Quando muitos pensavam que a rádio era um meio ultrapassado, no inesperado apagão na Península Ibérica, a 28 de abril de 2025, as ondas hertzianas serviram de luz na escuridão. Após cem anos de emissões regulares no país, vale a pena lembrar o poder da rádio e conhecer algumas vozes que acompanham os nossos dias
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Sentado nos estúdios de rádio da Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), em Lisboa, onde trabalhou mais de 20 anos como docente de Laboratório de Rádio, Francisco Sena Santos prepara-se para gravar o podcast “A Escala do Clima”, da Antena 1 e vencedor do Grande Prémio Ciência Viva 2024. O cabelo branco não esconde a idade, mas a voz continua jovem como no dia da estreia em frente aos microfones, há mais de 40 anos.
De segunda a sexta-feira, às 08h40, enquanto cada ouvinte atravessa Lisboa no trânsito caótico da cidade, é a voz do jornalismo que se ouve dos emissores da Antena 1, com a crónica radiofónica “Um Dia no Mundo” - também disponível em podcast. De acordo com dados da Marktest, em 2024, a Antena 1, 2 e 3 obtiveram o número mais elevado de ouvintes diários da última década, atingindo uma média de 600 mil, o que prova que a rádio está de boa saúde e recomenda-se. O aumento de público sentiu-se, inclusive, entre os jovens, que recorrem à internet para ouvir rádio. Como cada ser que precisa de oxigénio para respirar, também Francisco Sena Santos não poderia viver sem a proximidade aos microfones: “É aquilo que, numa linguagem simples, se pode traduzir em: aquilo que eu mais gosto de fazer na vida.”
Companheiro de emissão de Francisco Sena Santos, mas nos estúdios da TSF, nos anos de formação desta estação de rádio que revolucionaria o jornalismo português, Carlos Andrade não esconde o orgulho de ter integrado a equipa fundadora de uma das estações mais importantes no panorama do jornalismo radiofónico em Portugal. Com o falecido Emídio Rangel, o jornalista que hoje é moderador do programa “Princípio da Incerteza”, da TSF e da CNN Portugal, não esquece os anos de glória de uma emissora que profissionalizou o jornalismo e foi buscar muitos dos seus talentos ao boom das rádios clandestinas do final dos anos 1980 e início de 1990.
“Tive a sorte de ter sido convidado para estar no projeto de execução profissional contínua da TSF, que depois se tornou TSF Rádio Jornal. A TSF teve uma importância absolutamente decisiva nos meios de comunicação social, e não apenas na rádio”, afirma. O lema era inesquecível ao ouvido: “Vamos até ao fim da rua, até ao fim do mundo.” Jornalista há mais de 45 anos, também leciona as disciplinas de rádio a jovens estudantes de Jornalismo, na ESCS, e acredita que não existem motivos para discursos derrotistas: “Depois do apagão de há semanas, não tenho nenhuma razão para estar pessimista. A rádio tem uma capacidade de adaptação e vai continuar.”
A voz que acompanha corações
A rádio é informação, paisagem sonora, música e entretenimento. Pode ser a melhor ou a única companhia, sobretudo para quem vive na solidão. É um espaço de discussão, liberdade e com a possibilidade de dar voz às pessoas. Criada em 1894, por Marconi, a rádio deu os primeiros passos no mundo da comunicação no início do século XX, deixando marcos importantes na história e memórias na mente de quem a tem como companhia. Nascida oficialmente no ano 1914, com a criação da “Rádio Hertz”, o acontecimento abriu as portas para o aparecimento de muitas outras estações de rádio nas décadas seguintes.
Em Portugal, a história da rádio está repleta de diversas nuances e contributos, o que faz com que a data do seu início não seja consensual. Numa entrevista à RTP, pelos 50 anos da rádio, o locutor Adriano Lopes Vieira conta como iniciou as primeiras emissões regulares, a partir da estação P1AA, a 1 de março de 1925, numa fase inicial em onda média às segundas e quartas, entre 22h00 e a meia-noite. A pedido dos ouvintes, acrescentaram as emissões às sextas-feiras. Entretanto, começaram também a difundir em onda curta, às terças e quintas, intercalando com as emissões em onda média.
Desde então, a rádio é um dos meios de entretenimento mais apreciados. Através do som, alcança a mente das pessoas, levando-as a ver e a imaginar aquilo que o locutor lhes transmite, o que talvez a torna tão especial. Durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1943 e 1945, a rádio foi mesmo a única janela aberta para as decisões políticas que interferiam na vida das pessoas e até para o que se passava nas trincheiras da guerra. Quando mais precisam, a rádio está sempre lá para o ouvinte: “No dia do apagão, nós tivemos a rádio com todas as suas virtudes. Instantânea, ágil e ubíqua, está em todo o lado ao mesmo tempo.”
