Reportagem TSF. Kiev viu Marcelo, mas só de relance
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Estradas cortadas, sirenes ligadas e uma agenda sempre em aberto. O furacão Marcelo passou esta quarta-feira por Kiev. O dia começou cedo em Bucha, foi lá que foram encontradas várias valas comuns com centenas de corpos. Ainda antes do final da manhã, Marcelo Rebelo de Sousa já tinha uma certeza.
"Se o sentimento de orgulho nacional ucraniano já era forte, pois, a invasão tornou-o em muitíssimo mais forte", disse o Presidente da República português aos jornalistas presentes na capital ucraniana.
O Presidente da República depositou uma coroa de flores junto a um memorial às vítimas, construído há cerca de um mês no local onde foi encontrada uma vala comum com mais de 120 corpos. A vala comum foi aberta nas traseiras da igreja de Santo André. Lá dentro, a comitiva que inclui os políticos Pacheco Pereira visitou uma exposição fotográfica com várias imagens que mostram a exumação desses corpos. A brutalidade das imagens não deixou ninguém indiferente.
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"Nós que retivemos pela televisão ou por aquilo que foi escrito, pelas imagens que tivemos aquele choque inicial, passado este tempo todo, concluirmos que não perdeu força esse choque inicial. Podia ter perdido", considera o chefe de Estado.
Antes de partir de Bucha, o Presidente da República ouviu ainda um pedido do procurador-geral de Kiev. O magistrado quer levar por diante um processo até ao Tribunal Penal Internacional, para julgar crimes de guerra que ali tenham sido cometidos. O presidente, com o ministro português dos Negócios Estrangeiros ao lado, rapidamente prometeu ajuda e aproveitou para elogiar a procuradoria geral portuguesa.
"Justiça tardia não é justiça", acrescentou Marcelo Rebelo de Sousa. Depois partiu rumo à segunda paragem do dia: Moshchun.
Foi nesta vila, em tempos a primeira linha na defesa de Kiev, que Marcelo Rebelo de Sousa se tornou no primeiro chefe de Estado estrangeiro a entrar numa trincheira ucraniana. Esta foi a primeira quebra de protocolo da visita do Presidente da República à Ucrânia. "É como a Primeira Guerra", declarou ao sair.
"Ao que dizem 50, 60, 70 pessoas rapidamente construíram as trincheiras. E resistirem por um lado, por outro lado, ripostarem, que nos faz lembrar, a mim fez-me lembrar, o que era fazer guerra, há mais de 100 anos", explicou o chefe de Estado português, assegurando que "só faltavam as máscaras de gás".
A deposição de coroas de flores foi uma constante das visitas do Presidente da República. Mas antes de sair de Moshchun, Marcelo Rebelo de Sousa não resistiu a uma nova atração bem perto da trincheira. Lado a lado com João Gomes Cravinho, os dois responsáveis portugueses sentaram-se numa espécie de poltronas e colocaram óculos de realidade virtual para assistir em diferido à batalha de Kiev.
Mas nem o calor que esta quarta-feira se fez sentir em Kiev fez abrandar o passo da comitiva presidencial ou, pelo menos, o do Presidente da República.
A terceira paragem do dia estava logo ali ao lado, Horenka. É também lá que está uma famosa pintura do artista de rua Banksy. Num prédio que perdeu a fachada, o britânico desenhou um homem sentado numa banheira. O prédio será reconstruido, mas as autoridades locais garantem que a pintura que Banksy, agora protegida por um acrílico, não vai sair do sítio. O chefe de Estado congratula-se com o papel da arte na vida dos que ficaram.
"É como se a vida tivesse sido cortada ao meio. Foi isso que aconteceu na noite de 24 de fevereiro", comenta Marcelo, rendido a platicidade da Obra. Para surpresa da segurança ucraniana, Marcelo Rebelo de Sousa arrisca entrar pela porta do que resta do edifício, mas sai rapidamente. À saída, o Presidente encontra-se com uma sobrevivente e, com a ajuda de uma intérprete, distribui afetos.
