Reportagem TSF. Samões, Vila Flor: a aldeia que quer saber envelhecer (primeira parte)
Uma aldeia muito envelhecida, como todo o nordeste transmontano. Uma Academia de Direitos Humanos promovida pela Associação Transmontana Pelo Desenvolvimento juntou mais de uma dezena de estudantes e para, com a população local, "poços de sabedoria", encontrar soluções para melhorar a vida em Samões. Reportagem TSF
Corpo do artigo
A ideia surgiu antes de lá ir. Foi, meses antes, no fim de um debate no Coliseu do Porto sobre refugiados e migrações. Fui abordado por Ana Correia, que me falou numa Academia de Direitos Humanos no nordeste transmontano: "É um modelo misto de escola, investigação, partilha e aprendizagem. E que vai, portanto, levar a Samões, que é uma aldeia no concelho de Vila Flor, 11 jovens universitários e três professores universitários. Mais a equipa toda da associação, claro, que também vai estar envolvida. Esta academia, em particular, tem um lema: Aldeia Que Sabe Envelhecer; portanto, o tema central é o envelhecimento."
Samões, 338 habitantes pelo censo de 2021, é uma aldeia do município de Vila Flor e fica a poucos quilómetros do centro da vila. É cortada ao meio por uma estrada nacional onde os carros passam demasiado depressa e onde já morreu gente atropelada. Mas o que mais mata em Samões, a aldeia que quer saber envelhecer, o que aqui mais mata é mesmo a solidão.
O contexto de uma Academia numa terra envelhecida
A reportagem da TSF foi acompanhar os trabalhos de uma academia de direitos humanos em Samões, um projeto que é modelo misto de escola, investigação, partilha, aprendizagem. A iniciativa foi batizada "Uma Aldeia Que Sabe Envelhecer", empreitada de esforço e vontades reunidas pela Associação Transmontana pelo Desenvolvimento (ATPD), presidida por Ana Correia: "Nós temos uma parceria com a Faculdade de Letras do Porto, com o Instituto Sociologia da Universidade do Porto; já desde o início da fundação da associação que estão cá representados. Vamos ter uma professora de lá, a professora Cristina Parente; temos também uma parceria com o professor Bernardo Previdência, que é da Universidade do Minho, da área do Design e temos a Professora Teresa Martins, que é da ESE (Escola Superior de Educação) do Instituto Politécnico do Porto."
Os participantes na Academia são estudantes de educação social e de sociologia, mas de design e de direito: "Temos uma aluna de direito aqui do concelho de Vila Flor. O município tem um protocolo com os estudantes universitários, em que eles recebem uma bolsa e depois têm de fazer horas comunitárias. Portanto, esta estudante vai fazer essas horas connosco", explica-me Ana Correia no arranque dos trabalhos, à porta do centro cultural, mesmo em frente aos paços do concelho.
Uma original academia numa região onde o envelhecimento da população é, mostram os números oficiais, um problema muito sério. A presidente da ATPD, que já foi candidata autárquica pela CDU, refere que "o índice de envelhecimento, o número de idosos por 100 jovens em Portugal, em 2021 estava em 182, em Vila Flor estava em 400. Portanto, nós temos um concelho de Vila Flor com cerca de seis mil habitantes. Samões, uma aldeia que tem 340, não chegava a isso nos censos e, portanto, é uma aldeia envelhecida, sim".
O município liderado pelo social-democrata Pedro Lima reconhece o diagnóstico. O autarca explica a importância da Academia e o que a câmara que dirige tem podido fazer: "É muito importante e faz todo o sentido em Vila Flor, porque temos 50% da nossa população acima dos 65 anos e vivemos numa sociedade que já não envelhece naturalmente, atrever-me-ia a dizer. Ou seja, antigamente os avós viviam com os netos e envelheciam passando o seu conhecimento, as suas experiências. E a nossa comunidade fortalecia esses laços pessoais e familiares de uma forma natural. Hoje em dia já não acontece isso, porque as carreiras profissionais levam muitas vezes os nossos jovens para fora, para longe e já não há essa relação de proximidade que existia entre as gerações."
Os filhos, entretanto, foram embora e os netos já não estão e, muitas vezes, já nem nasceram nestas aldeias de um interior, e particularmente de um nordeste transmontando, desertificado.
Para o autarca, "esta atividade, Uma Aldeia Que Sabe Envelhecer, é vir a dar essa noção, essa proximidade com essas pessoas. É, de certa maneira, dar-lhes uma mensagem que são úteis e mostrar-lhes que todo o conhecimento que adquiriram e que acumularam ao longo de décadas de uma vida, tem toda a pertinência, utilidade e os valores também".
