Saúde vive "profunda desumanização" com sistema "em rampa descendente e risco de quebrar"
Apesar das expetativas, o bastonário da Ordem dos Médicos olha para o que se está a passar na Saúde e afirma que "ninguém sente melhoras". Quanto à polémica sobre a proximidade entre dirigentes da Ordem e este executivo, Carlos Cortes remete para "o próprio e para quem o elegeu", mas não vê "incompatibilidade"
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As eleições para a Ordem dos Médicos são já daqui a uns meses. Vai voltar a candidatar-se ou, como fizeram tantos dos seus antecessores, pondera avançar para a política ou para os negócios da saúde?
A Ordem dos Médicos vai ter eleições no final de maio, início de junho. São eleições antecipadas, tendo em conta a alteração estatutária que foi imposta no ano passado. Eu iniciei um trabalho profundo, há um ano e meio, de reestruturação interna da OM para torná-la mais profissional, mais aberta para a sociedade civil, para os doentes, para os médicos.
Quer dizer que se vai recandidatar?
Quer dizer que, para mim, o importante é cumprir e fazer aquilo com que me comprometi.
Não diga que temos aqui um tabu...
Não, não há nenhum tabu. Eu quero concretizar esta transformação da Ordem dos Médicos. E concretizá-la num ano e meio é impossível. Portanto, conto poder continuar a fazer este trabalho nos próximos anos.
Tem sido um mandato marcado por alguma contestação interna. Nos últimos meses temos visto vários médicos a acusarem a ordem de falta de independência face ao governo. Como é que olha para estas críticas?
Penso que estas críticas não foram dirigidas ao bastonário, não foram dirigidas a mim. Há diferenças de opinião. A Ordem dos Médicos tem tomado sempre posições, ainda estas últimas semanas fez críticas em relação a este Governo, como fez em relação ao anterior. Para a Ordem dos Médicos não há governos de esquerda ou de direita, não há partidos políticos. Quando tem que criticar, critica, mas também não quero que seja uma força de oposição dos governos.
O presidente do Conselho Regional do Norte é próximo da ministra e do primeiro-ministro, foi o coordenador do plano de emergência da Saúde deste Governo e depois foi designado como representante da Ordem no grupo que acompanha esse plano. Não lhe parece que a imagem da Ordem dos Médicos sai prejudicada com esta proximidade?
A Ordem tem total independência em relação ao poder político. Sempre teve médicos em comissões de trabalho técnicas dependentes do Ministério da Saúde e de outros organismos. O que seria altamente criticável seria o contrário.
E fica à vontade para criticá-los? Por exemplo, o diretor-executivo do SNS também é dirigente da Ordem.
Tanto quanto sei, o diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde não é dirigente da Ordem dos Médicos. Pode ter sido dirigente, mas é incompatível ter esses cargos em simultâneo.
Mas foi vogal da sub-região do Porto da Ordem dos Médicos?
Muitos médicos que ocuparam ou que ocupam cargos políticos, tiveram num momento ou noutro da sua vida um cargo na OM. Temos um antigo bastonário que é deputado na Assembleia da República, outro que é presidente de uma Câmara, as pessoas são livres de poder trabalhar pela causa pública. Aquilo que não pode existir, e quero ser claro nisto, é no exercício da OM nenhuma interferência externa. Esta tem sido uma das principais lutas neste mandato. Infelizmente, as alterações estatutárias, a chamada lei de base das ordens profissionais, permite uma intromissão absolutamente inaceitável do poder político nos órgãos da OM.
Essa questão da independência, voltando à questão de dirigentes do Norte que estão simultaneamente a trabalhar com o Governo e envolvidos em negócios privados. Isso não lhe causa apreensão?
Eu posso responder por aquelas que são as funções do bastonário da Ordem dos Médicos. Não existe nenhuma intromissão do poder político dentro da Ordem.
Mas não tem posição?
Em relação ao que os médicos e os dirigentes fazem fora da Ordem dos Médicos, nomeadamente situações de negócios e empresas - como referiu - são situações externas à Ordem dos Médicos. Não existe nenhuma incompatibilidade legal, nenhuma incompatibilidade, penso eu, ética. O presidente da secção regional Norte da Ordem dos Médicos (Eurico Castro Alves) a presentou a demissão da comissão de avaliação do plano de emergência para a saúde (que fez para o Ministério da Saúde), mas é uma comissão técnica, com médicos de todo o país...
Mas também está na Misericórdia do Porto e na Mútua de Saúde, um seguro privado de saúde...
Não posso estar a responder por outra pessoa porque eu não conheço os pormenores da sua vida pessoal. É uma situação que o próprio terá que esclarecer com aqueles que o elegeram diretamente. Como sabe, o bastonário é eleito a nível nacional e as secções a nível regional.
Assistimos recentemente a um acordo entre um dos sindicatos médicos e o Governo. É suficiente para estancar as saídas do SNS?
Nenhum acordo neste momento será suficiente. A Ordem dos Médicos não esteve envolvida nestas negociações, não conhecemos em pormenor o seu conteúdo, nem o impacto sobre a vida dos médicos. Mas posso dizer com absoluta certeza que, hoje em dia, as condições que os médicos têm para trabalhar são absolutamente insuficientes, são até degradantes. Não houve uma renovação da carreira, continua a não haver uma justa valorização do ponto de vista remuneratório, das condições de trabalho, da formação, do acesso à investigação, que permita ao SNS ser mais competitivo.
