Que las hay, las hay... E na Arruda quase todos tinham uma bruxa "de trazer por casa"
A Bruxa d'Arruda faz parte do imaginário de quem vive na Arruda dos Vinhos. A ela acudiam todos, os que não conseguiam resposta na medicina convencional e até os médicos recorriam ao seu saber. Para homenagear o legado a Câmara Municipal criou o prémio de artes Bruxa d'Arruda.
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"Na Arruda [dos Vinhos] quase todas as pessoas conhecem algum ritual." A afirmação é de Paulo Câmara, responsável pela divisão sociocultural da autarquia de Arruda dos Vinhos que adianta: "Sei reconhecer o uso terapêutico de algumas ervas, por um conhecimento que me foi passado pela minha avó. No fundo, todos tivemos uma avó que era à sua maneira uma bruxa que tínhamos em casa. Era uma bruxinha de trazer por casa"
A erva arruda trata o mau olhado, mas Paulo Câmara tem na memória outras ervas para diferentes maleitas: "A beladona, que é uma erva muito rara e tóxica, as bagas, cidreira, alfavaca-de-cobra, erva de são roberto, erva-pinheirinha, malvas cada uma para o seu problema. Às vezes misturadas, mas misturadas na dose certa," porque um erro na mistura "pode dar mau resultado."
Paulo conhece rituais, rezas, benzeduras e mezinhas numa vila atraída pelo que não se consegue explicar. "A Arruda não é só conhecida pela bruxa, mas é conhecida por um vasto património imaterial associado à cova do gigante, às lendas de mouras encantadas, a Bruxa d"Arruda é só mais uma. Mas, talvez por ser a mais recente, é aquela que ainda está mais fresca na memória das pessoas."
A Bruxa d'Arruda era Ana Lerias, a quem o cabelo deu o apelido louro ou loira. Viveu no final século IXX, início do século XX e tratava dos males de todos os que a ela acudiam.
Mas a Bruxa d'Arruda não era bem uma bruxa. "Era uma curandeira, uma mulher de virtude. Era uma senhora que tinha determinados conhecimentos do mundo paralelo e tudo faria para o bem, ou seja, seria para ajudar as pessoas a tratarem determinadas mazelas, determinadas doenças. Portanto, a nossa seria uma bruxa boa." Explicou Paulo Câmara à TSF.
Mais do que temida a bruxa da Arruda era estimada, "era motivo de atração externa. Se pensarmos que a Arruda [dos Vinhos] era uma vila rural que, embora perto, estava longe de Lisboa, esta senhora catapultava a Arruda no exterior, e também faziam com que pessoas de fora viessem à Arruda, era considerada."
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Quando o médico foi à bruxa
Vem de longe a fama da Bruxa d'Arruda. Em 1906 o Diário de Noticias dedicou-lhe uma reportagem e o médico Tito de Bourbon e Noronha, um João Semana d"Arruda, dizia por carta ao etnógrafo e médico Leite de Vasconcelos "a bruxa da Arruda existe, existiu e existirá".
Ana Loira era visitada por gente de todo o lado. Até homens de ciência ajudaram ao reconhecimento da bruxa. Paulo Câmara conta: "Um médico que tendo recorrido à medicina convencional, aliás ele próprio era médico, não conseguia tratar o problema que a filha tinha e veio à bruxa da Arruda. A filha terá ficado três dias na casa da bruxa, que a terá deixado sem comer e sem beber durante três dias. No final dos três dias colocou-lhe um alguidar com leite à frente, atraída pelo leite a criança terá cuspido uma cobra."
"Não terá sido uma cobra, poderá ter sido um oxiúro, um parasita o que é vulgarmente chamado lombriga. Quem conta um conto acrescenta um ponto, e o facto é que sabedoria popular transformou, ou poderá ter transformado, uma lombriga numa cobra de grandes dimensões." Acrescenta o responsável autárquico.
O episódio inspirou Ana Ramos, que apresentou a concurso uma pintura em que retrata a casa da bruxa e a filha do médico. Ana não conheceu a Bruxa d"Arruda, mas recorria a uma certa curandeira. "Para mim não era a bruxa da Arruda, mas sim a tia Laurentina que conheci perfeitamente. Cheguei a levar os meus filhos quando eles tinham o bucho caído. Ela [a bruxa] fazia umas massagens e punha uma folha de couve com azeite. A folha de couve ficava seca, ou seja, a folha tirava a inflamação da criança. Isso era muito simples, mas os médicos não faziam."
