"Racismo já matou e continua a matar." Governo recebe comunidades de Lisboa, associações sem "grandes expectativas"
As várias associações apelam, na TSF, para "uma ação concreta do Governo". Já a ex-ministra Mariana Vieira da Silva sublinha que estas "comunidades desfavorecidas precisam de investimento"
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O Governo reúne-se esta terça-feira com várias associações representativas das comunidades da área de Lisboa “para dialogar”, um encontro que surge na sequência dos incidentes que se seguiram à morte de Odair Moniz, baleado por um agente da PSP. As demais entidades revelam, à TSF, que as expectativas para este encontro "não são muito grandes" e instam o Governo a assumir uma posição clara, bem como o regresso do policiamento de proximidade.
A reunião convocada pelo Governo juntará os ministros da Presidência, da Administração Interna e da Juventude e Modernização, bem como dirigentes das polícias (GNR e PSP), do Instituto Português do Desporto e da Juventude e da Agência para a Integração, Migrações e Asilo.
Na lista de convites para a reunião desta terça-feira, inicialmente divulgada pelo Governo, com o intuito de “dialogar” com as comunidades da Área Metropolitana de Lisboa, não estavam coletivos como o movimento Vida Justa, que só foi incluído depois de pedir explicações.
A ex-ministra do Estado e da Presidência Mariana Vieira da Silva considera que a reunião, apesar de ser uma boa iniciativa, peca por tardia: "Esta reunião devia ter acontecido logo a partir do início dos incidentes porque uma perspetiva apenas assente - e essa é uma dimensão muito importante - na dimensão policial e da repressão, nunca consegue transformar um fenómeno com estas caraterísticas de reação a uma morte que continua por explicar. É muito importante que o Governo faça essa reunião."
Mariana Vieira da Silva alerta, em declarações à TSF, para aquilo que são os "sinais" de desinvestimento junto destas comunidades, levadas a cabo pelo "atual Governo", apresentando como exemplo disso mesmo o fim do programa "Bairros Saudáveis", uma decisão que revela uma visão que não "parece ser a necessária neste momento".
A antiga ministra defende ainda que "nada explica ou desculpa aquilo que aconteceu" na noite em que Odair Moniz foi baleado mortalmente por um agente da PSP, mas sublinha que tal aconteceu "num contexto".
"Aquilo que aconteceu, aconteceu num contexto e o contexto são estes bairros que são comunidades desfavorecidas e que precisam de investimento e de um olhar do Estado nas dimensões infraestruturais, culturais, de saúde e sociais e é isso que, um pouco por todas as duas áreas metropolitanas (Lisboa e Porto), com projetos que foram pensados pelas próprias autarquias, num sistema de proximidade, está a acontecer, mas precisa de acompanhamento, investimento e de uma atenção particular do Governo", explica, acrescentando ter a esperança de que isso possa agora "passar a acontecer".
Mariana Vieira da Silva nota, por isso, que "olhar para a dimensão policial é urgente", mas não é "a única solução" e defende uma aposta no "policiamento de proximidade". "Eu julgo que o fundamental aqui é mesmo ouvir as comunidades e perceber quais são em concreto as suas queixas, procurando responder", afirma, completando que já existem alguns projetos nesse sentido.
A antiga governante insiste que o desinvestimento nestas comunidades é contraproducente e apela para que o Governo não se concentre "num discurso que parece quase bélico sobre as questões de segurança".
A Associação Djass, que luta pelos direitos dos africanos e afrodescendentes, confessa, na TSF, que as expectativas daqueles que foram convidados a estar presentes na reunião com o Executivo "não são muito grandes".
"Sem ter um objetivo claro, tenho a impressão de que nos vão ouvir e vai ficar na gaveta", lamenta Evalina Dias, dirigente da associação, esclarecendo que no e-mail que receberam não havia menção do assunto do encontro, sendo apenas explicado que o ministro da Presidência pretende ouvir as várias associações.
