"Saramago não representa a cultura portuguesa." Chega queria ligar cidadania, língua e cultura
Todos os partidos rejeitaram a proposta do Chega para alterar a Constituição e incluir o "dever de conhecer a língua e a cultura portuguesa" para quem quiser adquirir a nacionalidade.
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Onde agora se lê, no artigo 4.º da Constituição, que "são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei e por convenção internacional, o Chega queria adicionar "o "dever de conhecer a língua e a cultura portuguesa" para adquirir a nacionalidade.
"A língua e a identidade são partes integrantes do conceito de pátria e do próprio conceito de nacionalidade que dá o cartão de visita aos membros da pátria," defendeu André Ventura.
O socialista Pedro Delgado Alves recordou o exemplo da filha de onze meses, para lembrar que "os cidadãos portugueses no momento no nascimento não falam uma palavra de português, não conhecem a lírica camoniana, nem leram "O Livro do Desassossego"", de Fernando Pessoa. E aproveitou para sublinhar que "Pátria é uma palavra que não tem espaço no texto constitucional."
A líder e deputada única do PAN Inês Sousa Real acusou a alteração proposta pelo Chega de trazer "um cunho ideológico" e, no mesmo tom crítico, Alma Rivera do PCP considerou que a proposta do Chega é um "subterfúgio" para limitar o acesso à nacionalidade portuguesa e questionou o apego do Chega à cultura porque "ainda recentemente votou contra um voto que assinalou o centenário de José Saramago e fez uma intervenção a criticar a aquisição de um quadro da Paula Rego pelo Ministério da Cultura."
Na resposta, André Ventura acusou José Saramago de ter "saneado jornalistas" e afirmou que o Nobel da Literatura "não representa a cultura portuguesa."
Pelo meio do burburinho da sala, André Coelho Lima do PSD lembrou que apenas "dois cidadãos nacionais receberam o Prémio Nobel José Saramago e Egas Moniz."
"Considerar que um destes vultos não representa a cultura portuguesa é não saber o que é cultura portuguesa," criticou o deputado social-democrata, sublinhando que o PSD é "politicamente contra a criação de deveres para a qualificação de alguém como cidadão." Coelho Lima tinha já lembrado que com a alteração proposta pelo Chega teria sido negada a nacionalidade portuguesa a atletas como Pablo Pichardo ou Francis Obikwelu.
Num debate marcado pelas farpas ao Chega, o liberal João Cotrim Figueiredo ironizou que "em termos de conhecimento da língua portuguesa, alguns elementos do grupo parlamentar do Chega não passariam neste crivo," levando Ventura a criticar eventuais falhas da Iniciativa Liberal na elaboração de diplomas.
Outra troca acesa de palavras ocorreu entre os deputados do Chega e do Livre. Rui Tavares quis saber como se define o conhecimento de cultura, lembrando que o deputado municipal do Chega, em Lisboa, disse que "a mesquita da Mouraria era um entorse à tradição do local," ironizando que " a própria palavra Mouraria não é assim por acaso."
André Ventura respondeu trazendo ao debate a antiga deputada Joacine Katar Moreira para afirmar que o Livre "teve uma deputada do seu partido a fazer entorses seguidos à língua portuguesa, durante o mandato inteiro, a que depois disse que era mentirosa e até mandou sair do partido. Isso é que foram entorses."
Por várias vezes, o presidente da comissão de Revisão Constitucional apelou à moderação na linguagem e à elevação do debate.
Nesta reunião, foram também rejeitadas outras duas propostas para alterar o artigo 1º da Constituição que define o que é a República Portuguesa: o Chega queria introduzir a palavra "trabalho" e o PAN pretendia ver incluída uma referência ao "respeito pela natureza e pelos animais".