O sucesso de uma rádio passa pela ligação que estabelece com os ouvintes ao ponto das suas vozes se tornarem parte do imaginário coletivo e parte do espaço público. “Tenho histórias engraçadas por ter sido reconhecido pela voz. Entrei num táxi, disse 'bom dia' e o homem vira-se para trás surpreso.” O episódio é relatado por Paulo Fragoso, locutor de rádio há 38 anos. O radialista tem a certeza de que, mesmo com o multimédia a prevalecer no presente, a rádio consegue ultrapassar os restantes meios de comunicação. “O som da rádio entra. É muito mais marcante e impactante, não só culturalmente, mas em muitos outros aspetos”, defende.
Paulo Fragoso conheceu a rádio aos 6 anos, através de um pequeno aparelho do avô e reconhece que a sua admiração pela rádio continua a ser a mesma: “Como é que havia pessoas a falar dentro de uma caixa, como é que aquela música saia dentro de uma caixa? Quem diria que depois, passado uns anos, chegava a ser eu também a falar para quem me ouvia dentro da caixa. A rádio é tudo na minha vida. Era como continua a ser, mágico.”
Desde a música à informação, a rádio continua a ser um meio de entretenimento, escolhido por grande parte da população. A rádio é a companhia de muitos e, como afirma a locutora, Miriam Gonçalves: “Temos o dever de aconselhar, apresentar às pessoas coisas que valem a pena. A rádio continua a ter um papel muito importante nisso.” Miriam Gonçalves traçou o seu caminho aos 14 anos, quando um amigo lhe disse que tinha voz de rádio. A partir daí, o seu sonho mudou: “Nunca mais tirei isso da cabeça. Era um sábado, estávamos em Pombal. Nesse dia, decidi que queria fazer rádio. Sempre fui muito comunicativa, adorava comunicação, adorava rádio e eu pensei, é isto.”
O país ouvia o que o lápis não riscava
Em Portugal, muitos são os que lembram a rádio como uma aliada em que os espaços de ócio e lazer eram intercalados pelos noticiários informativos. Porém, nem sempre foi um meio de entretenimento livre. Em tempos de ditadura, as palavras proferidas ao microfone eram rigorosamente controladas pelos censores e pela polícia política.
O “lápis azul” riscava todo o tipo de manifestações ideológicas, políticas ou culturais que fossem entendidas como uma oposição ao Governo. Joaquim Furtado, figura emblemática da informação em Portugal, explica como funcionava a censura: “No Rádio Clube Português, os noticiários eram sujeitos à Comissão de Censura (Exame prévio), assim como na Renascença. Os programas pré-gravados tinham de ser ouvidos antes de serem emitidos, por uma Comissão de Fiscalização, que depois decidia o que se cortava, o que ia para o ar.”
Portugal apresentava uma taxa de analfabetismo de 25,7% e poucas eram as casas que tinham uma televisão, tornando a rádio num dos meios mais acessíveis no país. Quem trabalhava na rádio tinha consciência da importância que o meio representava para as pessoas. Era possível ouvir notícias, programas humorísticos, músicas, radionovelas, e até mesmo relatos desportivos.
Cravos na rádio
Depois de 48 anos de repressão e censura, às 22h55, do dia 24 de Abril de 1974, na antena dos Emissores Associados de Lisboa, João Paulo Diniz colocou no ar, a música vencedora do Festival da Canção: “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, como sinal para as corporações que integravam o Movimento das Forças Armadas se prepararem para a Revolução. Pouco tempo depois, na Rádio Renascença passou “Grândola Vila Morena”, de José Afonso, como um sinal para avançarem. Durante a madrugada de 25 de Abril, o Grupo de Comandos n.º 10, ocupou o Rádio Clube Português, transmitindo o primeiro de vários comunicados.
Joaquim Furtado deu voz às comunicações ao país e relata alguns dos detalhes da inesperada emissão: “Cheguei à rádio, as pessoas foram saindo, ficaram as que estavam a fazer o programa. Cada vez havia menos gente. Fiz o noticiário das 03h00. Estava tudo normal. Quando estava a preparar o noticiário das 04h00, apareceu-me um militar à frente que fazia parte do grupo cuja missão era ocupar a Rádio Clube Português. Li o comunicado às 04h26. Esses comunicados tinham uma particularidade: diziam que estavam em curso um movimento militar, que pediam às forças militarizadas que não interviessem, que não se intrometessem no caminho dos militares; pediam às pessoas, aos funcionários hospitalares, assistentes e médicos para estarem disponíveis, caso acontecesse alguma coisa.”
Durante a madrugada de 25 de Abril, a rádio foi a emissora do Movimento, uma aliada da Revolução ao informar os portugueses do que se estava a passar no país e lançando apelos à população.
“E depois do adeus?”
Após a Revolução dos Cravos, deu-se a nacionalização de todas as rádios em Portugal, com exceção da Rádio Renascença. A Emissora Nacional passou a chamar-se Rádio Difusão Portuguesa (RDP) e, a partir daí, outras rádios foram surgindo em Portugal.
