Quase netos, quase avós: quando o alojamento estudantil não custa mais do que a companhia
Uma população cada vez mais envelhecida e alojamentos para estudantes do Ensino superior cada vez mais caros. Em Lisboa, em Coimbra e no Porto, há pessoas a resolver estes dois problemas de uma só forma: "Acabámos por criar uma relação neta-avó." A celebrar-se pela 33.ª vez o Dia Internacional de Idoso, os seniores destacam a importância de companhia e lembram que, no final, "vamos todos juntos nus lá para debaixo da terra".
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"Acabei por passar aqui a primeira quarentena. Na altura não dava para sair do concelho, então eu não podia ir para as Caldas e acabei por ficar aqui. Os filhos dela também não vinham cá porque tinham medo de passar alguma coisa e então ficámos as duas confinadas durante imenso tempo. Almoçávamos, jantávamos juntas... E mesmo ao nível da faculdade ela ajudou-me imenso (...) Deu-me muito apoio e acabamos por criar uma relação neta-avó." Quem fala é Inês Xavier.
Natural das Caldas da Rainha, entrou na faculdade, em Lisboa, há quatro anos. Começou por ponderar viver numa residência perto do polo universitário da Ajuda, mas o fado de caloira tinha outros planos e fez Ana - também caloira, mas de espírito - entrar na sua vida, acompanhada de "muita" simpatia e de um quarto que "tinha melhores condições do que o da residência." Inês até confessa que chegou a ter "um pouco de receio" de ir morar com uma pessoa mais velha. Rapidamente "acabou por desaparecer".
Convicta de que "a idade não é condição para parar", Ana continua a ter uma vida ativa aos 72 anos. Estudante à sua maneira - frequenta a universidade sénior -, aprende ópera, psicologia, línguas ou matemática e ainda arranja tempo para fazer hidroginástica. Ao lado de Inês, confirma que a satisfação nesta experiência é partilhada, sublinhando que aquilo que a motivou a alugar o quarto foi "única e exclusivamente ter companhia".
Enquanto as minhas perninhas mexerem, ainda que doam, tenho sempre de andar
"Tenho um quarto a mais numa casa onde chegámos a ser sete e agora sou só eu, portanto achei por bem alugar à Inês", conta à TSF.
Só que nem tudo foram rosas até aqui chegar. Antes de Inês, este quarto conheceu uma outra estudante e a experiência "foi bastante traumática", por isso os medos de Ana também foram alguns: "Ai filha", solta, "tive muito receio. Para alugar à Inês não foi fácil, mas quando o meu pai morreu eu já tinha posto um anúncio aqui no Instituto Superior de Gestão e Economia (ISEG) (...) e depois veio cá uma fulana que me levou uma bolsa com ouro sem eu dar por isso e partir daí eu decidi não alugar mais. Mas, depois veio uma amiga (...) e lembrou-se da Inês e assim começou a nossa história."
Estes últimos quatro anos "passaram-se sem dar por isso" para Ana, às costas de uma relação que caracteriza como "extraordinária" e "recíproca". O único problema que se coloca agora é aquilo que o futuro (não) reserva: "Quando ela se for embora eu não sei como vai ser. Acho que nem sei se vou alugar outra vez."
Foi Sara Saraiva quem apresentou Inês a Ana. Com uma experiência "um pouco diferente", conta que viveu apenas durante um ano com uma pessoa mais velha, mas que esse foi "tempo suficiente para criar uma relação."
Aos 22 anos, vê a ideia de coabitação geracional - juntar numa mesma casa duas pessoas de gerações diferentes - como "muito positiva", mas não deixa de reconhecer que pode ser "diferente viver a vida universitária com uma nova avó ou sozinha". É um alerta que a responsável pelo projeto "Abraço de Gerações", Teresa Sousa, nota, mas não deixa de contrapor.
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Do abraço ao aconchego, "não podia ser melhor"
Se em Lisboa os casos de coabitação são espontâneos, em cidades como Coimbra há mesmo programas desenvolvidos com o objetivo de "promover um envelhecimento ativo e quebrar situações de isolamento": o "Abraço de Gerações" é disso exemplo. Dinamizado pela Associação das Cozinhas Económicas Rainha Santa Isabel (ACERSI), em parceria com a Associação Académica de Coimbra e a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, convida os jovens a fazer companhia a um sénior através da oportunidade de não pagarem renda por um quarto em Coimbra, contribuindo apenas para as despesas.
