Rui Tavares: "O Livre não recusa participar num Governo"
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Tem sido uma voz moderadamente crítica do Governo. É escritor, tradutor, historiador e político. Tem 51 anos e é deputado único do Livre na Assembleia da República e vereador na Câmara Municipal de Lisboa.
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Que propostas do Livre vai conseguir incorporar na proposta do Orçamento do Estado para 2024?
No ano passado, por esta altura, já tínhamos tido várias reuniões setoriais. Este ano, também por causa da situação de crise política que estamos a viver, com o Governo pré-demissionário, tivemos muito menos reuniões setoriais. Até agora, ao momento em que falo, apenas uma com o Ministério do Ambiente. Ao momento em que falamos também, as votações vão começar já amanhã [ontem, quinta-feira]. Estamos habituados a trabalhar a contrarrelógio e estamos sempre disponíveis para ter mais reuniões setoriais. Neste momento é muito difícil saber quantas propostas do Livre é que poderão ser incorporadas na fase de especialidade do Orçamento de Estado.
Mas tem uma expectativa? Qual é?
É muito difícil ter uma expectativa. O ano passado, abstivemo-nos na generalidade, como temos feito, precisamente para sinalizar a abertura para negociar na especialidade. E a verdade é que estive bastante preocupado. Hoje posso dizer isto: estive bastante pessimista até praticamente à altura das votações. E depois, com a majoração do abono de família para as famílias monoparentais, com a alocação de 140 milhões para o programa 3C (Casa, Conforto e Clima) e com algumas outras medidas também de grande importância, permitiu-nos manter a abstenção na votação global final.
E no OE204, o que seria uma vitória e uma derrota para o Livre? Que medida é mais emblemática?
É difícil assinalar apenas uma, mas se esse é o desafio, creio que a criação de um Fundo de Emergência na habitação é muito importante. Tem sido uma medida na qual trabalhámos e dialogámos com o Governo às claras, porque foi no quadro até do único debate quinzenal que acabou por se fazer depois do novo regimento da Assembleia da República. Queríamos financiar esse Fundo de Emergência na habitação, que me parece que é indiscutível a sua necessidade, porque temos um fenómeno de gente que tem trabalho e que, no entanto, está na rua porque perdeu a sua casa. E é preciso ter reforços desde já para conseguir combater este fenómeno dos novos sem abrigo e conseguir dar casas às pessoas. Mas depois também para fazer o combate à descaracterização de bairros, ao despovoamento e à gentrificação das cidades, é preciso que haja um fundo próprio. E que o financiamento desse fundo não seja através dos impostos gerais sobre o trabalho, porque do ponto de vista social e político é dificilmente sustentável que as pessoas pensem que os seus impostos sobre o trabalho servem para financiar um fundo deste tipo.
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De onde é que deve vir esse financiamento?
A nossa primeira proposta era fazer uma sobretaxa do IMT, ou seja, das transações de imóveis de luxo que fossem comprados por não contribuintes e não residentes, com exceção de nacionais portugueses. Isto porquê? Porque as pessoas que estão, através de uma atividade que é lícita e que não achamos que deva deixar de ser, que é de comprar uma casa em Portugal, estão a contribuir para uma externalidade negativa, ou seja, para o aumento dos preços do imobiliário no nosso país, e já temos muitos exemplos. Seria justo que pagassem mais 20%, e que esses 20% fossem para o fundo de emergência na habitação. Isso teve uma resposta liminar por parte do primeiro-ministro, de que não havia concordância de todo do Governo nessa medida. Então, o que é que o Livre fez? Apresentou uma proposta de alteração ao orçamento.
E não receia que essa medida fosse afastar os investidores? Isso foi tido em conta?
Não. Se afastar os investidores isso significa que o mercado poderia arrefecer e, portanto, os preços ficariam mais razoáveis. Temos um problema no mercado da habitação que o torna diferente de qualquer outro tipo de mercado. Se formos comprar batatas, compramos batatas para comer batatas. Mas quem compra casas em Portugal compra-as para viver nelas, é o caso da maior parte de nós, ou então para investir nelas, isto é, não fazer mais nada, mantê-las fechadas e depois vendê-las com lucro daqui a uns anos. Ora, como este segundo mercado na habitação está a puxar pelos preços do primeiro de uma forma que é insustentável para a maior parte dos portugueses. A introdução de uma sobretaxa no imobiliário de luxo permitiria fazer algo que todos queremos, que é que as casas custem um pouco menos e que não haja esta espiral de preços. Mas caso não o conseguíssemos fazer, ao menos faria uma arrecadação que serviria, por exemplo, para podermos multiplicar em muito os fundos que temos disponíveis para as estratégias nacionais de integração das pessoas sem abrigo. Quando vemos que, por exemplo, o mercado está a gerar e que os reforços que se fazem são de sete milhões de euros, por exemplo, isso é claramente insuficiente perante as necessidades, e perante o que ainda aí vem, porque o tsunami está só no início, seria muito importante termos um fundo robusto nas nossas contas. Na primeira versão de que aqui vos falei, ele poderia ter cerca de 100 milhões de euros e isso já é um fundo com uma robustez que se veria perante o problema que estamos a criar.
