Uma academia de direitos humanos numa aldeia do nordeste transmontano muito desertificada e envelhecida, à imagem de muito do interior do país. Mais de uma dezena de estudantes, um trio de professores e uma associação local (ATPD) fizeram um trabalho imersivo e fazem propostas de políticas públicas
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Teresa Martins é professora na Escola Superior de Educação do Porto e investigadora do Centro de Investigação e Inovação em Educação. Sentada num banco de jardim à porta da Junta de Freguesia de Samões (Vila Flor), ao lado do centro social onde decorrem os trabalhos da Academia de Direitos Humanos promovida pela Associação Transmontana Pelo Desenvolvimento (ATPD), diz à TSF que "é importante falar com os jovens sobre as questões do envelhecimento em todo o lado".
Mas não só com os jovens. "É importante falar com toda a gente sobre a questão do envelhecimento, porque a questão do envelhecimento é uma questão que nos diz respeito a todos e a todas. Numa aldeia muito envelhecida, talvez isto ganhe ainda mais expressão, seja ainda mais significativo para também podermos tentar restabelecer, reforçar ou alimentar redes de solidariedade que possam ainda existir."
Idadismo não acontece só no interior do país
Será o envelhecimento e os problemas que daí decorrem um fenómeno essencialmente do interior também acontece no litoral do país? "O problema do idadismo, dos estereótipos e dos preconceitos ou até da violência contra os mais velhos é generalizado, não é um problema só do interior, é um problema que acaba por ter características diferentes conforme os contextos onde estamos."
Para Teresa Martins, "o diálogo intergeracional que tem que ser trabalhado desde o início. Falta uma educação para o envelhecimento, educar para o envelhecimento significa aprendermos que as pessoas mais velhas precisam de mais tempo, por exemplo, para subir para o autocarro, e que não podemos começar a reclamar com elas porque estão a demorar mais tempo a subir com autocarro, significa que não podemos tratar as pessoas como se fossem bibelôs. E isso acontece nas cidades, acontece nas zonas rurais, acontece em todo o lado, talvez nas zonas rurais as pessoas até resistam mais a isso porque vão mantendo mais possibilidades de ser mais autónomas, porque têm se calhar mais espaço para circular, têm outras redes de sociabilidade".
Para a investigadora e professora da Escola Superior de Educação do Porto, "muitas vezes é preferível as pessoas, quando já estão numa situação em que não conseguem estar autonomamente, pode ser muito melhor estarem em instituições onde, apesar de tudo, há recursos e pessoas que podem cuidar delas, do que muitas vezes com as famílias que não têm de facto, recursos para o fazer".
"Não creio que seja por mal, claro que há situações de violência. Há situações dramáticas, mas que são outro patamar. Não estamos a falar dessas, estamos a falar das situações em que as pessoas fazem o melhor que podem, mas o melhor que podem não é suficiente quando se tem uma pessoa muito dependente, que precisa de muito apoio e que muitas vezes os próprios cuidadores informais, quem está a cuidar, também já não tem capacidade para fazer aquele trabalho. É um trabalho fisicamente muito difícil de cuidar de uma pessoa dependente, é fisicamente difícil e emocionalmente extremamente esgotante", afirma Teresa Martins.
E o que dizem os jovens que protagonizaram esta Academia? A Márcia tem 20 anos e é estudante de sociologia na Universidade do Porto: "Sou de Marco de Canaveses e esta semana tem sido uma experiência interessante porque além de aplicarmos técnicas de sociologia, aplicarmos técnicas de design que é uma novidade para mim, e estamos a fazer um projeto de uma forma muito diferente do que eu estou habituada".
Márcia assume que aquilo de que está "a gostar mais é do contacto com as pessoas mais velhas aqui da aldeia e de perceber como é que se forma esta identidade da freguesia de Samões". É das mais novas do grupo e Guilherme é, entre os estudantes, claro, o mais velho: "Tenho 43 anos, estou a tirar mestrado em design de produto na Universidade do Minho. Acho que foi uma semana muito produtiva, uma oportunidade de colocar em prática aquilo que se aprende dentro da sala de aula e de promover a integração entre os diversos agentes da Comunidade, sejam as autarquias, as associações e a própria Comunidade."
Um dos primeiros passos para mudar o rumo das coisas, pensa a investigadora Teresa Martins, é "tomarmos consciência de que o idadismo existe".