À TSF, Teresa Sousa sublinha que "o programa não limita a liberdade", nem do idoso, nem do universitário e, por isso, "quem o procura é porque se revê nele".
"É mais do que natural que existam ideias preconcebidas. Também não temos um grande número de candidatos nem pessoas integradas por esse receio, mas só procurando e divulgando é que conseguimos desconstruir essas ideias", desafia.
Para evitar colocar em perigo o idoso e criar más experiências, em Coimbra o projeto prevê candidaturas seguidas de uma triagem "do perfil de cada um". Depois é feita uma visita domiciliária em que a pessoa mais velha decide se quer ou não receber o jovem candidato. Em caso de luz verde, é "feita uma avaliação sistemática, com telefonemas e visitas mensais regulares".
Ao abrigo do Abraço de Gerações há apenas dois meses, Maria da Conceição Fachada e a jovem Tânia Silva vivem juntas já há seis anos. Com 85 anos vividos, Maria da Conceição garante que a experiência "é maravilhosa, não podia ser melhor".
Tenho medo de não encontrar outra Tânia. Aquela Tânia é minha neta
Almoçam juntas, todos os dias trocam chamadas para saber como estão e, no final de tudo, a única coisa que receiam é que morarem juntas deixe de ser uma realidade. À TSF, Maria confessa que "a casa é como se fosse da Tânia" e que, se dependesse de si, toda a gente teria a oportunidade de abrir as portas de casa a jovens estudantes.
"Eu recomendo muito quando tenho alguma amiga, só que nem todas se chamam Maria. Têm medo, não querem, não compreendem como aceitei uma estranha em minha casa, que mexe em tudo... É isso que dizem a mim", revela.
No meio dos sorrisos que se instalavam na sala de Maria, a responsável Teresa Sousa reconheceu as "apostas inovadoras" do Governo, mas sublinhou "que ainda ficam um bocadinho aquém" e lembrou que é preciso abraçar mais gerações por todo o país, atuando "em duas realidades".
"Por um lado, o envelhecimento e solidão das pessoas mais velhas e, por outro, as necessidades que os estudantes sentem ao nível de alojamento, porque as rendas são muito caras e porque também temos percebido que, muitas vezes, o próprio estudante também se sente isolado", explicou.
De Coimbra para o Porto, entramos agora na casa de Fernanda. Sob o lema "Quem estuda tem casa. Quem tem casa tem companhia", a autarquia do Porto e a Federação Académica do Porto são pioneiras nesta ideia de coabitação geracional.
Fernanda Magalhães da Costa ficou viúva e os seus filhos não queriam que ficasse sozinha. Entre pagar para ter companhia ou não ter medo de receber um estranho em casa, Fernanda optou por se candidatar ao programa Aconchego: "Estou muito satisfeita com os alunos."
"O estudante que eu tinha era o Francisco, era um moço muito educado, meigo e respeitador (...). Lá conversávamos, estávamos até às tantas e era engraçado porque estava a dar uma telenovela e ele também gostava de ver. Ficávamos sempre os dois", começou por contar, adiantando que agora vive com Madalena Cardoso, uma "pequena novinha de 19 anos, muito simpática", que "por coincidência também gosta de ver a telenovela".
As ligações que Fernanda criou com os mais novos são fortes e, por isso, admitiu, não consegue não ficar preocupada com o bem-estar de cada um: "Por exemplo, vão tomar café e vêm um bocadinho mais tarde, eu digo 'está bem, não me importo, mas se vier um bocadinho mais tarde ligue-me, vocês estão sob a minha responsabilidade e eu fico preocupada se não aparecerem'".
"Estou aqui rijo que nem uma pedra"
Se Ana dizia que idade não é condição para parar, aos 85 anos José é invisual, mas sente-se "rijo que nem uma pedra" e, por isso, apesar de não ter condições para uma experiência como as anteriores, recorre ao centro de dia da Associação Nacional de Apoio ao Idoso (ANAI) para não se sentir sozinho: "O fim de semana é o meu diabo."
Sem retaguarda familiar, foi acolhido em Coimbra, depois de uma vida na Casa Pia, em Lisboa. Atualmente, a sua rotina passa por chegar ao centro por volta das 10h00, tomar o pequeno-almoço, conviver e ouvir música no seu rádio até que seja hora do almoço. À tarde descansa, lancha e ao fim do dia regressa à pensão onde todas as noites dorme.