100 milhões de euros foi o que disse?
100 milhões de euros é o cálculo perante o que foi o mercado imobiliário em 2022, o cálculo que fizemos. Pode ser mais ou menos, se fosse menos era sinal de que o mercado estaria a arrefecer e, portanto, esse também é um objetivo que nos parece que é positivo.
Então tudo aponta para o quê, no Orçamento do Estado para 2024? O Livre vai abster-se? Vota contra? Vai votar a favor? Porquê?
Excelente pergunta para a qual não tenho resposta. O que dissemos no voto na generalidade é que era um voto de abstenção que sinalizava a vontade do Livre de negociar e que respondia a uma declaração por parte do primeiro-ministro, nesse mesmo debate, de que queria negociar com o Livre. Então, dissemos, se a ideia é negociar, não vamos começar por votar contra uma coisa que queremos melhorar, mas também dissemos que se nada mudasse até a votação final global este voto de abstenção não se manteria e seria um voto contra. Tudo depende. Estou a dar a resposta da forma mais aberta e direta que posso dar, com a mesma informação que vos dei aqui. Tudo depende destas negociações até à altura da votação final global. Tudo depende como o grupo parlamentar do PS for votar, porque tem a maioria absoluta. O que posso dizer, neste momento em que estamos a gravar, é que está tudo em aberto. E se nada mudar, o voto será contra na votação final global.
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Em relação ao que foi aprovado há um ano e que está em vigor atualmente, o Orçamento do Estado de 2023, e às propostas do Livre que foram incorporadas nessa lei: o PS cumpriu o que acordou com o Livre ou não?
Podemos dizer que maioritariamente sim e em algumas que são muito importantes. Vou dar um exemplo. O passe ferroviário nacional, que é uma conquista do Livre, que se pode mesmo dizer assim, porque todos ouviram que, no início, o ministro das Infraestruturas, na altura Pedro Nuno Santos, nos disse que seria impossível fazer um passe ferroviário nacional. Tivemos de negociar e fizemos um passe ferroviário nacional, 49 euros para os comboios regionais durante um mês, viagens ilimitadas, a qualquer hora, em qualquer horário, em qualquer dia da semana. E parece-nos que é muito importante. Mais de seis mil pessoas compraram esse passe ferroviário nacional e, neste momento, quem no Algarve ou vindo de Tomar para Lisboa, ou noutras linhas do país, gastava 100 euros ou mais de 100 euros mensais, está a poupar dinheiro. Essa foi cumprida no último dia do prazo, mas foi cumprida. E a majoração do abono de família para as famílias monoparentais está em vigor desde abril. Depois há outras medidas que são lutas mais de longo prazo e que demoraram a ser cumpridas. Genericamente, o balanço é positivo. Em relação às que já foram aprovadas e estão em implementação, o balanço é positivo. Mesmo quando, pelo menos num dos casos que queria dar aqui o exemplo, demorámos dois anos a conseguir que a medida entrasse em vigor e isso significa que finalmente o Presidente da República promulgou o decreto-lei do Governo que alarga o acesso ao subsídio de desemprego para as vítimas de violência doméstica. Essa foi uma medida que inserimos no primeiro Orçamento desta legislatura, o Orçamento para 2022. Depois, foram dois anos de pressão, ou praticamente dois anos de pressão, sobre o Governo. Perguntas a ministros, perguntas ao primeiro-ministro, recorrentes. Até que, finalmente, o primeiro-ministro disse que o decreto-lei vai sair amanhã. Mas mesmo depois do decreto-lei sair, o decreto-lei foi para redação final, aliás. E agora, hoje apraz-me dizer que o Presidente da República acaba de promulgar esse decreto. É muito importante, porque quem é vítima de violência doméstica vive, muitas vezes, também numa situação de dependência financeira, de vulnerabilidade económica. E se tiver acesso ao subsídio de desemprego, isso pode querer dizer um instrumento fundamental para a pessoa quebrar o ciclo de violência. Até porque, muitas vezes, as pessoas também convivem com o agressor no próprio local de trabalho. Parece-nos uma medida muito importante. É uma luta que o Livre fez praticamente sozinho nas eleições passadas. Ouvi, por exemplo, o líder do PSD dizer que esta era uma proposta surreal. Bem, ela finalmente foi promulgada. Estamos muito contentes porque isto pode significar para muita gente a diferença entre viver em situação de violência doméstica ou quebrar o ciclo de violência.