Arte, alquimia e um guia para aprendizes de feiticeiro
A obra de Ana Ramos está exposta, até 26 de março, no Centro Cultural do Morgado juntamente com as restantes 44 peças concorrentes ao prémio de artes Bruxa d"Arruda.
O curador da exposição, Rafael Nascimento, explicou à TSF que a arte também pode ser alquimista: "Está muito patente a relação da ciência com a alquimia. Vários artistas quiseram trabalhar isso. Qual é a linha, geralmente entra na linha do desconhecido, ou quando a ciência não consegue explicar facilmente recorremos a esta ideia mais alquímica. Por outro lado, quem tem uma ideia científica mais forte critica e rejeita. O artista no seu processo criativo, de alguma forma, está num processo alquímico. Muitas vezes não temos explicação para o que estamos a criar e o que sai é relativamente mágico. Aquele momento de criação é mágico."
Há pintura, escultura e um trabalho interativo. O júri deu o primeiro prémio a um painel que parece uma banda desenhada. "Um mural, com dimensões relativamente grandes, que reflete a questão da bruxa d'Arruda em vários painéis. Existe um jogo em que as imagens se relacionam quase ao estilo BD. É uma obra assumidamente naïf " nas palavras de Rafael Nascimento.
Para que a tradição oral não se perca foi feita uma recolha desta herança mística. É um guia prático da Bruxa d'Arruda. Paulo Câmara, que ajudou a eternizar as memórias, explica o que foi feito: "Fizemos uma recolha junto das pessoas mais velhas que tinham ainda este conhecimento, de rezas, mezinhas, receitas. Rituais que a bruxa da Arruda, ou melhor, as bruxas da Arruda utilizaram ao longo dos tempos." Acrescentando que "é um guia para que qualquer pessoa possa fazer a sua tentativa de bruxaria. No entanto, nunca dará o resultado que daria com a Bruxa d'Arruda, porque é preciso o "dom" e nem todas as pessoas têm o 'dom'".
A verdade e o azeite
"Colocar o azeite na água, de certa forma, é purificar alguém que está com um problema. Consoante o que acontecesse, ao azeite, a pessoa estaria com um quebranto (mau olhado), ou não. Geralmente estava sempre. Os tratamentos dependiam da maleita. Mas a erva arruda era usada com cautela. Pelas suas propriedades é uma erva com a qual tem de se ter muito cuidado. A bruxa tinha um cuidado bastante extremoso a lidar com este tipo de erva. Nós, hoje sabemos que a erva Arruda é uma planta que tem propriedades abortivas e é tóxica." explica Paulo Câmara
Conta-se que a Bruxa d"Arruda chegou a fazer fortuna, deixou uma herança avaliada em mais de "20 contos", mas as consultas não tinham um preço fixo. Paulo Câmara explica: "As pessoas davam o que podiam dar, outras pessoas teriam de deixar alguns objetos, nomeadamente roupas. Por exemplo, se a pessoa que estivesse doente não estivesse presente, tinha de ser trazida uma peça de roupa dessa pessoa. A peça de roupa teria de ser deixada à bruxa e seria levantada mais tarde. Depois do tratamento decorrido, se tivesse surtido algum efeito, as pessoas pagariam. Há alguma informação de que ela era uma pessoa abastada, chegou a comprar terrenos. Era detentora de algum património."
Ana Loura tinha conhecimentos de letras e números "Não era analfabeta. Tinha algum conhecimento e teve a preocupação de passar esse conhecimento, e que os filhos frequentassem a escola. Inclusivamente, alguns dos filhos, homens, ajudavam-na a escrever as receitas que depois as pessoas levavam."
A Bruxa d"Arruda teve 19 filhos. Cinco filhas receberam os ensinamentos da mãe mas não conseguiram a mesma fama. A história de três gerações de bruxas é um património imaterial e são tantas as lendas que Arruda dos Vinhos é uma referência com o Vale Encantado. Para que todo este património cresça conforme a imaginação de cada um, a Câmara Municipal criou o prémio de artes "Bruxa d'Arruda".
Há superstições que não se perdem.