"Porto Seguro." A casa onde os doentes com leucemia encontram “amigos improváveis”
A casa de acolhimento “Porto Seguro” é a única no país para doentes com cancros de sangue. Abriu há um ano, por iniciativa da Associação Portuguesa Contra a Leucemia, e já recebeu quase uma centena de estadias
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Com vista para as árvores, o quarto número oito é dos maiores da casa de acolhimento “Porto Seguro”. Está decorado em tons de azul e como todos os oito quartos da casa, tem duas camas, uma casa-de-banho privativa, armários, uma mesa, dois cadeirões, televisão e wi-fi. Nas áreas comuns, os hóspedes têm acesso à cozinha, sala de estar, lavandaria e o jardim. Reina a tranquilidade, mas somos convidados a colocar uma máscara, no caso de encontrarmos algum hóspede. Os habitantes desta casa têm baixos níveis de imunidade, uma vez que são doentes com cancros de sangue. Todos eles estão acompanhados por um(a) cuidador(a). Daí que os quartos sejam duplos.
A casa de acolhimento “Porto Seguro” é a única no país destinada a doentes hemato-oncológicos. Nasceu há um ano, por iniciativa da Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL), e neste período, registou 94 estadias. São famílias que podem vir mais do que uma vez, explica a directora da Casa, Nádia Marques, já que os doentes, deslocados da área de residência, podem regressar consoante o ritmo dos tratamentos oncológicos.
Isabel Cid chegou no final de Janeiro, com o marido Eduardo, a quem foi diagnosticada uma leucemia aguda. A ser seguido no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, Eduardo vivia na ilha açoriana de São Miguel, mas a necessitar de um transplante, o casal teve de mudar-se para o continente. Com a ajuda do pai, Isabel, assumida “cuidadora apaixonada e atrapalhada”, descobriu a Casa da APCL e não podia estar mais grata. “Quando uma pessoa recebe o diagnóstico de uma doença oncológica é um grande drama. É os dias virarem noite, o pesadelo virar constante e temos de passar para outra vida. Portanto, a adaptação (à Casa) é fácil”, assegura Isabel Cid, que encontrou aqui um verdadeiro “Porto Seguro”, com “amigos improváveis”. Em vez de cair “num mundo negro”, há muitas pessoas que “nos surpreendem e o abraço e o olhar é o coração da Casa. Gente cinco estrelas (…), quando entramos aqui, sentimos que é um Porto Seguro”.
Nádia Marques também nota a surpresa positiva dos doentes e cuidadores. “É muito melhor que um hotel”, já ouviu por diversas vezes. As famílias acolhidas são referenciadas pelos três hospitais de Lisboa que tratam os doentes oncológicos: IPO, Hospital Santa Maria e Hospital dos Capuchos, mas a APCL aceita pedidos feitos directamente por particulares. Desde que abriu em Maio de 2023, a casa tem estado “lotadíssima”, com famílias maioritariamente do Alentejo, Algarve e Açores.
A directora do “Porto Seguro” espera que esta seja a primeira de mais casas de acolhimento, até porque já teve de recusar o pedido a cinco famílias que acabaram por ser encaminhadas para outras respostas. No entanto, a casa não tem “qualquer tipo de apoio do Estado”, sublinha Nádia Marques. “É um caminho que estamos a fazer”, porque não existem dúvidas de que se trata de um “equipamento social fundamental”.
A somar a todas as comodidades, Isabel Cid considera que a “maior mais valia da casa é estar a cinco minutos do IPO”. A rotina dos que aqui vivem é imposta pelos “tratamentos prescritos pelo IPO” e há muitos doentes que passam grande parte do dia no hospital. Depois de receber um transplante, o marido de Isabel terá de permanecer pelo menos 100 dias internado. Por isso, a cuidadora não prevê regressar a casa, em São Miguel, antes do Natal, mas faz questão de deixar muitos agradecimentos: à casa, à APCL, aos funcionários do IPO e em especial, aos dadores de medula óssea. É uma “gratidão infinita” em jeito de apelo a quem possa doar medula e sangue: “tenham (tempo). Pensem como podem dar um olhar de luz diferente a quem está a passar o inferno”. E porque “pequenos gestos fazem toda a diferença”, Isabel recorda o dia em que chegou com Eduardo ao IPO. Encostada a uma parede enquanto o marido ia à casa-de-banho, foi abordada por um homem mais velho que lhe disse:
- Vocês estão os dois muito em baixo, não estão?
Sabes, eu tenho dois cancros e venho aqui frequentemente e vai dar tudo certo.
Comovida, Isabel só conseguia acenar com a cabeça, quando o doente teve um gesto inesperado: “Ele deu-me um beijo na testa. Parecia um beijo de Deus e ele disse: vai correr bem.”
São pequenos gestos que “podem não salvar o corpo, mas salvam a alma. Nós estamos perdidos. O nosso corpo está mal e a alma sofre. Portanto, pequenos gestos fazem toda, toda a diferença”.