Reportagem TSF. Encurralada entre ETAR a céu aberto e estrada sem saída, a Curraleira não se revê na luz de Lisboa
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"A polícia, quando vem fazer intervenção, quando vem fazer revistas, rebenta com tudo." Esta é apenas uma das muitas queixas que os moradores da Quinta do Lavrado, em Lisboa, têm sobre as condições em que vivem.
As rusgas, na maioria dos casos, devem-se às operações de combate ao tráfico de droga e foram elas que levaram a que o lote 2 do bairro ficasse sem porta há mais de um ano.
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Carla Alves, da associação de moradores, vivia no bairro da Curraleira e foi realojada na Quinta do Lavrado. É ela que guia a TSF pelo prédio.
"Não tem campainhas, não tem portas. Portanto, também não precisamos de campainhas, faz algum sentido. As caixas do correio são constantemente rebentadas. Não existe a porta dos contadores nem da água. Não tem luz, não tem elevadores, quadros da eletricidade estão assim. Conforme nós temos acesso, qualquer criança tem acesso", descreve a moradora.
Apesar de lá fora o sol ainda ir alto, a escuridão apodera-se do momento mal se entra no hall. É mesmo preciso ligar as lanternas. Nenhum dos dez prédios do bairro tem elevador a funcionar e o lote 2 não é exceção. Este, garante Carla, ficou inutilizado pela polícia.
"Foi destruída a casa das máquinas e, pelos vistos, não há previsão para meterem aqui elevadores. Diz que há uma empreitada para fazer cá, mas, quando eu pergunto quando: 'Pois, não sei'."
"Lixo por todo o lado"
Boa parte dos 260 apartamentos do bairro estão sobrelotados, mas esse nem é o maior problema, pelo menos aparentemente.
"Há apartamentos em que entra água. Há outros que estão cheios de humidade. Há outros que as paredes são todas rachadas. Agora temos aí um problema grande da bicharada, dos percevejos e das baratas, devido à falta de limpeza. O lixo, com o vento, vai todo por aí abaixo e concentra-se todo. É lixo por todo o lado", conta João Raimundo.
Na rua, o lixo acumula-se um pouco por todo o lado e atrai vizinhos indesejados: "Os ratos e outros bichos."
João também vivia no bairro da Curraleira, como Carla, antes de se mudar para a Quinta do Lavrado. Chegou há 23 anos e garante que os prédios da empresa municipal Gebalis nunca tiveram manutenção: "São todos assim, com essas rachaduras todas. Os prédios estão todos a ceder."
Apesar de estar no centro de Lisboa é um bairro sem saída, mas também não é fácil chegar até aqui. O único autocarro que serve o bairro operário só funciona entre as 06h00 e as 21h00. A avenida Marechal Costa Gomes acaba aqui nuns blocos de betão. A obra está por acabar há mais de 20 anos e, se já estivesse feita, teria tapado a ETAR que fica paredes meias com as casas.
"A famosa piscina do Lavrado a céu aberto. O cheiro às vezes é nauseabundo. Nem dentro de casa a gente consegue estar com o cheiro. Há patos e tudo na piscina", refere João.
"Isto está feito para ser um sítio escuro"
Numa cidade que se exalta com a luz, há quem não tenha direito a ela: "Isto está feito para ser um sítio escuro. Não está feito para ser uma coisa clara, bonita, airosa. Isto está estudado para ser assim."
Poucos candeeiros funcionam e "os que funcionam são foscos". A maioria "não tem luz, sequer". A mercearia social do bairro está fechada quase desde o mesmo dia em que foi inaugurada, há cinco anos. O supermercado mais próximo localiza-se a um quilómetro, no cimo da encosta. Os únicos serviços de porta aberta no bairro são um café e uma creche. E, por falar em crianças, num dos pátios estão as marcas de um parque infantil. Mas só se veem mesmo as marcas.
"Tinha duas molinhas daquelas pequeninas e um escorrega. Para nós, que viemos de um bairro de barracas, obviamente que quando somos colocados aqui e há ali brinquedos que eles nunca viram e não tinham acesso... Claro, eram miúdos a mais, o brinquedo era a mais e a utilização era a mais", lembra Carla.
Os brinquedos cederam há mais de 20 anos e o parque foi desmantelado: "Já não temos direito a mais nada. As crianças de hoje não merecem ter parque infantil."
Flávio Almada, porta-voz do movimento Vida Justa, acompanhou a visita e conhece bem a realidade dos bairros sociais da região lisboeta.
"Não queremos só andar na cidade a trabalhar e a servir. Queremos também ter espaços de lazer, onde as crianças podem brincar, onde os nossos idosos podem jogar às cartas. Pessoas que trabalharam toda a sua vida, trabalhámos durante a Covid, fizemos a cidade funcionar", argumenta.
E deixa alguns avisos a quem tem o poder de decidir: "Parece que os bairros não têm direito a participar na vida política. É bom que não venhamos a habitar na geografia do medo. Querem-nos tirar o direito a sonhar e isso não pode acontecer."
