Um verdadeiro porto de abrigo, o conforto de uma casa para quem está longe pelas piores razões. A ideia surgiu há vários anos e conseguiu finalmente sair do papel. A "Casa Porto Seguro" vai ser a casa de quem mais precisa.
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"A família vinha visitá-lo e, quer a mãe, quer a filha, dormiam no carro no parque de estacionamento do IPO". O testemunho é de Carlos Horta e Costa, agora vice-presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL), que recorda um dos momentos que mais o marcou na vida e na doença. O exemplo do doente de Portalegre acabou por dar lugar à ideia que dará vida à futura "Casa Porto Seguro".
O nome diz tudo. Esta residência que vai ser construída pela APCL tem como objetivo acolher doentes e familiares que estão a receber tratamentos em Lisboa e que não têm possibilidades de viver dignamente na capital durante os meses necessários para acompanhar o doente.
A história emocionante do doente de Portalegre que há muitos anos marcou Carlos não é caso único, muito pelo contrário. Hoje em dia, dezenas de doentes necessitam de se deslocar para Lisboa, Porto e Coimbra para tratamentos e não têm onde ficar, para além de muitos não conseguirem apoios suficientes para a alimentação e vida longe de casa.
"Os doentes que vêm de fora estão completamente desenraizados e por vezes não têm dinheiro - se estão doentes vão ficar com o subsídio de doença, o familiar para o ajudar tem de pedir uma licença sem vencimento e portanto não têm vencimento e nós temos um eixo que é apoiar estas famílias carenciadas", explicou o vice-presidente da associação em entrevista à TSF.
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"A minha mãe foi embora porque o que eu tinha não dava para as duas"
Priscilla Barbosa sentiu na pele o que é ficar sozinha e sem apoio familiar durante um processo tão complexo e doloroso. A viver em Portugal há 15 anos, a luso-brasileira recebeu o diagnóstico de doença oncológica há seis. Ao cansaço e às febres seguiram-se três meses de internamento e a confirmação do cenário inesperado, uma doença que a acompanha até aos dias de hoje.
A mãe de Priscilla veio do Brasil para apoiar a filha, para estar perto num momento difícil mas nem tudo correu como o previsto. "A minha mãe foi embora porque o que eu tinha não dava para as duas vivermos e desde que a minha mãe foi embora eu já fui internada três vezes", recorda emocionada.
No ano passado, Priscilla chegou a estar em isolamento numa nova fase de tratamentos, depois de o cancro ter reaparecido após uma remissão e saiu do hospital em março.
Agora, vive num quarto alugado, com o dinheiro contado e sem previsões de um futuro digno e com emprego, tendo já sido várias vezes discriminada por estar doente, inclusive com despedimentos.
"Os tratamentos são muitos duros, mas essa solidão é muito dolorosa e triste"
Ludgero Costa viveu uma situação idêntica. Era muito jovem quando lhe foi diagnosticado um linfoma. "Foi muito duro", recorda, principalmente porque "estava no serviço militar e tinha muitos projetos para o futuro".
Na altura, a mulher de Ludgero mudou-se para Lisboa, pediu uma licença sem vencimento e ficaram a viver apenas com o subsídio de doença. A filha, na altura com 10 anos, teve de ficar em Braga a viver com os avós e apenas estava com os pais ao fim de semana.
Foi a solidariedade de uma senhora que ajudou a família. Em vez de pedir uma renda, a senhora apercebeu-se da situação e ofereceu casa a Sílvia Gonçalves, um apoio fundamental para uma família que perdeu "todas as poupanças" durante a doença.
Sílvia recorda tempos "complicados", nos quais a Segurança Social não arranjou casa e "não deu nenhum tipo de ajuda". Porém, a distância daqueles que mais ama foi o que mais marcou Ludgero num momento tão difícil da vida.
"Os tratamentos são muitos duros, mas essa solidão é muito dolorosa e triste. Sozinho no tratamento, barrado em várias coisas... Só quem passa... É muito complicado, só na primeira pessoa", relembra.
A casa que será mesmo um Porto Seguro
Ludgero descreve a ideia com um verdadeiro entusiasmo, recordando que a casa mudará a vida aos pacientes que estão a receber tratamento. "É uma ideia sensacional, é uma ideia cinco estrelas, essa gente é muito boa, é uma mais valia não só para quem está doente mas para o país", realça
Priscilla acredita que a casa traria "tranquilidade", pois viveu momentos difíceis quando a mãe esteve a viver consigo. "Quando ia dormir pensava 'será que a minha mãe está com frio, que tem roupa para dormir?'. Alguém fica bem? Ninguém fica. 'Será que a minha mãe foi ao mercado ou está a guardar dinheiro para quando eu sair?'. A cara de pânico dela, lembro-me muito... é muito complicado", conta sem tentar esconder a emoção.
Tendo em conta o que viveu, Priscilla acredita que "a casa era muito importante porque ninguém estaria sozinho", explicando que se a mãe pudesse ficar no abrigo "teria outras companhias para partilhar e a partilha é uma coisa muito grande".
"A minha mãe nunca estaria sozinha, teria companhia para ir para o hospital, para fazer o almoço, porque às vezes quem sofre mais é a família. O que mais me afligia era o bem-estar da minha família, não a doença em si", conta.
O que falta para que a casa esteja de pé?
A "Casa Porto Seguro" encontra-se a cinco minutos a pé do IPO e a 15 minutos a pé do Hospital Santa Maria, um prédio cedido pela Câmara Municipal de Lisboa e que necessita de ser demolido antes de se iniciarem as obras.
Para tal, a associação conta com "muita solidariedade" e com a ajuda e projetos aos quais se pretende candidatar para acelerar o processo.
Neste momento, o projeto de arquitetura "está feito", já há "orçamentos para os projetos de especialidade" e há quem se tenha oferecido para alguns dos trabalhos que precisam de ser feitos.
"Em termos financeiros, ao longo dos anos fomos cativando dinheiro para este projeto. Diria que num orçamento entre 500 e 600 mil euros, no final deste ano teremos cerca de metade cativo", explica o vice-presidente, mostrando-se "otimista" com o início da obra na Páscoa do próximo ano e com a casa pronta em abril ou maio de 2020.
A "Casa Porto Seguro" será "a primeira", mas se tudo correr bem, a associação pretende dar continuidade para abrir outros abrigos do género e para apoiar as famílias carenciadas com doentes a necessitar de tratamento noutros locais do país.