"Podia haver uma tentativa de assaltar São Bento." Assembleia Constituinte foi cercada há 48 anos
À TSF, Helena Roseta, na altura deputada, conta que os deputados moderados conspiravam fugir para o Norte do país: "Podíamos fazer a Constituinte em qualquer lugar, não era preciso ser em São Bento."
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"Estava uma manifestação enorme, enorme, enorme." Há 48 anos, o Palácio de São Bento foi cercado por trabalhadores do setor da construção civil em greve.
Corria o ano de 1975 e a Assembleia Constituinte estava a funcionar há poucos meses. Durante uma madrugada inteira, os deputados do primeiro parlamento em democracia ficaram cercados sem poderem sair do edifício.
Viviam-se os tempos conturbados do Processo Revolucionário Em Curso (PREC). Dentro do Palácio de São Bento, deputados, funcionários e membros do Governo, incluindo o então primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, foram vítimas de um sequestro político, com as portas para o exterior fechadas.
A arquiteta e deputada, na altura pelo PPD, Helena Roseta foi uma das pessoas a ficar dentro da Assembleia Constituinte. O 12 de novembro de 1975 contado por quem o viveu.
"Naquela altura, a manifestação chegava até cá cima e pelas ruas. Havia uma grande tensão no país. Eu tinha apenas 27 anos, mas sabíamos que havia uma grande tensão, havia dois poderes paralelos - um poder militar e um poder político. Em ambos havia uma luta grande entre a fação mais moderada e fação mais radical. O que é que a fação radical queria? Não queria que fosse aprovada a Constituição porque era contra o que eles chamavam 'democracia burguesa'. A outra fação queria, naturalmente, uma democracia parlamentar como em todas as democracias que conhecemos", conta à TSF a antiga deputada.
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Helena Roseta recorda: "Queriam acordos que o Governo já não estava em condições de fazer, o Governo também já não era um Governo radical, era o Governo de Pinheiro de Azevedo, que era apoiado pelos partidos mais moderados e chegamos a esta circunstância, eu vou entrar no constituinte às 13h00 do dia 12 de novembro, não conseguia passar, a multidão não nos deixava passar. Eu disse 'eu sou deputada', lá me deixaram passar, entrei, e ficamos lá sem saber o que é que ia acontecer. A impressão que havia do lado dos moderados é que podia haver uma tentativa de assaltar o Palácio de São Bento e impedir que a Constituição prosseguisse e nós tínhamos consciência de que tínhamos de levar a Constituição até ao fim."
O ambiente dentro do Palácio de São Bento era "de grande tensão, mas todos os deputados tinham direito a estar ali".
"Nós mantínhamos uma relação, apesar de tudo, relativamente cordeais, éramos muito duros nos discursos que podíamos fazer antes do 25, a primeira vez que a Assembleia reuniu depois do cerco, eu vou à tribuna e faço um discurso de escacha-pessegueiro brutal, sempre interrompida com apupos. Nos discursos éramos muito duros, mas todos tínhamos legitimidade para estarmos ali, tínhamos sido todos eleitos e tínhamos muita consciência disso. Não havia insultos, podia haver frases muito duras, e às vezes já a raiar o insulto, mas todos tinham uma palavra a dizer e nós tínhamos consciência de que a democracia era isso mesmo", explica a arquiteta.
Os deputados, bem como funcionários e membros do Governo, estavam sequestrados no interior do Palácio de São Bento.
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"Não havia nada para comer, havia um barzito que já tinha esgotado tudo, não se podia lanchar, jantar, as horas passaram noite fora e, no meio disto tudo, sem saber qual era a saída, mas a combinação que se fazia, o que os deputados iam conspirando uns com os outros, era os deputados do PS, PSD, CDS sabiam que se conseguíssemos sair, íamos todos para o Norte, porque havia a ideia de que o país estava divido entre o Norte, que era mais moderado e o Sul, que era radical e, portanto, se fossemos para o Norte podíamos fazer a Constituinte em qualquer lugar, não era preciso ser em São Bento", conta.
Mas o problema resolveu-se: "Estávamos nesta quando aquilo acaba por se desbloquear, chegou-se a um acordo para nos deixarem sair, no meio da noite tinha havido a cena do Pinheiro Azevedo chegar à varanda tentar parlamentar com os revoltosos que estavam naquela manifestação, através do megafone, e quando ele começa a falar, começa-se a ouvir cá em baixo 'fascismo, fascismo nunca mais'. E aí é que o Pinheiro de Azevedo solta aquele brado 'bardamerda para vocês e para o fascismo' e vai-se embora porta fora e nós sem saber o que é que ia acontecer."
No entanto, o cerco não foi igual para todos. "No meio disto tudo, havia coisas caricatas, como não havia nada para comer, mas eu precisava de dar de comer a um deputado idoso do PPD, fui bater à porta do PCP porque no PCP havia galinha, havia frango e eles tinham comida. Isto mostra simultaneamente que estamos todos no mesmo cerco, mas não estamos todos nas mesmas condições", conclui.
O dia 12 de novembro de 1975 ficará para a história da construção da democracia em Portugal.
*com Cláudia Alves Mendes e Rui Oliveira Costa