"Há direitos das pessoas que estão a ser violados por conta da sua idade. Isto tem que ser dito com toda a todas as letras. E as pessoas são muitas vezes inibidas de tomar decisões sobre a sua própria vida e não é certo, não é justo e não pode acontecer. O fator idade não pode ser apontado como a primeira razão para qualquer tipo de decisão, seja a decisão sobre uma intervenção médica, seja a decisão sobre o que a pessoa pode ou não pode fazer ou até a hora até à qual pode ou não pode estar fora de casa". Porque, no entender da académica que foi uma das dinamizadoras desta Academia em Samões, Vila Flor, "uma pessoa com 60 anos pode estar, em algumas circunstâncias, mais fragilizada, uma pessoa com 50 pode estar muito mais fragilizada do que alguém com 75 ou 80. É preciso ouvir mais, é preciso ouvir mais os mais velhos e aquilo que eles realmente querem para si, para a sua vida, o que os faz viver e o que os faz vibrar".
Saber ouvir, o respeito e uma Convenção para os direitos dos mais velhos
Porque ouvir mais é respeitar mais, no fundo? "Absolutamente, claro, respeitar mais, respeitar é fundamental e sempre deve ser sempre a premissa de base em qualquer relação, seja ela intergeracional, seja ela intrageracional, seja ela entre pais e filhos, seja ela entre netos e avós, seja entre marido e mulher, entre marido e marido, entre o que for, portanto, as pessoas têm de se respeitar, têm de ter a humildade de aceitar que a outra é diferente e que pode ter opiniões diferentes."
Faz falta uma Convenção para os direitos das pessoas mais velhas? "Faz muita falta, é muito importante e eu espero que venha a acontecer em breve. Há um grupo das Nações Unidas para o envelhecimento que tem vindo a trabalhar ativamente para que possa vir a existir uma Convenção dos direitos das pessoas mais velhas e, aliás, Portugal tem vindo a ter um papel muito importante nesse domínio e acho que é muito importante também que se fale sobre isso."
Afonso tem 22 anos e é estudante de sociologia: "Acho que o trabalho que foi feito aqui durante esta semana foi muito importante para percebermos como é que vivem as populações mais envelhecidas, nomeadamente no interior e nas aldeias que estão cada vez mais desertificadas, onde também são fundamente afetadas por problemas estruturais do nosso país e do nosso território. Além disso, acho que estamos a ganhar ferramentas muito boas para conseguirmos entrar em contacto direto com as pessoas e acho que são ferramentas muito importantes, principalmente para quem vai trabalhar na área social."
Espanhola de Alambra, perto de Granada, Lucía é estudante de design de produto no polo de Guimarães da Universidade do Minho: "Temos conseguido perceber como realmente é a rotina da gente local. É sobretudo fazer uma experiência imersiva e faz compreender também muito melhor os problemas." Lucía lamenta a falta de presença de algumas instituições locais durante os trabalhos da academia, o que "faz aumentar a preocupação com a população".
A socióloga Cristina Parente, professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, na hora do adeus a esta Academia de Direitos Humanos em Samões, diz que se sai "mais enriquecido e de coração cheio", e que estas "oficinas residenciais são banhos de realidade". A socióloga não tem dúvidas: "Cumprimos uma parte que é deixar as sementes. Precisamos que o poder local e que os atores institucionais, quer as juntas de freguesia, quer as misericórdias, quer o próprio tecido empresarial ajudem a fazer este trajeto de inverter este caminho depressivo."
O entusiasmo dos estudantes e dos habitantes locais, nomeadamente, mulheres com mais idade, não exigiria uma maior participação dos atores políticos locais?
"Claro, essa é a grande falha, não é? Nós tivemos aqui as populações sempre bem representadas e participaram em tudo o que lhes foi pedido, foram, aliás, participando numa curva ascendente desde o início da semana até. A grande ausência é, nos momentos de partilha e de validação das próprias soluções apresentadas, dos representantes locais e de organizações que é sempre difícil mobilizar, porque está cada um na sua quinta e muitas vezes com grandes dificuldades de interação. E grande parte dos projetos que nós hoje apresentámos aqui são projetos que implicam mobilizar várias parcerias e vários atores. E isso é uma falha e é uma coisa que, consecutivamente, se tem vindo a verificar no interior."