O que lhe perguntava também na sequência disso é se esta experiência sua como deputado e a sua relação com o PS nesse contexto de questões orçamentais, por exemplo, se sente ser possível uma relação de confiança que permita um acordo futuro e mais permanente? O PS é um partido confiável? Ou neste momento não pode dizer, porque o PS é um e daqui a umas semanas será outro porque haverá uma nova liderança? Até agora o PS foi um partido confiável?
Com todos os partidos, como com todas as pessoas, a confiança é uma relação que se constrói sempre, dia a dia, em crescendo. Da parte do Livre, o que podemos dizer é que queremos construir confiança. Somos um partido que não diz uma coisa dentro de uma reunião e outra coisa cá fora. E os outros partidos que reúnem com o Livre, vários deles, vão tendo essa noção de que o Livre não o faz. Não estou com isto a dizer que outros o fazem, mas estou a dizer que com o Livre, claramente, o que se diz numa reunião não é diferente do que se diz cá fora e, portanto, há uma abertura, há uma franqueza que acho que permite construir confiança. Mas também a confiança por si não basta, não é? É preciso confiar, mas verificar. E, por isso, depois de conseguirmos, neste exemplo que acabei de lhe dar do subsídio de desemprego para as vítimas de violência doméstica, não quer dizer que está ali e vamos confiar que vai ser feito. Foi preciso, para utilizar um pleonasmo, chatear, chatear e chatear. E, às vezes, se é preciso ser maçador, também se vai ser maçador até que a medida esteja em vigor. E, mesmo assim, agora está promulgada. A seguir, o que vamos querer ver com qualquer Governo que venha, é se quando o Estatuto de Vítima de Violência Doméstica é atribuído, se a pessoa é logo informada de que tem esta possibilidade. Se nas casas-abrigo há assistentes sociais que digam à pessoa que se quer quebrar o ciclo de violência e se acha que para si é útil, tem acesso a esta medida. Porque as coisas também só se veem quando mudam no terreno, na vida das pessoas.
E no terreno também vai ser preciso, certamente, fazer uma política de alianças. Qual é que será a política de alianças do Livre? Ou, por outras palavras, se exclui a possibilidade de alianças com alguém?
Deixe-me fazer a ponte entre as vossas duas perguntas. Claro que é mais fácil construir confiança e ter mais força se o Livre não tiver só um deputado único e tiver um grupo parlamentar. E quanto mais amplo ele for, mais força teremos para ou propor medidas, ou negociá-las, ou vê-las implementadas.
Portanto, essa é a sua ambição para as próximas legislativas. Enquanto essa ambição não está alcançada, temos de traçar cenários. Qual é a política de alianças do Livre?
No caso do Livre, ela é muito clara. O Livre é um partido de esquerda. As pessoas sabem isso e dizemos-lhe. Não quer dizer que toda a gente concorde, mas acho que as pessoas respeitam que a gente lhes diga de onde é que vem e que não faça de conta que não há esquerda nem direita ou que estamos em todo o lado ao mesmo tempo. Há um lugar específico onde o Livre está. É numa esquerda verde europeia. Isso significa que se houver uma maioria de esquerda o Livre contribuirá para a solução.
Se houver a tal geringonça de que fala Pedro Nuno Santos, por exemplo, se for ele vencedor, está disponível?
Creio que geringonça como a conhecemos em 2015, é algo que o nosso país deveria superar, no sentido em que devemos ter uma governação em Portugal, seja com uma maioria de apoio parlamentar, seja com um Governo, que esteja à altura do que se faz na Europa do século XXI a que pertencemos. Na Alemanha, nos Países Baixos, na Dinamarca...
Ou seja, alargar a mais partidos?
Ou seja, acordos que são negociados, que são escritos, que são escrutinados pela cidadania, que demoram o tempo que for necessário a serem negociados para que depois haja objetivos claros de governação que sejam cumpridos.
Está a dizer que exigirá um acordo escrito se houver essa situação?