Questionado sobre a importância da ANAI na sua vida, "Zé" foi sempre claro: "Se ela [a presidente da associação] um dia fosse embora daqui, antes ia morar para a rua." Apesar de poder parecer hiperbólico, a possibilidade de ficar sem teto não lhe é uma realidade assim tão distante.
"Quando chegou a Coimbra, o Zé cai um pouco de paraquedas e acaba por ficar numa das pensões daqui. Apesar de ser notório aos olhos da sociedade que a pensão não reunia as condições necessárias, entre não ter as condições ideais ou não ter um teto onde permanecer, é sempre óbvio que o ótimo é inimigo do bom (...). Até que chega o dia em que a ASAE encerra o estabelecimento por falta de condições de segurança", contou à TSF a presidente da ANAI, Sónia Vinagre, acrescentando que, na altura, "a Segurança Social não tinha nenhuma resposta, nenhuma vaga cativa (...) em nenhuma ERPI [Estrutura Residencial para Pessoas Idosas]".
A Associação Nacional de Apoio ao Idoso empregou "todos os esforços para arranjar um sítio em condições" para o Sr. José, tendo suportado durante dois meses custos de reservas através da plataforma Booking, até a autarquia de Coimbra ter arranjado um quarto que, "não tendo também as condições ideais, são aquelas que se conseguiram num curto espaço de tempo".
Às vezes esquece-se que vamos todos juntos nus lá para debaixo da terra
Além de Sr. José, o centro de dia "ocupa" o dia de mais 20 idosos. Na sala de convívio, uns pintam, outros costuram, veem televisão ou dormem. Sentada numa cadeira a tricotar, Maria Guilhermina, apelidada de Gina, dizia que agora tem "um emprego sem moedas" que "serve para distração" até que chegue "a carta de chamada". Risos fizeram-se ouvir na sala, onde a auxiliar Andrea Lopes procura diariamente "desenvolver atividades (...) e explorar aquilo que cada um mais gosta".
"Alguns nunca pintaram na vida e a primeira vez que pegaram num pincel foi aqui no centro de dia. Alguns diziam "sabe, o meu pincel era uma enxada na mão", disse.
No entanto, advertiu Andrea Lopes, "o centro de dia pressupõe que as pessoas ainda sejam minimamente autónomas. Passam aqui o dia, mas à noite regressam a casa e muitas vezes estão sozinhos".
Umas ruas abaixo, também no Centro de Dia Rainha Santa Isabel da ACERSI, todos os dias chegam pela manhã idosos para receberem apoio. Com 96 anos, Josefina já é considerada da casa: "Tanto ano, tanto ano... Sinto-me muito bem aqui. Vim para aqui porque fiquei viúva, o meu marido morreu há 38 anos."
A importância de se sentir acompanhada foi visível com a chegada da TSF. As lágrimas corriam no rosto de Josefina que, afirmou, "não estava à espera desta surpresa". Sobre as atividades promovidas pelo centro de dia, quer Josefina, quer Pavão, "o segundo a entrar", destacaram os convívios, as aulas de ginástica e até as aulas de informática.
"As senhoras pintam muito (...) Já aprendi através do Google Maps a ver algumas cidades", contou o homem de 92 anos. Mas, o ponto alto do dia é quando se juntam à tarde para jogar bingo: "O sossego é muito grande quando se joga."
A vida não é fácil, mas aqui torna-se um bocado mais fácil
Segundo os Censos de 2021, a população idosa em Portugal cresceu 20,6% face a 2011 e, atualmente, representa 23,4% do total dos portugueses. No entanto, apenas 11,9% das pessoas idosas são abrangidas por respostas sociais, como ERPI, Centros de Dia ou Apoio Domiciliário para Idosos.
A TSF contactou o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social para saber se o Governo vê a possibilidade de apoiar e alargar projetos de coabitação geracional ao resto do país, mas até à data não obteve resposta.
O Dia Internacional do Idoso comemora-se anualmente a 1 de outubro, celebrando-se este ano pela 33.ª vez, após proclamado pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 1990. Para 2023, a ONU assinala o dia com o tema de debate "Cumprir as promessas da Declaração Universal dos Direitos Humanos para as Pessoas Idosas: Através das Gerações".