Prossegue Cristina Parente: "Por exemplo, um dos grandes atores locais e sabendo nós que a misericórdia e a Câmara Municipal são os dois grandes ativos económicos, são os dois grandes empregadores, seria desejável que tivéssemos aqui os técnicos da ação social, os técnicos de emprego, os próprios técnicos da Misericórdia, se é que eles existem, para ouvir estas soluções, até porque é, digamos, sangue fresco, não é? Quando vêm assim 10 jovens trabalhar e com um olhar exterior para uma região que é uma região deprimida, provavelmente, estas organizações teriam. Vantagens em ouvir o que há para dizer."
Maria tem 22 anos e vai estudar Gerontologia Social no mestrado. Assume ter vivido "uma semana muito enriquecedora de conhecimentos" e lembra a importância das especificidades. "Cada território é um território, que tem dimensões diferentes e características diferentes."
O último dia foi um dia de abraços, beijos, promessas de não esquecimento numa Terra de gente esquecida, numa Terra cortada por uma estrada que a dividia ao meio e pelos carros que passam em excesso de velocidade. Como afirma Parente, os habitantes desta aldeia "são pessoas que precisam de mimos, são pessoas que precisam de um abraço e muitas vezes essas instituições nem sequer têm isso para dar".
Será este um projeto replicável para tantas e tantas Samões por esse país fora? Cristina Parente pensa que sim: "É possível em qualquer lugar, dê-se voz a estas minorias mais vulneráveis. E empodere-se, porque se elas não se sentirem integradas e não se sentirem empoderadas e acolhidas nas suas ideias, dificilmente avançam."
A Carolina tem 22 anos e é de Oliveira do Bairro. Estuda no Porto no mestrado em Sociologia e julga que, enquanto futura socióloga, "esta semana também foi bastante importante, uma vez que foi possível não só acompanhar um grupo de pessoas que moram numa aldeia, que é um contexto bastante diferente do que eu estou habituada a presenciar e também a estudar, mas também no sentido de conhecer o que é essa realidade, perceber as suas preocupações e de construir dinâmicas e propostas que possam efetivamente mudar e a apoiar o que é o processo de envelhecimento".
Margarida conhece bem a terra, é de Vila Flor e tem 22 anos. É a única nativa local entre os estudantes que participam na Academia: "Estou a terminar a licenciatura em direito. Para mim, esta semana foi uma experiência incrível, um bocadinho fora da minha área. Mas uma experiência que, com certeza, me enriqueceu a mim e também àqueles com quem tive a oportunidade de contactar, nomeadamente as pessoas mais idosas, mais isoladas. Tenho a dizer que foi uma das melhores semanas de sempre."
Aurora Sil também gostou bastante: "Gostei muito, muito, muito. Foi uma semana espetacular. Eu disse-lhes: 'Se os meninos gostaram tanto de estar em Samões como eu gostei de os cá ter, maravilhoso também'. Nós ficamos maravilhadas com eles". E das ideias que surgiram aqui? "Eu acho que foi muito bem. Foram todos muito bons projetos, mas certos projetos foram mais votados, até porque tem a estrada quanto às lombas e ir à escola, etc. A estrada é um perigo muito grande. Já houve aqui quatro mortos na aldeia."
Com os professores Cristina Parente e Bernardo Providência vamos, estrada acima, à procura de umas iguarias da terra antes de partir. A dona Teresa faz queijos, o marido Valter foi empresário agrícola e hoje, já reformado, continua a ser pastor. “Antigamente, o meu marido era o rei do cereal, o maior semeador de trigo era o meu marido”. Valter puxa a conversa para a política: “O nosso Governo apoia pouco, seja na pecuária, seja na agricultura. E, ao apoiar pouco, as pessoas desistem porque os fenos subiram, o gasóleo não se fala, os adubos no meu tempo eram de 50 kg, agora é de 20 kg. E custa mais do triplo que custava 50kg na altura."
Valter chegou a ter 45 hectares de campos, mais de quatrocentas ovelhas, fabricavam cerca de vinte queijos por dia. Agora fazem três ou quatro. E falta gente para trabalhar. O que não faltam são as regulamentações por causa das questões ambientais e, claro, os drones, que agora tudo fiscalizam. Valter conta a história de alguém que estava a usar maquinaria não prevista na lei e, quando chegou a casa, já lá estava a multa para pagar: “250 euros, pagos na hora."
