"Roof" de Mário Cruz, porque há ainda tanta gente sem casa e tanta casa sem gente
A exposição "Roof" mostra a vergonha. Não a de quem sofre na pele a crise da habitação há dez anos, mas a de nós todos, que não a resolvemos nem exigimos o cumprimento das promessas daqueles que elegemos. O Abril por cumprir pelo olhar de um fotojornalista já com vários prémios internacionais. É inaugurada este sábado.
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Mário Cruz vem buscar-me ao fundo das escadas daquele palacete a dar ares de devoluto no número 15 da Rua Augusto Rosa, quem contorna a Sé de Lisboa pelo lado esquerdo, quase em frente ao Museu do Aljube, com tanto para mostrar por estes dias (e todos os outros). Começámos logo a gravar a conversa: “Roof é um projeto que se iniciou em 2013 e terminou em 2023 e retrata a realidade de quem vive escondido na cidade, no sentido em que retrata as pessoas que não têm uma casa para viver e acabam por sobreviver em locais abandonados, como prédios devolutos.”
Este é um edifício que pertence ao património da Santa Casa da misericórdia de Lisboa. Estamos no Antigo Recolhimento das Merceeiras, “um edifício que na altura foi criado precisamente para acolher pessoas em situação financeira frágil. Há muitos anos, a descrição era acolher situações de pobreza envergonhada e, neste caso, o meu trabalho retrata precisamente o lado escondido da crise da habitação, uma crise que, é bom dizer, não começou com um conflito na Europa”.
Viajamos até ao tempo da troika, em que o país, em iminente bancarrota, necessitou de assistência financeira internacional, no valor de 78 mil milhões de euros. O fotojornalista, curador e fotógrafo explica que “o trabalho começou precisamente com a troika cá". "Eu comecei por ver sinais de vida em locais que, à partida, não tinham vida. Lá está, prédios devolutos, prédios abandonados, e a verdade é que acabei por criar um mapa da cidade muito diferente do mapa turístico, porque acabei por me aperceber que esta realidade estava um pouco espalhada por todo o coração da cidade de Lisboa.”
Foi esse o tiro de partida que o fez sentir que, em vez de fazer um retrato generalizado da crise que se vivia naquela altura, o seu olhar incidiria sobre “uma realidade muito específica” que acabou por encontrar e documentar. “Encontrei pessoas que estavam completamente desesperadas”, diz à TSF, enquanto começamos a percorrer a exposição, dias antes da inauguração (este sábado, 27).
“Estamos a falar de pessoas que foram parar a estes locais devolutos porque perderam os seus empregos e perderam as suas casas. Essa é a primeira fase do trabalho, 2013-2014. Voltei a ele em 2019 e 2020, até à chegada da pandemia. Em 2019, o retrato já era um pouco diferente, comecei a encontrar pessoas que já tinham trabalho, mas que ainda assim não tinham conseguido sair daquela situação, de não ter ainda um teto, mas havia um sentimento de esperança, pensavam que aquilo era algo temporário. Portanto, as coisas estavam a melhorar, Portugal naquela altura era um bom exemplo europeu no que toca à retoma económica. E, portanto, as pessoas acreditavam que, em pouco tempo, toda aquela situação estava resolvida. A verdade é que em 2023 eu senti que tinha um trabalho nas mãos que ainda não tinha mostrado na íntegra, porque a única parte que foi publicada foi 2013 e 2014. E com a chegada dos 50 anos do 25 de Abril, pareceu-me claro que não podia desperdiçar esta oportunidade de, não só aproveitar uma celebração, mas sobretudo aproveitar uma oportunidade para refletir. E nesse sentido, passei a última fase do ano de 2023, outra vez, a entrar em locais que, à partida, não têm vida. E o que eu encontrei neste momento são pessoas que trabalham, são pessoas que têm vidas normais, pessoas comuns. Mas simplesmente não conseguem pagar uma renda em Lisboa ou, sequer, fazer um contrato para comprar uma casa”, explica.