Estou a dizer que essa é a preferência clara do Livre. Já o dissemos em 2019 e em 2019, infelizmente, nenhum dos outros partidos à esquerda o quis. Toda a gente acreditou naquelas pseudo facilidades que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dava de que não é preciso assinar nada, ao contrário do que tinha acontecido na geringonça 1.0. A geringonça 2.0 não teve nenhum papel e ressentiu-se disso. Não teve nenhum papel assinado e passado dois anos, colapsou. E estamos ainda a pagar o preço disso, atualmente, ou seja, a crise que estamos a viver, política e com elementos de crise de regime, também tem, em parte, as suas raízes no facto de não ter havido essa exigência. Quando se esperava que a geringonça 1.0 passasse a ser mais parecida com o que se faz no resto da Europa, ou seja, mais escrutinável e mais responsabilizada com acordos escritos e que fossem públicos, ela deu um passo atrás e ficou na informalidade.
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Havendo uma política de alianças e esse acordo escrito, como diz ser a preferência, será que podemos ver Rui Tavares como membro do governo?
Creio que o mais importante é a política do nosso país, ela modernizar-se e dar mais capacidade de resposta.
Não respondeu à pergunta.
Não respondi porque não acho que seja o mais importante e também por outra razão: as primárias do Livre ainda se vão fazer, as pessoas ainda vão apresentar as suas candidaturas, e, portanto, acho que precisamos não só de dar tempo a esse processo de se fazer, como, em primeiro lugar, de ele se fazer sabendo e estando os membros e apoiantes do Livre em primeiro lugar nesse próprio processo. Serem os primeiros a saber.
E há alguma pasta que, ainda assim, considere mais apropriada ao seu perfil, ao seu percurso?
Há bocadinho fugi à pergunta porque não gosto de colocar-me nessa posição. Que é a posição de estar a discutir participações no Governo, lugares ou pastas ou o que quer que seja. Acho que o mais importante aqui é que haja uma representação forte da esquerda verde europeia, que o Livre representa, que todos demos ao nosso país o melhor que possamos dar, até porque estamos numa situação política complicada no nosso país. Isso significa as pessoas não estarem a pôr-se a si mesmas à frente e estarem a discutir primeiro os cargos, a discutir ideias, e é por isso que não respondo. Essas perguntas, de modo franco e direto com que respondo às outras, acho que aqui não fazem sentido.
Então tirar Rui Tavares da equação e pôr só o Livre. O que perguntamos, independentemente de Rui Tavares e dos resultados das primárias internas, é se o Livre recusa participar ativamente num governo ou não?
Essa pergunta pode ter uma resposta bastante mais direta, porque o Livre não recusa participar num governo. Não quer dizer que esse seja o horizonte próximo, mas certamente se acreditamos que o país deve ser governado com políticas progressistas e essas políticas não caem do céu para haver políticas progressistas, é preciso haver políticos e políticas - no caso de políticos homens e políticas mulheres -, progressistas que as estejam a implementar. É necessário que um dia haja neste país um governo plural à esquerda e aí o Livre não rejeitaria ter a sua parte. Evidentemente, discutindo primeiro ideias, discutindo primeiro programas e negociando quais seriam as medidas desse Governo a implementar, como disse aqui há pouco. Mas o Livre é um partido que serve para fazer funcionar a política progressista em Portugal e isso pode incluir um dia estar presente num elenco governativo. Ou então pode significar estar presente numa maioria de apoio a um governo através do Parlamento.
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Nas candidaturas ao PS, e isso é importante porque em princípio ou o PS ou o PSD é que vencem as eleições, portanto, o primeiro-ministro será de um dos dois partidos, nas candidaturas ao PS temos Pedro Nuno Santos e Luís Carneiro. Qual deles é que poderá melhor enquadrar esse "Governo plural à esquerda?
Não vou responder porque esse é um assunto interno do PS e acho que o que é adequado é que os partidos decidam como é que se querem organizar. O Livre também o decide em relação a si mesmo. E depois dialogarem, dialogarem de forma construtiva, dialogarem de forma descomplexada, no caso de partidos à esquerda, que têm essa afinidade de fazerem parte da mesma família política no sentido lato, de serem progressistas, e isso serve para o PS, como serve para o Bloco de Esquerda, dialogamos com a liderança que esses partidos escolherem ter e, portanto, evidentemente, não nos antecipamos, não nos intrometemos e esperamos que os partidos escolham as suas lideranças e depois dialogaremos com elas.
Já falou do que é que seria uma geringonça de futuro europeia. E que erros é que a geringonça não pode voltar a repetir?