Duas jovens participantes na academia vão buscar a dona Delina a casa. Fazem questão que a senhora possa assistir à apresentação dos resultados e às propostas de projetos, uma vez que “esteve sempre connosco e, de algum modo, também foi ela que nos apresentou a aldeia”. Delmina promete que se junta ao grupo, “mal regue as plantas”.
Dinamizadora de toda esta academia, a socióloga Rita Madeira, também de Vila Flor, trabalha no Observatório Social de Vila Nova de Gaia e no Instituto Sociologia da Faculdade de Letras. "Eu acho que o que fica mais marcante é efetivamente o envolvimento das pessoas daqui da aldeia."
A socióloga afirma que "é preciso ultrapassar um bocadinho aquele estereótipo e preconceito que temos de que não vale a pena fazer aqui nada, que as pessoas já desistiram e que estão todas muito deprimidas e isso não é verdade".
É tempo para encontrar Bernardo Providência, professor de design na Universidade do Minho e aquilo que mais o marcou nesta academia: "É uma experiência efetiva daquilo que é o trabalho em termos de território, ou seja, com as comunidades. Uma das coisas que nós temos com os alunos é que trabalhamos muito com uma série de conceitos, metodologias e muitas vezes é difícil trabalhar em termos de território. Por outro lado, uma outra parte do exercício que me parece extremamente importante é o trabalho que fazemos, um trabalho co-participativo, co-criativo, que quer dizer que chegamos às comunidades. E trabalhamos com as comunidades, não trabalhamos para as comunidades. Normalmente, estamos habituados a ouvir falar de design muito mais associado ao design gráfico e comunicação, ou então àquilo que é o design de produto, mas desde os anos 90 que têm vindo a trabalhar numa área que se chama de design de serviços."
Providência afirma que uma das grandes vantagens que existe em trabalhar com a sociologia e com os alunos da sociologia é que, "normalmente, vêm muito bem preparados para fazer ações como diagnóstico ou um trabalho a anterior, que tem a ver com criar uma dimensão extremamente forte sobre aquilo que são as populações e as suas atividades, mas normalmente têm alguma dificuldade em tornar este exercício um exercício prático e criar soluções ou apontar soluções aplicadas".
Os alunos de design, de uma forma geral, "trabalham por projeto e, por isso, trabalham muito vocacionados para criar soluções rápidas em contextos reais", refere o professor de Design. Neste caso, a união faz a força, educação social, sociologia e design ficam bem casados.
Mas as propostas que saíram daqui serão propostas que, de alguma forma, refletem essa partilha de conhecimentos diversos? "Uma das questões mais importantes, que, eventualmente, podia ser trabalhada com esta comunidade, era tão-só criar espaços comuns para que as pessoas pudessem dançar. Ou partilharem livros, trabalharem juntas, comunicarem juntas."
A presidente da Associação, Ana Correia, entende que a Academia correspondeu às expectativas: "Em termos de participação da população foi excelente. Acho que as pessoas estiveram bem, participaram e receberam muito bem. Os jovens que estiveram aqui estiveram envolvidos e felizes. E depois acho que, em termos de projetos, muitos tiveram muito boa votação. Portanto, acho que sim, as pessoas participaram e escolheram e tiveram oportunidade de escolher."
O sorriso ajuda sempre a viver de outra forma, especialmente quando a idade já não vai ajudando, como se percebe das palavras de Aurora Sil: "A vida já é um bocadinho mais injusta às vezes, e a gente também vai perdendo a alegria."
No adeus da Academia de Direitos Humanos a Samões, novos e velhos unidos em dança de roda, erguendo futuros mais harmoniosos, especialmente para quem já teve muito passado, e vozes mais ou menos afinadas em torno de canções que possam ser ainda, também mais ou menos, património comum de uma aldeia que quer saber envelhecer.
"A terra que me viu nascer
Lembro-me de um menino que andava sozinho
Sonhava vir um dia a ser
Sonhava ser cantor de cantigas de amor
Com a força de Deus venceu
Dessa pequena aldeia o menino era eu
E hoje a cantar
Em cada canção trago esse lugar no meu coração
Criança que fui e homem que sou, e nada mudou
E hoje a cantar não posso esquecer
Aquele lugar que me viu nascer"
in Sonhos de Menino (Tony Carreira)