Pessoas que trabalham, têm um emprego e não têm outra possibilidade (porque as entidades públicas não quiseram ou não as souberam criar) senão viver em prédios devolutos em sítios abandonados: “Podem ser vilas tipicamente lisboetas, que já se encontram devolutas há algum tempo, mas também escolas, contentores, mas existem aqui casos muito específicos. Por exemplo, em 2019 eu encontrei uma família que, lá está, ela já tinha encontrado um emprego. E, na altura, tinha sido mãe há pouco tempo, tinha um bebé. E eu nunca pensei que, ao voltar àquele sítio 2023, como voltei, essa família estivesse naquele local. É uma criança que agora já está no pré-escolar. Ela continua com um emprego, mas a verdade é que não consegue pagar uma casa; é uma mãe sozinha e não tem maneira de pagar uma casa. Portanto, estas pessoas muitas vezes têm que optar entre pagar uma renda ou comer, é literalmente assim.”
Outro caso que acontece, pelo conhecimento da grande reportagem temporalmente longitudinal feita pelo antigo repórter fotográfico da agência Lusa, “é o facto de funcionários públicos não terem uma casa para viver, funcionários públicos que vivem em contentores, junta a vilas onde viveram a vida toda, mas que foram encerradas; as pessoas tiveram que sair e agora vivem num contentor a olhar para a Vila onde viveram a vida inteira”.
Uma realidade escondida, não porque alguém se esconda, mas porque fazia falta desocultar, assumindo uma responsabilidade colectiva: tirar das trevas em que fazemos esses lugares mergulharem para não termos de neles mergulhar o nosso olhar treinado para viver no conforto da cidade habituada à luz. “Quando percebemos esses sinais de vida, eu considero que esta é uma realidade que é o lado escondido. Mas quem vive perto destas zonas ou destes locais percebe que aquelas pessoas vivem lá. E nós podemos imaginar o que acontece às camadas mais frágeis da sociedade, mas a verdade é que hoje em dia o salário mínimo e, às vezes, mais que o salário mínimo, o salário médio-baixo não é suficiente para ter uma casa em Lisboa.” O projecto Roof “surge em 2024, de forma plena para contestar e reivindicar precisamente esse direito à habitação que não foi conquistado e os 50 anos do 25 de Abril deveriam pelo menos também servir para isso”.
Um ano e tal para 50 anos da Constituição e Mário Cruz usa muito, na exposição, o artigo 65 da lei fundamental da República Portuguesa: “Exatamente, eu sinto que o Estado está a falhar e é claro, para quem visitar a exposição Roof e quem tiver oportunidade de ver o Livro Roof, vai perceber que é um problema que se arrasta há tempo demais.”
Roof de teto, telhado, a falta deles: “É algo que é quase crónico, é um problema que afecta várias camadas. Ou seja, nós não estamos a falar de pessoas entre os vinte e os trinta, mas muito mais velhas também. Em 2013-2014, houve muitas pessoas com 50 e tal anos que ficaram sem as suas casas, sem os seus empregos. Nós agora estamos a ver o pessoal jovem que se quer lançar na sua vida e tem uma dificuldade tremenda. E se antes também estava concentrado, sobretudo no coração de Lisboa, já se arrasta para a periferia.”
O projeto de Cruz está concentrado em Lisboa, mas “a verdade é que esta questão da especulação já se arrasta para a periferia". "Curiosamente, este trabalho de exposição acontece neste local onde estamos, o Antigo Recolhimento das Merceeiras, isto é, bem no coração de Lisboa, a poucos passos da Sé. Quando estamos a ver esta exposição, quando estamos a visitá-la, as janelas estão abertas, tudo o que nós vemos ou a generalidade do que vemos é alojamento local. Quando saímos da exposição, o que mais vemos, muitas vezes, são os turistas em carreira a passar por este local. Não houve medidas que protegessem as pessoas daqui dessa especulação imobiliária. Também me fez e faz-me ainda muita confusão ver tantos edifícios devolutos e, ao mesmo tempo, não haver políticas de habitação pública que possam, de certa forma, colmatar esta realidade. É quase inacreditável. Como é que certos edifícios que eu fotografei em 2013 e 2014 continuam devolutos em 2024?”.
