Aprendi com os velhos a usar a palavra "velho" quando me refiro a eles, aos velhos.
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Chegar à velhice pode ser muitas vezes um caminho solitário. Comummente começa aos 40 anos, com as primeiras análises a acusar colesterol elevado ou tensão arterial fora dos valores esperados. Até aí a pessoa julga-se imortal, ou melhor, pouco pensa que é mortal.
Uma década depois, provavelmente aprendeu a viver com algumas limitações gastronómicas. E soma agora algumas perdas físicas. Por exemplo, já não sobe os degraus dois a dois das escadas do prédio, correr é um desgaste e um acelerador de tudo o que existe no corpo - pulmões, coração, "dor de burro" - chega mesmo a sentir alguns músculos que não imaginava que existissem. Inicia-se um estado de inquietação latente com o envelhecimento. Procura-se fazer exercício físico como se fosse possível recuperar toda a inércia das últimas duas ou três décadas. Bebem-se sumos detox, com muita beterraba porque "a beterraba tem propriedades anticancerígenas" e gengibre. "Sabes que o gengibre é anti-inflamatório? Olha que faz bem às articulações." E os brócolos? Ai os brócolos... Brócolos para toda a gente lá em casa!
Pelos 60 anos, às limitações gastronómicas e às perdas físicas juntam-se as dificuldades cognitivas ou intelectuais. Até aí atribuía-se a desatenção ao facto de se ser "um distraído desde pequenino". Já as dificuldades de memória justificam-se facilmente com o excesso de trabalho, a vida agitada e a falta de férias. E vai-se vivendo com alguma serenidade.
Chegados aos 70 anos, esta é uma década durante a qual tradicionalmente acontecem muitas viragens na vida da pessoa, na relação com a família, com os amigos, com os colegas de trabalho, consigo próprio. Pede-se a reforma, perde-se a forma. Procura-se a identidade numa reorganização de si para si, de si para os outros, e daquilo que se imagina vir dos outros para si. Estar e ser ganham múltiplas dimensões. Juntam-se a morte dos ancestrais (as referências) e o velório dos contemporâneos (os "iguais"), e a finitude começa a pairar num pensamento persistente que passa a perseverante na década seguinte. (Sim. Enquanto a criança é teimosa, o adulto é persistente e o velho é perseverante. "Perseverante" deve ser um estatuto que se adquire com a idade.)
Das perdas - primeiro negadas outras vezes escondidas - pelo próprio, para o próprio, tantas vezes para o Outro - paira o desejo de uma melhoria miraculosa ou soa a voz da prudência.
Ouvido ainda hoje de manhã, na rua, numa conversa entre duas octogenárias:
- Sabe, dona Jacinta, já tenho mais uma neta com 8 semanas. Isto é que nos faz andar para a frente!
- Mais um bocadinho, dona Mariana, mais um bocadinho...
No fim, a adaptação é a possível e a finitude é ditadora. O processo do envelhecimento é um caminho que se faz sozinho, na procura incessante de Ser, até desaparecer.
Do muito que os velhos me têm ensinado na prática clínica e na vida de todos os dias, fico com a ideia de que essa pode ser uma viagem possível de se fazer sem drama, antes serena e em paz.
Deitado, no fim dos seus dias, disse-me: "Sei que vou morrer, mas morro satisfeito."
Aos Velhos,
Mésicles Helin