Além daquilo que já referi, que é mais de processo ou de forma, acho que a geringonça de 2019 deveria ter evoluído para ser mais coligação de governo ou coligação de maioria parlamentar, e menos geringonça, ou seja, menos solução de improviso. Deveríamos ter tido essa maturidade, mas infelizmente não aconteceu. Posso dar um exemplo concreto de política. Portugal tem salário mínimo nacional desde logo do pós-25 de abril e Espanha também, portanto, é um daqueles casos raros em que é possível comparar duas políticas em dois países vizinhos, ainda por cima, com condições que são mais ou menos semelhantes: a democratização e a instituição do salário mínimo nacional. O salário mínimo português foi durante quase toda a sua história 80% do salário mínimo espanhol. E durante a geringonça, 2015-2019, e depois de 2019 até 2022, esta proporção caiu até se aproximar dos 70% do salário mínimo espanhol. E nós, no Livre, consideramos que isto é um gráfico.
Mas caiu por culpa de Portugal ou por culpa dos espanhóis que aumentaram demais?
Não, os espanhóis aumentaram e nós não fomos atrás. Agora, repare-se numa coisa: no passado, nas outras quatro décadas passadas da nossa democracia, o que aconteceu é que governos de todas as cores, de esquerda, de direita, de centro, etc., procuraram sempre aumentar o salário mínimo português conforme o espanhol também aumentava. E foi nos governos de António Costa, e esta é uma crítica que acho que devemos fazer aos governos chamados da geringonça, embora os tenha apoiado, é que o salário mínimo português perdeu terreno, em relação ao espanhol.
Então uma nova ambição de uma nova geringonça será aproximarmos o mais possível ou igualar o salário mínimo de Espanha, é isso que quer dizer?
Será aproximarmos do salário mínimo espanhol, tentar manter sempre, nunca descer desta proporção dos 80% do salário mínimo espanhol, pelo menos isso não descer, mas tanto quanto possível, aproximarmos. Porquê? Porque isto tem uma consequência importante não só para quem oferece o salário mínimo, mas para a nossa economia como um todo. Se estivéssemos no lugar de um investidor estrangeiro que olha para uma economia ibérica que é bastante integrada, a europeia já é muito integrada, a ibérica é mais ainda. Quer decidir ter o seu investimento em Portugal ou em Espanha? Que mensagem económica é que o salário mínimo passa em Espanha e passa em Portugal? Em meu entender, passa esta: em Espanha é para o trabalho qualificado, em Portugal é para o trabalho barato. Isto é terrível para a nossa economia, é terrível para a mensagem que passamos de nós mesmos e lá fora é uma mensagem de que estamos dispostos a rebaixar o valor do trabalho quando o deveríamos valorizar. E, portanto, aqui está uma crítica que devemos fazer e para o futuro será certamente uma negociação exigente.
E na organização da esquerda, para ser mais forte, seria útil que PCP e Bloco se unissem, por exemplo, numa frente eleitoral comum? Qual é a sua opinião?
Isso são questões que competem aos partidos.
E o Livre estaria disposto a alinhar?
Repare, com a legislação eleitoral que temos para eleições legislativas nacionais, não faz grande sentido haver coligações pré-eleitorais. Porquê? Porque faz sentido que cada partido se apresente com as suas ideias distintivas e a sua força, que conquiste eleitorado, seja à abstenção, seja ao centro e à direita. Se olharmos para as sondagens que estão a sair agora, a esquerda está nas sondagens abaixo da direita. Se quisermos cumprir com os nossos objetivos, falo do Livre, que é de crescer, conquistar um grupo parlamentar, ajudar a esquerda a ganhar e impedir um governo dominado por extremistas e por forças antidemocráticas ou dependente delas, é preciso conquistar votos não só à esquerda, mas àqueles que presentemente nas sondagens tencionam ir votar à direita.
Mas esse é o ponto ou o ponto são também ideias completamente diferentes e por isso também possa ser um absurdo haver essa coligação? Ideias completamente diferentes, por exemplo, na política internacional.
Na política internacional há evidentemente distâncias muito grandes, a União Europeia, o próprio papel do projeto europeu e a importância que lhe damos.
Não é uma questão só processual ou de sondagens, é ideológica também.
A política internacional em eleições nacionais tem um peso muito maior, porque evidentemente é o Governo sustentado na Assembleia da República que toma decisões sobre a política internacional portuguesa. Onde é que acho que se cria aqui uma distinção, tanto processual como de conteúdo? Em eleições autárquicas, por exemplo. Porque não só a legislação eleitoral autárquica em Portugal não favorece coligações pós-eleitorais, porque reparem, quem tem um voto a mais é presidente de Câmara. Em Lisboa tivemos esse exemplo. Não é um voto a mais, é dois mil votos a mais e Carlos Moedas é presidente de Câmara, mesmo havendo uma maioria de vereadores de esquerda. O que é preciso é sermos pedagógicos para com os nossos cidadãos e dizermos que aquilo que as pessoas pensam muitas vezes, que é nas autárquicas a esquerda indo-se separada pode fazer uma geringonça depois, isso não é possível. Porque a lei das autárquicas é diferente das legislativas. Também do ponto de vista de conteúdo, é menos importante quando falamos de autárquicas, juntas de freguesia ou câmaras municipais, qual é que é o posicionamento internacional do Livre ou de outros partidos à esquerda. E, portanto, acho que nos dois planos tem razão. Não só o processo não justifica, como do ponto de vista das diferenças ideológicas, a distância e a importância dessa distância é maior em eleições legislativas.