Mário Cruz dispara: “Houve tempo para tudo, menos para arranjar uma solução para habitação.” Ou seja, continua a ser válido aquele slogan político de há muitos anos: “Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa.” Para o fundador da Narrativa, um espaço dedicado à fotografia, em Lisboa (na Rua Teixeira de Pascoaes com a Gama Barros, em Alvalade), “é nítido que é isso que está a acontecer. Basta andarmos ainda na baixa de Lisboa. Há muitos edifícios devolutos e que não têm vida. Ao mesmo tempo, eu não vejo estas pessoas se escondam. É uma realidade escondida, mas estas pessoas não se escondem. Estas pessoas tentam sobreviver. E essa sobrevivência obriga a que isto seja escondido, que é uma coisa bem diferente".
“Nós estamos a falar de algo muito sensível. Em 2013-2014, quando comecei a fotografar, a generalidade das pessoas, dizia-me para eu mostrar, sentiam que era muito importante mostrar o que estava a acontecer, que não percebiam a dimensão do problema. A partir de 2019, eu senti que havia um pouco mais de barreiras. As pessoas já começavam a ter os seus empregos. Tu não vais para um emprego dizer que não tens uma casa para viver. Uma das coisas que me diziam era: ‘como é que eu me posso inscrever no emprego se eu não tenho uma morada para dar, portanto, muitas vezes falavam com as mercearias, com os negócios locais, e perguntavam: ‘importa-se que a minha correspondência venha para aqui?’ E portanto, em 2023, a realidade das pessoas que eu acompanhei já tinha o seu trabalho e, como é óbvio, é difícil para estas pessoas admitirem este problema. Nós estamos a falar de pessoas que, eu acredito, na inauguração da exposição vão estar entre nós e nós não vamos perceber que são pessoas comuns que têm o seu trabalho, têm a sua vida, têm os seus sonhos e isso foi sempre que algo que eu presenciei ao longo do trabalho, não só esta tentativa de ultrapassar esta situação e acreditar que a vão ultrapassar, mas os próprios sítios, se nós virmos muitas das fotografias ou a generalidade das fotografias, nós estamos a ver sítios que estão literalmente a ruir, o trabalho chama-se o ‘teto’, mas a verdade é que estes estão a cair sobre as pessoas e ainda assim, nós vemos as tentativas de criar dentro daqueles espaços, onde não deveria estar ninguém, uma casa com decoração, com o mínimo de conforto”, revela Mário Cruz sobre os locais que encontrou e foi fotografando ao longo dos últimos dez anos.
“Muitas vezes entrava nesses locais e diziam-me: ‘deixa-me só arrumar um pouco as coisas’. Estamos a falar literalmente de tecto a cair sobre as pessoas. Como é que se arruma um tecto que está a cair sobre a nossa cabeça?”
São condições que, afirma o premiado fotógrafo (dois World Press Photo, Magnum, Estação Imagem), “deviam envergonhar quem lutou por Abril".
"Sinceramente, nesta altura, o trabalho também sai não só pelos 50 anos do 25 de Abril, mas também por aquilo que eu considero que é um clima social e político que não poderá ajudar a resolver esta situação. O que eu sinto neste momento não é um cheiro a Abril é um cheiro mais a bafio, muito semelhante ao cheiro que eu encontrei muitos destes sítios. Isso também me preocupa e portanto, eu sinto que o Roof, enquanto obra de alerta, tem uma palavra a dizer e eu espero que provoque uma reacção, é assim que eu pretendo usar a minha fotografia. Tem acontecido, e o facto de estar bem no coração de Lisboa, não é uma provocação, é algo completamente normal, porque esta realidade está cá.”
Nos cinquenta anos da Revolução, um retrato do que está por cumprir dos ideais de Abril, uma exposição que junta fotografia, vídeo e música especialmente concebida - no caso, Dançar Frente Ao Espelho - pelo guitarrista Tó Trips. Roof, de Mário Cruz e equipa da Narrativa, pode ser visitada até 9 de junho.