"Sentimento de injustiça." Moradores dos bairros "não se revêem" nos desacatos, ação da PSP foi "desproporcionada"
O investigador Jorge Malheiros, que estuda a realidade dos bairros sociais, explica, na TSF, que existe uma maior consciência "da desigualdade entre espaços". A isto junta-se o facto de as comunidades afrodescendentes terem "menos oportunidades"
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O especialista em geografia humana Jorge Malheiros considera que a "maioria dos moradores" dos bairros, que assistiram a uma onda de distúrbios nos últimos dias após a morte de um homem baleado pela PSP na Cova da Moura, não se revê nos desacatos provocados na Grande Lisboa, alertando para o crescimento de um "sentimento de insatisfação e injustiça".
O investigador, que estuda a realidade dos bairros sociais, sublinha, em declarações à TSF, que existe um enorme "sentimento de insatisfação e injustiça" partilhado por estas populações. Jorge Malheiros acredita que a maioria dos moradores tem cada vez mais consciência do crescimento da desigualdade que os rodeia.
"Eu creio que a maioria dos moradores não se revê nesses atos. O que me parece é que há, em muitos destes bairros, um sentimento de insatisfação e de injustiça. E essa insatisfação tem crescido nestes últimos anos, sobretudo, porque há uma consciência da existência de uma desigualdade entre os vários espaços: desigualdade económica e de oportunidades - a vários níveis - como acessibilidade, oportunidades no mercado de trabalho", explica.
O investigador considera, por isso, que a ação da PSP, que culminou na morte de Odair Moniz, de 43 anos, foi "desproporcional".
"Em relação ao caso concreto, é o que aparece na comunicação social, e, portanto, é difícil estar aqui a fazer um comentário. O que me parece é que houve da parte do cidadão alguma desobediência. Pela descrição que existe, há referências de que foi baleado duas vezes, mas há também referências de que foi baleado três vezes, a resposta será desproporcionada", revela, insistindo que disparar mortalmente, nestas circunstâncias, é "desproporcionado".
"Há alternativas face a balear uma pessoa mortalmente", atira.
Para Jorge Malheiros, há três aspetos que podem ter resultado na morte de Odaír Moniz e que estão entranhados no seio da polícia.
"As estratégias preventivas têm componentes mais dialogantes e não de uma exibição da presença policial mais dura e parece-me que têm sido desvalorizadas. Creio que isso não é um aspeto muito positivo e cria uma tensão maior e uma insatisfação maior entre os cidadãos. Há também toda a legitimidade das polícias em exigirem melhores condições de trabalho. Se a polícia estiver mais satisfeita, fará o seu trabalho de forma mais tranquila. A componente das marcas da extrema-direita presente nas forças policiais também não é um aspeto muito positivo", acrescenta.
O agente da PSP que baleou mortalmente Odair Moniz, na Amadora, em Lisboa, já foi constituído arguido pela PJ e a arma de serviço foi-lhe apreendida.
Fonte da PSP disse à Lusa que se trata de um procedimento normal neste tipo de ocorrências e que o agente se mantém em funções.
Na segunda-feira, a ministra da Administração Interna determinou à Inspeção-Geral da Administração Interna a abertura de um inquérito "com caráter de urgente" sobre a morte de um homem na Cova da Moura, na Amadora, após ser baleado pela PSP.
Além deste inquérito na IGAI, a PSP já tinha anunciado a abertura de um inquérito interno junto dos polícias e de testemunhas para apurar as circunstâncias que originaram esta ocorrência.
Segundo aquela força de segurança, os agentes da PSP deram ordem de paragem a um homem que, ao visualizar a viatura policial, encetou fuga para o interior do bairro da Cova da Moura, tendo o condutor entrado em despiste, abalroando viaturas estacionadas e o carro em que seguia ficado imobilizado.
De acordo com a PSP, na rua principal do bairro os agentes abordaram o suspeito, que "terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca".
Após o disparo, o suspeito foi assistido no local e transportado para o Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, onde veio a morrer pelas 06h20.
O especialista defende igualmente que a "velha oposição centro-periferia parece, hoje, estar de novo a aumentar", o que não tem contribuído para a manutenção da paz. A esta realidade, junta-se também o facto de as comunidades afrodescendentes terem "menos oportunidades".
"E isto não é apenas uma competência económica. É também uma componente ético-social", completa. Jorge Malheiros confessa que aquilo que o surpreendeu foi "a velocidade" com que os episódios de vandalismo se alastraram "a outros espaços".
Os desacatos que decorrem desde segunda-feira após a morte de um homem baleado pela PSP espalharam-se durante esta noite a várias zonas de Lisboa, nomeadamente Carnaxide (Oeiras), Casal de Cambra (Sintra) e Damaia (Amadora).