Portanto, em síntese, coligações pré-eleitorais nas autárquicas, sim, mas coligações pré-eleitorais nas legislativas, não.
Devo dizer que em relação às autárquicas, essa é a minha opinião pessoal, não quer dizer que o Livre é um partido de convergência e, portanto, avalia-se sempre com muita profundidade as propostas de convergência que nos chegam. Pessoalmente, acho isto. Embora, às vezes isso possa dar, do ponto de vista externo, de quem nos analisa de fora, a ideia de que não há coerência se são a favor de coligações pré-eleitorais em autárquicas e não são a favor de coligações pré-eleitorais em legislativas, mas a incoerência não é nossa, é da lei. A lei é mesmo diferente em autárquicas e legislativas.
Operação Influencer. Para já, e pelos indícios que vieram a público, que avaliação faz desta investigação que abanou o país e fez cair o primeiro-ministro?
Avaliação interna, nenhuma, porque não compete aos partidos, não me compete a mim pessoalmente que não sou jurista, não conheço o processo por dentro, como ninguém é suposto conhecer além dos seus próprios investigadores e do Ministério Público.
E como cidadão quer dizer-nos que avaliação faz?
Como cidadão, creio que estamos a viver num tempo de uma grave crise, que não é só uma crise política, que é uma crise que tem elementos de crise de regime e esses elementos são quatro. Em primeiro lugar, há algo de bastante errado na maneira como o Estado se apresenta aos seus cidadãos, tanto no plano do exercício do poder político, como do exercício do poder judicial. A ilustração disto, quando o Ministério Público comunica, não só naquele primeiro comunicado do famoso parágrafo, mas até acho de certa forma mais impressivo o que aconteceu com o segundo comunicado, aquele que diz que estavam à espera de uma resposta expedita à questão de saber se o primeiro-ministro está implicado ou não em suspeitas graves, criminais, de ilegalidade, de ilicitude e que vão saber rapidamente porque este processo está ligado ao outro que vai demorar o tempo que tiver de demorar, assinado o gabinete de imprensa. Creio que isto não é próprio de uma democracia madura, ou seja, que decisões desta importância não sejam explicadas de viva-voz por quem as deve explicar, que são os responsáveis máximos de órgãos. Ainda por cima o poder judicial, que é um órgão de soberania. Portanto, deve explicar-se ao cidadão.
A procuradora deveria ter dado explicações ao cidadão? [Entrevista feita na quarta-feira 22 de novembro, um dia antes de a procuradora-geral da República ter falado sobre o assunto.]
Acho que sim. Mas não quero dizer com isto que deve dar mais explicações do que aquelas que são legalmente justificadas.
Deveria ter sido ela a tomar essa atitude?
