedro. "Fez-se Justiça, 45 anos depois. Lembram-se todos aqueles que lutaram, um coletivo muito grande. É o povo que está de festa e é muito importante o que está aqui a ser feito."
Não querem nem lembrar-se da altura em que se pensou fazer aqui um hotel. A Fortaleza de Peniche tem de contar esta história, defendem. É preciso mostrar o que aqui se passou, as vidas de quem lutou pela Liberdade.
No dia em que os portões se abriram para sempre, José Pedro estava lá. "Era de noite, estava escuro. Havia muita gente aqui", recorda. "Abriram um corredor para nós passarmos, batiam muitas palmas, cantavam e gritavam: 'Liberdade! Liberdade!' E depois faziam-nos aquelas perguntas: 'Como é que se sente? O que é que pensa da Liberdade? O que é que vai fazer agora?'. Perguntas que, no meio daquilo tudo, não sabíamos responder. Era uma situação nova para nós."
"Sair da cadeia, onde passámos anos, depois das torturas, do julgamento... E depois vermos estas pessoas... A felicidade era muito grande. Uma realização do sonho. Foram muitos anos que as pessoas suportaram a Ditadura; sofreram e sofreram, esperaram e esperaram... Isto foi como se uma barragem tivesse rebentado! Um momento de felicidade incrível..."
As placas que formam o memorial aos presos de Peniche estão prestes a ser erguidas. A 25 de abril de 2019 também se vai fazer História.
No topo do memorial, uma frase do historiador e escritor António Borges Coelho, também ele preso político em Peniche:
"Nomeai um a um todos os nomes
Lutaram e resistiram
A liberdade guarda a sua memória nas muralhas desta fortaleza"
Um a um, nomes gravados para o futuro - 66 mil carateres, 2510 presos políticos.
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