"Este convite surge na sequência dos acontecimentos dos últimos dias e da morte de Odair Moniz, mas não existe um plano de ação, um decreto para nos apresentar", insiste, destacando que o problema da violência policial tem sido comprovado em "vários relatórios internacionais", pelo que o Governo de Luís Montenegro "tem todos os dados necessários para atuar".
A dirigente da associação Djass lembra que o problema do racismo entre as forças de segurança é "gravíssimo" e lamenta que a polícia não tenha "sido chamada à atenção que tem praticado nos últimos anos": "Aliás, desde sempre."
"Mas, agora, nós - o movimento negro e as outras associações - estamos unidos e estamos a denunciar e os órgãos policiais estão a perceber que já não passam impunes. É preciso uma ação concreta do Governo. É preciso fazer alguma coisa sobre este problema, que já se arrasta há muitos anos. Quantas pessoas mais precisam de morrer às mãos da polícia?", questiona.
O dirigente da SOS Racismo, Mamadou Ba, espera que "o Governo assuma a sua responsabilidade de perceber que a questão racial é uma questão estrutural", lamentando as declarações de segunda-feira do primeiro-ministro, que defendeu que Portugal não é "um país onde ódio e questões raciais tenham natureza de preocupação”.
"Eu até me pergunto em que país é que vive o senhor primeiro-ministro quando diz que Portugal não tem problemas de racismo, quando o racismo já matou e continua a matar no país", atira.
Mamadou Ba confessa ter a esperança de que o Executivo não profira as mesmas palavras e que não negue a existência do "racismo, da violência policial racista e da violência racial em Portugal", assumindo, antes, um compromisso com esta luta.
"Espero que o Governo não venha dizer isso e não venha fazer a confusão entre um discurso securitário e a necessidade de implementar políticas públicas de combate à desigualdade com fator racial", afirma. O dirigente diz, por isso, que é urgente "alterar completamente a própria forma como o policiamento é visto junto das populações e dos territórios em que essas populações habitam".
"Não se pode entrar nos bairros como se estivéssemos a entrar num território de não direito, como se estivesse suspenso o Estado de Direito. Qualquer pessoa que viva em qualquer parcela do território nacional merece a mesma dignidade e a intervenção da polícia tem de se coadunar com este princípio de que as forças de segurança têm de ser um fator de segurança, e não um fator de risco ou insegurança para as pessoas com quem elas têm de interagir no quotidiano", nota.
Quem também não parte para o encontro com "muita expectativa" é Jakilson Pereira, da Associação Moinho da Juventude, da Cova da Moura, que defende igualmente o regresso do policiamento de proximidade.
"Não partimos com muita expectativa, mas esperamos que o Governo dê ouvido às nossas reivindicações e possam ser solucionados um conjunto de problemas ligados aos bairros: um deles é a questão do policiamento, porque desde 2013 que acabaram com o policiamento de proximidade, que era uma forma de a comunidade estar em contacto com a polícia e não haver esse tipo de policiamentos só do corpo de intervenção", explica.
A mesma ideia é partilha por Carlos Simões, presidente da Academia do Johnson, que lembra que as histórias de terror racial são muitas vezes atravessadas por "três gerações". O dirigente defende, por isso, que é necessário "haver outra inteligência e humildade para não varrer para debaixo do tapete coisas que são absolutamente importantes".
"Se não for o princípio de construir com as comunidades, com os atores sociais que nela trabalham, com as realidades que estão presentes e se for apenas um processo de prescrição de medidas, com certeza que não há alterações por decreto-lei", afirma.
A iniciativa - que vai decorrer às 14h30, no Campus XXI, em Lisboa – surge na sequência dos acontecimentos que se seguiram à morte de Odair Moniz, cidadão cabo-verdiano de 43 anos, morador no bairro do Zambujal, na Amadora, que há uma semana foi baleado por um agente da PSP, no bairro da Cova da Moura, no mesmo concelho.
Segundo a PSP, o homem pôs-se “em fuga” de carro depois de ver uma viatura policial e despistou-se na Cova da Moura, onde, ao ser abordado pelos agentes, “terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca”. A Inspeção-Geral da Administração Interna e a PSP abriram inquéritos e o agente que baleou Odair Moniz foi constituído arguido.