De viva-voz, porque isso é o sinal da responsabilização política. Tal como estou aqui de viva-voz, também quem é responsável por um determinado setor, que no caso nem é um setor, é mesmo um exercício de soberania no plano judicial do nosso Estado, da República Portuguesa, há situações nas quais é preciso dar a cara. Com a solenidade que tiver de ser, numa conferência de imprensa, numa declaração pública, com perguntas, sem perguntas, dizendo apenas aquilo que deve dizer e não entrando no segredo de justiça, mas não o fazer através de um gabinete de imprensa. Repare, o comunicado nem assinado pelos assessores de imprensa está. Mas do outro lado, do lado do poder político, também algo muito errado há, quando salvo o respeito que devemos ter por um primeiro-ministro que diz não vou exercer mais cargos públicos, isso merece respeito, é alguém que serviu durante décadas ao país, concorde-se ou não. Mas vir num sábado à noite dar uma espécie de aula acerca dos limites da governação, das agências independentes, dos agentes económicos, que descreveria um pouco como chorar sobre leite derramado, fazer isso ao fim de oito anos de governação, também significa então que temos alguma explicação a fazer a nós mesmos, ou definição, ou se calhar redefinição, de como é que o Estado funciona. Mas queria juntar os outros dois elementos que penso que são de crise de regime. Um tem a ver com a existência de um partido de extrema-direita, que é o Chega, que é um partido que numa crise deste género pode ter um papel de agente oportunista e de beneficiar com o descrédito do regime. E, portanto, quanto mais o regime está desacreditado mais beneficia e mais razões tem para desacreditar o regime, e isso pode colocar-nos numa espiral perigosa, principalmente se os outros partidos democráticos, sejam de esquerda, de centro ou de direita, não tiverem linhas muito claras em relação a esse tipo de atitude. Quarto elemento: reparem que com tudo isto se está a gerar uma situação de descrédito para a própria participação política. Uma democracia não existe se os cidadãos não estiverem dispostos a participar da vida pública e a participar da política em alguns momentos da sua vida. E digo isto enquanto alguém que a maior parte da vida não fez isto e que vê todos os dias e fala todos os dias com pessoas que dizem nem pensar alguma vez serem deputados, ministros, o que quer que seja neste país e viver sobre a suspeita permanente de ser corrupto. E quando uma pessoa ouve isto, acho que inevitavelmente todos sentimos um arrepio na espinha e pensamos assim: então, se os que têm juízo não querem, a consequência disto é que os que querem muito não têm juízo nenhum e se calhar não deviam lá estar. E isso é algo que é um sinal grave e que nos deve fazer refletir a todos acerca de para onde é que se pode dirigir a nossa democracia aos seus 50 anos.
E se quanto ao primeiro-ministro esta situação não der em nada, como é que o Ministério Público pode assumir essas responsabilidades? Nesse caso a procuradora-geral terá de se demitir?
Não tenho sobre isto, ao contrário de outras visões que tenho visto aí entre comentadores, representantes políticos ou analistas, não tenho uma visão consequencialista desta questão. Ou seja, quando alguém diz para não haver uma crise no Judiciário é preciso que estas pessoas sejam culpadas, está a pôr o carro à frente dos bois. É preciso que a investigação dê o que tiver de dar. As questões a que me referi antes são questões que têm a ver com algo que não é de somenos, que às vezes é dito como se fosse de somenos, que é a maneira como se comunica com os cidadãos. Bem, a jornalistas não preciso de dizer isto, porque evidentemente são profissionais em sentido lato da comunicação e sabem que a comunicação não é uma questão menor. No caso de uma República, que é de instituições que têm valores e que têm uma forma de agir perante os cidadãos, isto não é uma questão menor. Mas os meus comentários são todos acerca disso, não são acerca da investigação que, aliás, não conheço. E, portanto, não acho que devemos dizer que para não haver uma crise no Judiciário é preciso que eles sejam culpados ou que para não haver uma crise na política é preciso que eles sejam todos inocentes. Não, à partida as pessoas têm presunção de inocência, mas não sabemos o que é que a investigação vai dar. É preciso que a investigação dê o que for verdadeiro e que depois que isso dê azo a um julgamento, a uma condenação, se necessário for. Mas aí não faço esse tipo de leitura.
A propósito ainda da ida a Belém da procuradora-geral, tem havido muita troca de palavras entre Belém e São Bento, entre o Presidente e o primeiro-ministro. Como é que vê o estado da nação em termos de coabitação entre aqueles dois?
Vejo mal e isso adensa o clima de crise em que estamos e leva até alguns partidos e políticos mais incendiários, e aí infelizmente não estou só a falar do partido da extrema-direita, a entrarem aqui numa certa voragem pré-eleitoral na qual se multiplicam ou as exigências diretas de que pessoas se demitam ou as insinuações de que elas não estão em condições para desempenhar os seus cargos. Vimos isso com o governador do Banco de Portugal, com o presidente da Assembleia da República, em alguns, se calhar não dito assim, mas insinuado em relação à procuradora-geral da República. É se calhar uma maneira mais fácil de conseguir cliques, televisões e capas de jornais, pedir a demissão de alguém, mas reparem nisto: as pessoas pedem a demissão de manhã, depois no dia seguinte o caso já passou e já não estão a pedir de novo, significa que era mais para conseguir esse efeito mediático do que acreditando verdadeiramente naquilo que estavam a dizer. Mas por outro lado isto causa dano. Quer dizer, já estamos numa crise grande.
Recomenda ou não, tino ao Presidente da República e ao primeiro-ministro para moderarem o tom do seu conflito atual?
Não, nesses termos não. Não é o meu estilo e não faria isso, dizer tenham tino a pessoas que são responsáveis.
Em que termos então?