Estamos em pleno Inverno, temos um novo Governo, um novo plano, também para as urgências, mas continuamos com tempos de espera que chegam às 17 horas. Não adiantou a estratégia da tutela de coordenar o acesso às urgências por linhas telefónicas?
Estou verdadeiramente preocupado com aquilo que está a acontecer na Saúde nestes últimos anos. Não é só este ano, não é só este inverno. Em poucos anos, o Orçamento de Estado [da Saúde] praticamente duplicou, passando de 8 mil milhões de euros para perto de 17 mil milhões.
Houve um conjunto de reformas, a criação de uma Direção Executiva do SNS, a reforma das unidades locais de saúde. Depois houve uma mudança de Governo, em que foi criada uma grande expectativa de que os problemas da saúde iam ser todos resolvidos muito rapidamente através de um plano estratégico. Mas a verdade é que não estamos melhor. Ninguém sente melhorias em termos de acesso. Há pouco falou em 16 ou 17 horas de espera, eu já tenho tido relatos de mais de 20 ou 30 horas de espera, é uma situação profundamente desumana. Estamos a entrar num período de profunda desumanização do SNS e isso é muito preocupante. Estamos numa rampa descendente muito grave, que pode quebrar o próprio sistema e a capacidade de resposta do SNS.
A falta de acesso tem vindo a ser colmatada por este Governo com o privado. É o caminho certo ou vamos ver a despesa aumentar ainda mais?
Eu sou médico do SNS, sou um grande defensor da causa pública. E a grande prioridade, do meu ponto de vista, é assegurar que o SNS tenha capacidade de resposta total. É investir no SNS, do ponto de vista financeiro, organizacional e dos recursos humanos. Mas quando o SNS não tem capacidade de resposta, porque a transformação não se faz de um dia para o outro, não tenho nenhum problema ideológico em que os doentes possam ter resposta no privado. Mas os governos têm que assegurar essa capacidade total para o SNS.
Quando vemos surgir quase em paralelo ao SNS um conjunto de prestadores, misericórdias e não só, com centros de atendimento clínico contratados pelos hospitais, quando vemos que os hospitais têm planos de contingência que nestes picos de procura também preveem a contratação de camas no setor privado, não há aqui um desinvestimento no setor público para investir na tal complementaridade, que cada vez é maior?
Sim e os planos de contingência das unidades locais de saúde não estão a cumprir com o seu propósito porque não estão a resolver as situações do doente. E nós podemos estar aqui a fazer todos os planos de contingência, todos os planos estratégicos, todas as linhas telefónicas, mas a verdade é que elas não estão a produzir resultados. E o que é importante avaliarmos são resultados concretos.
Sobre o acesso de migrantes ilegais e de estrangeiros residentes ao SNS. Os médicos têm-lhe pedido orientação sobre o que fazer? Já explicou ao governo e também às bancadas parlamentares que apoiam esta medida se percebem que a objeção dos médicos pode ser determinante no falhanço desta ideia?
O médico tem o dever ético e deontológico de tratar todos os doentes, independentemente da sua condição, da nacionalidade, da religião, da etnia ou das condições administrativas que possam estar ligadas a esse doente ou utente. Portanto, a obrigação do médico é amenizar a dor, salvar a vida das pessoas, tratar as pessoas. Tudo o que tem a ver com o processo administrativo ou até judicial por aquele doente não ser um beneficiário de pleno direito do SNS, não é uma matéria médica. E não se vai pedir ao médico para recusar tratar um doente, isso seria uma violação grave do seu código deontológico, uma intromissão grave na relação médico-doente.
E chocou-o que tenha sido um antigo bastonário, por sinal, o seu antecessor, enquanto deputado no Parlamento, a defender esta ideia?
O Dr. Miguel Guimarães é, neste momento, deputado da Assembleia da República. E mais uma vez, nós temos que saber separar as coisas. Uma coisa é quando um bastonário está no exercício das suas funções. Outra coisa é quando deixa de ser bastonário e, portanto, é livre de defender as suas ideias, os seus ideais e de desempenhar os cargos que quer desempenhar.
Está de novo na ordem do dia a discussão sobre o alargamento do prazo para a interrupção voluntária da gravidez e a regulamentação da objeção de consciência. Qual é a posição da Ordem?
Há três aspetos que são muito relevantes para nós do ponto de vista ético. O primeiro é defender sempre a vida. O segundo tem a ver com o direito dos utentes a terem informação sobre a sua situação e a autonomia de escolher os atos que são feitos sobre si próprio. E o terceiro ponto, que para mim é muito importante, é o direito à objeção de consciência. Tenho defendido, nestas últimas semanas, e também o transmiti a vários deputados da Assembleia da República, uma maior dignificação do ato da objeção de consciência.
Como?
Por exemplo, sendo obrigatório notificar junto da Ordem dos Médicos. A declaração da objeção de consciência tem que ser preservada, mas também tem que ser do conhecimento da Ordem dos Médicos.
E isso pode ajudar a filtrar quem é, de facto, objetor de consciência?
Pode ajudar a dignificar e a responsabilizar um direito que é do médico.
Sabemos que há médicos que são objetores de consciência porque de repente eram os únicos no serviço que faziam interrupções voluntárias de gravidez outros porque o diretor de serviço é objetor de consciência... A obrigatoriedade de notificar à Ordem pode mudar essa realidade?
Acho que pode clarificar todas estas situações. Mas volto a insistir: a objeção de consciência é um pilar da autonomia médica, é um direito que os médicos têm e que nunca pode ser posto em causa, mas tem que ser feita junto da respetiva ordem profissional, precisamente para colocar esta solenidade no ato da declaração da objeção de consciência.
