"Segredo de justiça acaba por ser letra-morta." Magistrados condenam divulgação de escutas, mas rejeitam responsabilidade do MP
Maria Ramos Santos com Manuel Acácio
A revista Sábado divulgou 50 escutas telefónicas, no âmbito da Operação Influencer, que mostram conversas entre António Costa e membros do seu Executivo. A defesa do ex-primeiro-ministro já pediu explicações e as reações foram diversas, tendo o tema também estado em debate, esta quinta-feira, no Fórum TSF. É aceitável? É preciso repensar o funcionamento do sistema judicial e combater a violação do segredo de justiça? Advogados e juízes não têm dúvidas de que há uma violação do segredo de justiça, mas o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público rejeita responsabilidades.
O bastonário da Ordem dos Advogados, João Massano, afirmou que ninguém pode estar tranquilo com a forma como as escutas são atualmente geridas pelo Ministério Público e defendeu que é urgente definir regras claras para garantir o cumprimento do segredo de justiça.
"O segredo acaba por ser quase uma letra-morta, porque se formos olhar para trás e verificar as condenações e as investigações, não temos assim tantos casos para poder ser comprovado e demonstrado que existe uma verdadeira preocupação. O segredo de justiça é algo que temos de assumir com frontalidade. Ou existe ou não existe. Se existe, tem de ser para todos e não é só para os advogados", considerou.
João Massano propõe um reforço do papel dos juízes de instrução, lembrando que cabe ao juiz não apenas validar, mas também verificar periodicamente o conteúdo das escutas para perceber se mantêm pertinência. "Tem de haver verdadeira responsabilização. Parece-me que quem tem de proteger o cidadão, ter poderes reforçados e assumi-los é o juiz que valida as escutas e que as autoriza", defendeu.
Também o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Paulo Lona, reconheceu que as escutas nunca deveriam ter saído do processo. No entanto, rejeitou que a fuga tenha partido do Ministério Público, garantindo que a instituição não tinha qualquer interesse na divulgação.
"Obviamente que há aqui uma fuga de informação que não devia ter acontecido. A questão é saber quem é responsável. Tem de ser investigado. A minha convicção, obviamente, é que não foi o Ministério Público, até porque não tinha nenhum interesse nisso."
Paulo Lona avisou ainda que as perceções negativas alimentadas por políticos e comentadores "minam a confiança e a credibilidade" da instituição.
No caso dos juízes, Nuno Matos, presidente da associação sindical, sublinhou que é complicado investigar situações em que o segredo de justiça é violado. Ainda assim, disse, há um princípio-chave: "A escuta telefónica é um meio altamente intrusivo e só deve ser usado como última opção, para quando outros meios de prova não são suscetíveis de apurar a verdade. Deve ser usado com cautela."
Já o juiz desembargador jubilado Eurico Reis destacou a gravidade acrescida da divulgação de escutas envolvendo um ex-primeiro-ministro, mesmo reconhecendo que um chefe de Governo não está acima da lei.
"Cada processo tem um responsável e um agente da Polícia Judiciária. Essas pessoas têm obrigação de vigiar para que o segredo não seja violado", afirmou, sublinhando que quem não for capaz de garantir a proteção dessa informação deve ser sancionado disciplinarmente, desde que se avalie se fez tudo o que era devido para evitar essa violação.
Eurico Reis lamentou também a falta de coragem política para reformar o sistema judicial, afirmando que, ao longo de décadas, ninguém tomou medidas eficazes para controlar o funcionamento interno do Ministério Público e que todo o sistema precisa de uma revisão profunda: "A verdade é que durante essas décadas todas nunca ninguém fez nada. (....) O Ministério Público tem de ser reformulado. Aliás, todo o sistema judiciário tem de ser objeto de uma reformulação e ninguém tem a coragem para o fazer."