Fazer rádio apenas por gosto já não era uma realidade intrínseca à atividade e instituía-se o conceito de rádio como prestação de um serviço. A segmentação do público, em função da idade e interesses específicos, levou ao aumento da criação de rádios especializadas. As estações emissoras procuraram oferecer um produto que fosse ao encontro das expectativas dos ouvintes. Surgem, assim, rádios especializadas em música e outros temas. A rádio começou a apostar num formato próprio, de qualidade e com programação ao longo do dia, com frases pré-definidas, publicidade e jingles. As mudanças são notáveis e, na perspetiva de Miriam Gonçalves, a rádio continua a reinventar-se: “Nós continuamos, apesar de estarmos constantemente a ser atacados enquanto meio, a sobreviver porque reinventam-nos.”
O som do futuro
O pequeno rádio a pilhas está em processo de metamorfose. “Como será a rádio no futuro?” É uma questão que surge com o aparecimento de novas tecnologias e da própria inteligência artificial. Com o mundo digital, a rádio adaptou-se às novas características da sociedade e preferências dos ouvintes, reinventando-se dia após dia e promovendo a dinamização do entretenimento. Os podcasts são um bom exemplo da adaptação da rádio ao meio envolvente. Para Miriam Gonçalves a rádio continua a “sobreviver com a capacidade impressionante de se reinventar”.
Esta sobrevivência foi comprovada a 28 de abril de 2025. Um dia marcante para Portugal, que regressou a um passado sem eletricidade. Por incrível que pareça, a rádio sobreviveu e foi o único meio a iluminar os portugueses na escuridão. “A rádio que ouvimos no apagão não vai deixar de existir, vai continuar”, acredita Francisco Sena Santos.
Foi o único meio de comunicação que chegou de Norte a Sul do país, acolheu e reconfortou os mais ansiosos num momento que parecia não ter fim. Miriam Gonçalves considera que a rádio pode ser um poderoso escudo de defesa contra a dor: “As pessoas, quando ligam a rádio, têm de se sentir acolhidas e de sentir que é amor. O mundo está difícil e a rádio ajuda a esquecer o desgosto.”
Paulo Fragoso defende mesmo que “é o único meio que vai conseguir sobreviver a tudo o que possa surgir. Vai continuar ainda mais forte, já deu provas de que jamais morrerá”.
Carlos Andrade, também professor de Jornalismo na ESCS, é da opinião que “a rádio tem sabido tirar partido da vantagem das novas tecnologias. Não é que a rádio seja camaleónica, mas tem uma capacidade de adaptação. Tem virtudes de simplicidade de meios, tem uma agilidade, criatividade e, obviamente, jogo de cintura".
O futuro da rádio é promissor e Francisco Sena Santos revela as possibilidades quanto ao futuro deste meio de comunicação: “Se calhar, um dia, haverá uma rádio só para os políticos, outra só para quem trabalha na banca, uma rádio para os mais novos…”
Se o vídeo não matou a rádio nos anos 1980, ao contrário do que cantaram os The Buggles, a internet tão pouco conseguiu silenciar este meio de entretenimento e informação. Pelo contrário. Na era dominada pelas redes sociais, a rádio reinventou-se e continua a despertar o interesse dos mais jovens, quer como ouvintes, quer futuros profissionais.
“Vai ser sempre a crescer, está mais do que garantido. Os jovens têm o gosto pela rádio e querem fazer rádio”, acredita Francisco Sena Santos. Agora aposentado da docência, mas não da proximidade aos microfones, o histórico jornalista passou, durante décadas, o microfone para as mãos dos jovens. Ouvia, criticava, corrigia e apontava direções.
Nos meios de comunicação, muitos antigos alunos continuam a missão do seu mestre. E isso percebe-se na mesma entoação que se ouve através das ondas hertzianas. Por vezes, não é difícil adivinhar nessas vozes do jornalismo em quem foi aluno de Francisco Sena Santos ou de Carlos Andrade. O som do futuro já está no ar.
Beatriz Paula, 19 anos, é estudante do 2.º ano de Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS) - IPL (Instituto Politécnico de Lisboa). O mundo da comunicação sempre a fascinou e tem aproveitado ao máximo todas as aprendizagens para crescer no universo da informação. Através de projetos extracurriculares da instituição onde estuda, consegue exprimir a sua paixão por comunicar e adquirir experiência para o futuro. Apesar estar a iniciar apenas o 2.º ano da licenciatura, tem assumido diversas funções de elevada responsabilidade, como a coordenação de recursos da ESCSFM, meio em que também é locutora, assim como as rubricas “Bastidores” e “Made It”, do E2, com emissão na RTP2, além de integrar a redação do “Ponto de Vista ESCS”. É igualmente promotora do IPL com a iniciativa Inspiring Future.
Mafalda Nora, 19 anos, frequenta o 2.º ano da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL). Descobriu a sua paixão pela comunicação no final do ensino secundário e, desde então, tem procurado construir um futuro na área, movida por uma forte vontade de exercer um papel positivo e marcante na sociedade.