Pergunto ao edil se espera que estes estudantes universitários, que estão a participar nesta iniciativa, possam também ajudar o município a ter soluções ou a acolher propostas inovadoras sobre como melhor cuidar dessa geração mais velha: "Sem dúvida. Portanto, no fim desta Academia, vai ser produzido um relatório que será, com certeza, uma base de trabalho e tem de o ser; como vai ser também uma forma inovadora de fazer esta aproximação. Ou seja, os jovens universitários irão aproximar-se dessa geração mais velha de uma forma autónoma. E vai ser uma visão totalmente imparcial."
Não estará lá ninguém da câmara em cima deles, no contacto dos estudantes com os mais velhos? "Exatamente. Não vai estar ninguém de cabelos brancos, digamos assim, a supervisionar ou condicionar o seu trabalho."
No fim de tarde da véspera do arranque dos trabalhos, os participantes passeiam pelo centro histórico da vila: à porta do museu, junto à igreja, passando pelo forno tradicional que ainda hoje faz pão todas as manhãs, a fonte romana que desse tempo tem pouco, a escola secundária com muito menos alunos que há apenas dez anos. Somos recordados que, por aqui, foi filmado Tentação, o filme de 1997, realizado por Joaquim Leitão, com Joaquim de Almeida, Cristina Câmara e Diogo Infante, produzido por Tino Navarro e com música dos Xutos & Pontapés.
O líder do município de Vila Flor diz apostar em cuidar dos que cá estão. Afirma que é uma obrigação, mas também uma oportunidade. Desabafa Pedro Lima:
"Quando eu tinha a idade destes jovens universitários que agora aqui estão em Vila Flor para desenvolver esta Academia, eu jamais pensaria que seria possível haver guerra na Europa e no mundo de uma forma que hoje é tomada como natural. Portanto, não podemos habituar-nos a olhar [para] isso como natural. Por isso, enquanto que temos força e determinação, iremos investir sempre junto dos mais velhos e chamá-los ao nosso meio para aprendermos com eles."
O presidente da câmara sabe bem do tesouro que é ter os avós por perto em terras como Vila Flor, uma vez que "são poços de sabedoria e minas de riqueza por explorar". O vivido para contrapor ao tempo da sociedade da desinformação, sublinha o autarca: "A nossa grande base de informação, por vezes é uma desinformação. Os meios digitais e canais, por vezes, nem são certificados e nem são afiançados por ninguém, por nenhum nome. E, antigamente, nós recebíamos muita informação, muitos exemplos de vida, muitos conselhos por parte dessa geração que hoje em dia, perdoe-me a expressão, está um pouco colocada de parte na nossa sociedade."
E o papel mais importante que eles teriam para desempenhar, "que era passar esses valores, esse conhecimento a uma geração vindoura já não o fazem, porque naturalmente, há uma separação física das pessoas que conduz a uma separação também de valores e de conhecimento".
Por isso, admite o autarca eleito pelo PSD, é que o município de Vila Flor "não teve dúvidas em aceitar o desafio da ATPD. É porque também colocamos no topo da nossa lista de prioridades, o cuidar dessa geração, o cuidar dos nossos mais velhos, incluí-los na nossa sociedade de uma forma ativa. É de uma forma útil e de uma forma que consigamos ter uma comunidade o mais equilibrada possível".
Sérgio Madeira, também dirigente da ATPD, enquanto passeamos pelo centro da vila, vai apontando exemplos que ajudam a perceber como tantas vezes não é fácil viver no interior de Portugal: "Isto era um banco. Deixou de o ser. Mais um serviço que foi retirado a Vila Flor. É evidente que é um banco privado, fazem o que querem. Durante um tempo, acho que abriam dois dias por semana. Mas agora nem isso. E durante esse período em que abriam dois dias por semana, ainda mantiveram aqui uma caixa multibanco. Agora, já nem isso. Portanto, eu penso que Vila Flor tem três caixas multibanco, o que é manifestamente pouco. Nós, por exemplo, habituamo-nos, ao fim de semana, a ter que andar com dinheiro no bolso porque é muito frequente chegarmos ao sábado à tarde e não termos dinheiro nas caixas multibanco. Neste momento, há dois bancos: há uma Caixa Geral de Depósitos e uma Caixa Agrícola. São os únicos bancos que existem aqui."
E a estação de correios? "Foi uma situação engraçada, em que o poder local atuou e funcionou. Não sei precisar em que altura foi, mas, efetivamente, quando houve o fecho de grande parte das estações de correio, a de Vila Flor estava nessa lista - penso que os correios chegaram a fazer um contrato com uma papelaria local -, mas a população, aí, iniciou um processo de alguma revolta e a câmara municipal encabeçou, digamos, essa revolta e fez algum tipo de acordo com os CTT. Não sei precisar qual, mas conseguiram manter a estação de correios aberta, mas foi por força da intervenção da câmara municipal."