Marcelo questiona: "Quantos anos tens?" A senhora responde que tem 73, ao que o Presidente da República replica imediatamente. "Quase a minha idade. Eu tenho 74", afirma e a ucraniana, entre risos, diz que "é bom". Para a despedida, Marcelo agradeceu e desejou "uma longa vida e em paz". "Obrigado", termina a habitante local.
À saída de Horenka, a caravana portuguesa cruza-se com outra comitiva oficial que mostra ainda mais aparato. As visitas de Estado estão em alta por estes dias, nas zonas mais próximas a Kiev que sofreram a ocupação russa nos primeiros meses da guerra. Um dado que ajuda a explicar a brevidade das visitas: nunca mais de 30 minutos em cada ponto e pouco mais de 10 minutos são gastos nas deslocações ou entre paragens.
Com a manhã chega a vez da ponte de Irpin. O Presidente da República ouve, com atenção, as explicações dadas pelo líder da resistência nesta cidade. O homem explica com detalhe as manobras feitas para defender Irpin e é em cima da ponte que Marcelo Rebelo de Sousa é alertado para uma ligação de Irpin a Portugal. Ali perto, vai abrir, em setembro, um infantário financiado pela Câmara Municipal de Cascais.
Quando abrir, "será o melhor da região", explica o autarca, enquanto mostra, num telemóvel, fotografias da obra. O chefe de Estado não esconde o entusiasmo com o que vê. "É longe?" pergunta. Marcelo sorri ao ouvir a resposta: um quilómetro.
"Gostava muito de lá ir. Talvez possamos lá ir", arrisca o Presidente da República. Mas, desta vez, as intenções de Marcelo batem na intransigência da segurança e a comitiva parte pouco depois a grande velocidade para Kiev. Em Kiev, pela primeira vez no dia, o Presidente não fala com os jornalistas. Marcelo presta homenagem aos soldados ucranianos mortos na guerra.
A caravana para para almoçar, ou quase
As agendas das figuras de Estado que visitam Kiev são muitas vezes secretas, mesmo para quem integra as comitivas. A isto, Marcelo Rebelo de Sousa junta outros condimentos, como dinâmica e surpresa. Nesta quarta-feira quem acompanhou o Presidente viu a pausa do almoço interrompida quase abruptamente. Marcelo Rebelo de Sousa decidiu acrescentar um novo ponto à agenda: a visita à exposição Ucrânia crucificada.
Está no Museu da História da Ucrânia na II Guerra Mundial. O edifício fica mesmo ao lado da estátua da mãe pátria, que há poucos dias perdeu o escudo soviético para ganhar o tridente ucraniano. Também o museu deve mudar de nome e passar a chamar-se Museu da Independência.
Lá dentro, Marcelo Rebelo de Sousa vai ouvindo as explicações sobre as fardas, documentos, botas, e todo o tipo de troféus de guerra confiscados ao exército de Putin. "É um museu único", exclama. A visita é breve. Na caravana de Marcelo corre agora um novo rumor: o Presidente quer ir ao mercado de Kiev.
A proximidade da hora marcada para o início da Cimeira da Crimeia fazem o plano cair por terra, mas definitivamente as dez horas de viagem num comboio entre a fronteira polaca e Kiev não deixaram marcas em Marcelo Rebelo de Sousa: "Visitei outras delegações oficiais que também estavam a bordo. Trabalhei e descansei. É confortável."
Quando se preparava para abandonar o edifício onde decorreu a cimeira, a delegação portuguesa foi barrada pelas sirenes que alertam para ataques aéreos, mas o chefe de Estado garante que não teve medo. "As coisas são como são", atira.
Antes de fechar a agenda pública do dia, o protocolo da Presidência anuncia que o embaixador de Portugal em Kiev, António Machado, vai receber as insígnias de Grande-Oficial do Infante D. Henrique, "uma surpresa até para o próprio embaixador", explica Marcelo.
*com Rui Oliveira Costa