Acho que é uma exigência para nós todos, até para os próprios cidadãos. Se os cidadãos não premiarem as atitudes incendiárias, quem as tem começa a ver que elas não resultam. No outro dia fiz uma coisa que, enfim, é uma graça, mas ao mesmo tempo é uma graça muito séria, porque fui aos Passos Perdidos [na Assembleia da República] e disse que o Livre hoje, como aliás pela terceira vez nesta semana, não pede a demissão da PGR, não pede a demissão do governador do Banco de Portugal, tal como não pediu do presidente da Assembleia da República. Isto não quer dizer que estejamos a pedir a não demissão ou exigir que não se demitam. O primeiro-ministro demitiu-se, considerou que era adequado demitir-se e temos de respeitar isso. Significa que, principalmente num momento de crise, o país precisa de instituições e de pessoas à frente dessas instituições para fazer frente à crise. O PSD não gostou de uma entrevista do presidente da Assembleia da República e disse que ele não tinha condições para continuar no cargo. Imaginemos que o presidente da Assembleia da República seguia o conselho e saia do seu cargo. É a segunda figura do Estado. Se acontece alguma coisa ao Presidente da República é ele que ocupa interinamente esse cargo. Portanto, não peço tino a ninguém. Mas acho que temos todos, sem exceção, os 10 milhões de portugueses e mais qualquer coisa, que ter sentido de responsabilidade perante a crise que estamos a viver.
A propósito destes temas e destas situações, Marcelo Rebelo de Sousa, na sua opinião, terá ficado fragilizado com as suspeitas de influências no caso do Hospital de Santa Maria que foi revelado pela TVI? E pergunto-lhe a esse propósito se deveria haver uma investigação como pedem as vozes da oposição?
Creio que todas as situações que ofereçam algum tipo de dúvida devem ter investigação. Não é um caso que conheça com todo o pormenor para me estar a pronunciar acerca dele. Acho que o Presidente da República tem tido um exercício do seu cargo que respeito, isto dito por alguém que não votou nele e não é da sua família política. Evidentemente, como qualquer um de nós, e se estivéssemos na mesma situação em que ele está, não acerta sempre, não tem sempre o estilo que qualquer um de nós teria, mas penso que, feita esta salvaguarda, qualquer caso que ofereça dúvidas deve ser investigado e deve ser esclarecido. Não estou neste momento em situação de retirar consequências políticas acerca disso para o Presidente da República.
Voltemos a Rui Tavares. Quem vai ser o cabeça de lista do Livre às europeias? Pode ser Rui Tavares ou Rui Tavares diz não, não pode ser?
Neste momento, creio que estamos todos concentrados nas legislativas. Aliás, as primárias das europeias, no caso do Livre, acabaram por também sofrer com esse calendário porque vão ser feitas depois. Temos de estar concentrados na conquista do grupo parlamentar para o Livre e as eleições europeias vamos ter de discutir depois.
Mas Rui Tavares podia dizer já "excluo-me desse confronto".
Não fazemos ideia do que é que vai acontecer ao país em termos de maioria de Governo daqui a pouco tempo. Não sabemos como é que vai estar o cenário pós-eleitoral no dia 11 de março. E, portanto, tudo o que seja falar acerca de outras eleições é extemporâneo. Toda a gente sabe que tenho ideias sobre a Europa, que tenho uma preocupação muito grande com o que se vai passar na Europa, que há uma guerra na Europa, que há outra na vizinhança da Europa na qual a Europa tem responsabilidades, que se fala de alargamento, de mudança de tratados, tudo isso é muito importante, tudo isso terá de ser discutido depois das legislativas.
É urgente para o Livre e para si pessoalmente que o Livre deixe de ser o partido só de Rui Tavares?
Sim, isso claro que é. Para mim pessoalmente, porque ser deputado único é uma coisa muito exigente do ponto de vista do esforço mental e físico até.
E para a própria dinâmica de sobrevivência do partido, isso é urgente?
Tenho no Livre muitos e muitas camaradas com enorme capacidade política e técnica e tenho muita vontade e muita urgência que o país conheça estas pessoas, que conheça as pessoas que têm estado comigo a trabalhar na Assembleia da República, na Câmara Municipal de Lisboa. A Isabel Mendes Lopes, o Tomás Cardoso Pereira, o Carlos Teixeira, a Patrícia Gonçalves, que me tem substituído como vereador quando isso é necessário, o Jorge Pinto, que foi o nosso candidato no Porto e que é alguém que tem, até do ponto de vista da filosofia política, obra publicada. Acho que o país vai gostar muito de conhecer estas pessoas. As contingências têm feito com que seja a pessoa do Livre que as pessoas mais conhecem, mas há, claro - então minha pode acreditar que há -, uma grande urgência em que o partido tenha mais caras e mais pessoas conhecidas.