O arranque dos trabalhos
Depois das apresentações e passeios, dá-se o arranque dos trabalhos da Academia de Direitos Humanos, em Samões, com os professores convidados. Horas mais tarde, ao fim do primeiro dia de trabalho e de contactos com as instituições locais em Samões, Catarina Dias, com 23 anos, natural de Paredes, estudante do Mestrado em Sociologia na Universidade do Porto, já tinha algumas ideias sobre os problemas mais evidentes: "É uma realidade um bocado diferente, apesar de eu viver num contexto mais rural, mas lá não há tanto abandono nem o envelhecimento que estamos a observar aqui. O exemplo de 70% da população em Samões ser idosa é um bocado... são números... é alarmante. Não estava à espera."
Nesta altura dos trabalhos, algumas ideias já tinham sido pensadas, mas, metodologicamente sensata, Catarina reconhecia que, antes de tudo, era necessário "fundamentá-las, perceber primeiro com a população quais são os problemas que eles acham mais importantes abordar e depois, com eles, desenhar propostas". Acrescentando: "Obviamente que nós temos ideias, mas nós queremos fundamentá-las com a população mais velha para ser uma abordagem e uma intervenção participativa do lado deles." O processo iria passar depois por um relatório que os participantes teriam de entregar.
Os problemas mais realçados pelas instituições foi a questão da participação das pessoas mais velhas nas iniciativas, como lhes chega a informação, a falta de recursos das próprias instituições para conseguirem concretizar os seus planos. Para Catarina, dramático é "o exemplo da Guarda Nacional Republicana só ter quatro (quatro!) agentes para fazer a rota dos três concelhos da região", explicando que "há idosos que estão sinalizados e ficam dois e três meses sem receber a visita da GNR porque há falta de agentes". Muita da informação chega através de panfletos, "mas muitas das pessoas mais velhas não sabem ler, ou seja, a informação não está a chegar".
Ouve-se uma buzinadela familiar, à face da estrada nacional que divide a aldeia. Já aí vem o pão quentinho. Manuel Madureira é o presidente da Junta de Freguesia de Samões há 11 anos: "Em todas as aldeias do nordeste transmontano, nós temos o mesmo problema. É a falta de mão de obra e a população cada vez mais envelhecida. E não é fácil de remediar esse problema."
Não sendo fácil, o que é que a junta tem procurado fazer? "A Junta é muito pequena, não é? Não pode fazer grandes investimentos", justifica o autarca local, acrescentando que estão a tentar fixar as empresas e a ver se arranjam mais postos de trabalho, "para cativar os jovens a ficar cá, e mesmo a vir alguns do litoral para cá".
Vila Flor tem o grande parque industrial do Cachão que está (quase) fechado há anos e anos: "Não funciona sequer a 50%." A Reportagem TSF foi até lá e testemunhou um cenário de, pelo menos aparente, abandono. O edil de Samões conta que "já deu emprego a muita, muita gente". Já empregou muitas "centenas de trabalhadores". Basicamente, tem estado a fechar empresa atrás de empresa.
Em relação à população com mais idade, que tipo de apoios é que a junta de freguesia pode dar? Manuel Madureira explica que "a junta, mesmo desde a Covid-19, presta serviço desde receitas para pedir medicamentos, entregar receitas, tudo o que eles precisarem; quando vêm ter com a junta, logo que uma pessoa possa, disponibiliza-se a fazê-lo".
Num banco de jardim à porta da junta de freguesia, sento-me com a dona Aurora Sil e quero saber se gostou do que ouviu no primeiro contacto com a Academia promovida pela ATPD: "Dentro daquilo que vi e compreendi, sim. É bom que façam o bem pela aldeia e que vão visitar os idosos, que há aí muitos isolados, coitadinhos, gostam tanto de falar e de conviver."
O grande problema em Samões, e são tantas as Samões por esse país fora, é o isolamento dos mais velhos. Aurora lamenta o que aconteceu nos últimos anos: "A gente dantes saía, vínhamos aqui a uma reunião na associação recreativa e desportiva, mas veio a Covid-19 e a gente, há três anos, ficou afastada. Agora, continuamos mais afastados."
Aurora Silva Sil gosta de músicas do Minho, concertinas e música alegre. "Eu era muito alegre. Quando era nova, eu passava a minha vida a cantar. Agora, pronto, também a vida já é um bocadinho mais injusta às vezes, e a gente também vai perdendo a alegria. Nem damos conta que a perdemos. É assim, pronto. Aqui, nem que a gente queira, não há muita juventude. Os pais emigraram, mas também nasceram no estrangeiro. Para aqui, bem, só mesmo os que não emigraram. Eu tenho um filho que nunca emigrou, tem 35 anos, tem aqui o trabalhinho dele, graças a Deus nunca precisou de imigrar, mas a maioria da juventude tem que emigrar. Vão estudar para as grandes cidades, para tirarem o futuro deles e depois já não vêm mais para aldeia. Podem vir passar as férias, mas depois, aqui, não têm futuro. Aqui não há futuro. Aqui não há. Têm que governar a vida. Isto aqui é muito parado. É assim. É muito parado."
(Na segunda parte: o que fazemos com os nossos mais velhos e o trabalho da Academia)